Tradução J. Filardo

por Amanda Brown-Peroy

“Duas lojas maçônicas operam secretamente em Westminster”: é assim que o jornal The Guardian, conhecido na Grã-Bretanha, chamou a atenção de seus leitores para mais um “escândalo maçônico” em fevereiro deste ano.  Maçons no seio do Parlamento Britânico? Nossos deputados praticando rituais estranhos?  Oh my God ! 

Correndo o risco de desapontar seu público, o jornal teve que corrigir seu artigo alguns dias depois, inclusive o título, para adotar uma abordagem mais factual, e é preciso reconhecer, menos sensacionalista: “Duas lojas maçônicas estabelecidas em Westminster continuam a operar.”  Menos vendedor, certamente, mas mais realista: de fato, as lojas em questão neste artigo não são outras senão a Gallery Lodge n.1928 e a New Welcome Lodge n.5139, respectivamente estabelecidas em 1881 e 1929, bem conhecidas (ambas foram objeto de pesquisas que foram publicadas e até têm sua própria página na Wikipédia), e de maneira alguma mais “secretas” que outras. O título do artigo é obviamente enganoso, além de ser falso.  As sessões não acontecem em Westminster, mas no Freemasons’ Hall, a sede da Grande Loja Unida da Inglaterra. Outros erros factuais se infiltraram nesta publicação, daí a obrigação de correção. Mas o que não podemos deixar de notar aqui é o desejo de expor o que deve permanecer secreto, lançar luz sobre um aspecto considerado problemático da Maçonaria. Este recurso tem sido usado há décadas: a Maçonaria fascina do outro lado do Canal, tanto quanto ela desgosta, e é tema de um debate apaixonado: uma sociedade secreta cujo propósito é promover a ajuda mútua aos mais altos níveis de poder, ou excentricidades inofensivas por parte de homens de certa idade, dando lugar de destaque às dramatizações? Se a questão não está decidida, o argumento central do segredo é a chave dela.

Opacidade ou cooperação
No século XXI, quando você toca a esfera pública e, em particular, sua dimensão política, a transparência é necessária.  Reconheçamos: a Maçonaria não é a instituição que melhor representa essa ideia no imaginário coletivo.  No entanto, a permeabilidade das esferas pública e privada impôs mudanças radicais em termos de comunicação nos últimos anos.  A Grande Loja Unida da Inglaterra (GLUI) teve que lidar com as demandas por vezes imperiosas da sociedade de comunicação, e não teve escolha senão cooperar. Uma evolução começou, uma certa tomada de consciência no seio das instâncias dirigentes  levou a uma maior abertura, especialmente a partir dos anos 2000. Mas esse processo não é natural para uma instituição que acaba de comemorar seu aniversário de trezentos anos.  A gestão dessa noção de segredo pelo GLUI é interessante em mais de uma maneira, e ilumina a história da maçonaria britânica.  
O debate sobre o desvelamento da filiação maçônica concentra os medos e preconceitos tanto da sociedade civil em relação à maçonaria quanto dos maçons, seja individual ou coletivamente, isto é, a da instância governante. Essa questão central ainda está no coração da atualidade na Grã-Bretanha de hoje. Está ressurge regularmente porque nenhuma diretriz firme foi adotada.  No entanto, o debate foi bem aberto, e pode ter resultado em uma posição mais firme no final dos anos 90. 

Investigações nos anos 90
 Foi durante este período que foi levantada a espinhosa questão da revelação de membros do sistema de justiça criminal: uma comissão parlamentar, composta por deputados dos dois principais partidos britânicos, decidiu interessar-se por esta questão. As comissões parlamentares são responsáveis ​​por investigar o governo sobre vários aspectos da sociedade e examinar as despesas, a administração e a política do Ministério do Interior. Eles escolhem seus próprios tópicos investigativos e buscam reunir, para esse propósito, provas escritas e orais vindas de uma ampla gama de grupos e indivíduos envolvidos. No final de uma investigação, o comitê produz suas conclusões na forma de um relatório e recomendações ao governo. Este último deve responder a cada ponto do relatório no prazo de dois meses após a sua publicação.  O comitê que é de particular interesse para nós aqui (formado em 1992), optou por se concentrar na participação maçônica no sistema de justiça criminal (i.e. justiça e polícia), de modo a determinar “se a filiação maçônica criava problemas no processo de justiça criminal ” por um lado, e se por outro lado “restrições deviam ser postas em prática sobre os membros da polícia pertencentes à Maçonaria, promotores, juízes ou juízes da paz, ou se era preciso que eles revelassem sua filiação. O comitê foi influenciado em sua escolha por um membro em particular do Parlamento, Chris Mullin, muito à esquerda no Partido Trabalhista. Este último havia investigado no passado as más práticas e outros erros judiciais envolvendo maçons nas décadas de 1970 e 1980. Uma brigada havia sido imobilizada, e a participação maçônica de alguns de seus membros havia sido um fator agravante aos olhos do público. Mullin estava, portanto, determinado a levar a investigação ainda mais longe, levando em conta todo o sistema de justiça criminal.  Em sua opinião, maior transparência dentro dessas profissões permitiria restaurar, ou pelo menos manter a confiança pública no sistema de justiça. Muitas vozes se fizeram ouvir durante a investigação que começou em 1996. Quando foi anunciado que a comissão iria estudar o assunto da Maçonaria, a Grande Loja Unida da Inglaterra imediatamente enviou uma carta explicando que seus representantes se colocavam à disposição da comissão.  Tratava-se, claro, para a GLUI conter eventuais danos que tal atenção poderia causar. Os equívocos que certamente circulariam sobre a Maçonaria certamente teriam um impacto na imagem que a sociedade teria dela. O desafio era, assim, poder restabelecer certos pontos negativos que seriam levantados durante esta investigação. Foi assim que o Grande Secretário da época, Michael Higham, acompanhado pelo bibliotecário e curador da GLIA no Freemasons’ Hall, John Hamill, foram convidados a testemunhar nas audiências. Estas últimas foram, por sua própria admissão, muito penosas para os dois irmãos. Em particular, eles se lembram particularmente do tom agressivo do deputado Mullin, que estava na origem da decisão de investigar. A noção de segredo era obviamente problemática para o político, que comentou:  “Seria mais fácil convencer os não iniciados de que a Maçonaria é um passatempo inofensivo e que seus objetivos são principalmente conviviais e beneficentes se não houvesse essa noção de segredo – reforçada por juramentos de gelar o sangue – sobre o qual todos os maçons fizeram o juramento.” Vários anos antes das conclusões do comitê serem conhecidas, em 1997, Mullin já havia tentado aprovar uma lei que exigia de um “ocupante, ou um candidato à nomeação para um posto de serviço público que ele fizesse uma declaração pública quanto à sua participação ou não de qualquer sociedade secreta.” Sua meta era quase declarada quando a investigação começou: tratava-se de exigir que os maçons revelassem sua participação nos ramos em questão. Depois de vários meses de entrevistas e coleta de dados sobre a influência da Maçonaria nesses ofícios, a grande maioria dos testemunhos não relatou qualquer evidência de malversação decorrente da participação maçônica das pessoas envolvidas. A comissão, portanto, enfatizou em seu relatório que a maioria ou todas as evidências de corrupção eram em grande parte circunstanciais.  Portanto, é ainda mais surpreendente ler a conclusão, que, como um cutelo, anuncia que “os policiais, magistrados, juízes e procuradores da Coroa deveriam registrar em seus registros a participação em uma sociedade secreta”. e esse registro deve estar acessível ao público.” 

Medidas reforçadas
 Ainda mais do que a decisão de declarar a adesão, é a dicotomia entre a comprovada falta de provas e a conclusão do relatório que perturbou a Grande Loja Unida da Inglaterra e, mais geralmente, os maçons britânicos.  Entre a época da investigação e as conclusões do relatório, a maioria política havia mudado na Grã-Bretanha, e agora era o Partido Trabalhista de Tony Blair que estava no poder.  Ansiosos por se destacarem de seus predecessores conservadores, que permaneceram no poder por quase vinte anos, o primeiro-ministro e os membros de seu Gabinete davam grande importância à transparência e à renovação política, dois valores que não caracterizavam a maçonaria. O novo governo, portanto, pretendia implementar as recomendações sobre a revelação dos maçons, e até queria ir além, para o desgosto dos principais envolvidos. De fato, essas recomendações já não diziam respeito apenas aos agentes da polícia, magistrados, juízes e procuradores, mas também aos agentes penitenciários e aos agentes de condicional. Logo o debate se voltou para a possibilidade de estender esse sistema ao NHS (sistema de previdência social) e outras instituições. Não satisfeitos em ter que declarar sua filiação, os maçons seriam obrigados a fazê-lo publicamente. A GLUI, é claro, tentou por todos os meios evitar isso, e foi in extremis que a nova lei sobre proteção de dados entrou em vigor em 1998, contrariando o fato de que esses registros pudessem ser públicos. Tendo assim evitado um ponto particularmente sensível, uma questão central permaneceu: como é que o governo britânico decidiu tomar tais medidas, que restringem liberdades individuais, contra uma sociedade cuja história é ainda firmemente ancorada na do país onde nasceu?  

O papel da Segunda Guerra Mundial
 No início do século XX, essa medida teria parecido absurda não apenas para os maçons ingleses (que eram muito mais numerosos), mas também para a sociedade britânica como um todo, que considerava a maçonaria uma instituição absolutamente respeitável. Os maçons desfilavam orgulhosamente em muitos desfiles, e não inspiram os medos de negociatas e suspeita de influência que virão a sofrer mais tarde. A Maçonaria era um pilar da sociedade inglesa.  Que mecanismo então operou para que, no final do século XX, seus membros sejam associados tanto a más práticas quanto ao espírito beneficente que eles tentam levar avante? O tratamento do segredo constitui um elemento de resposta.  Entre essas duas épocas, a Segunda Guerra Mundial desempenhou, naturalmente, um papel preponderante, fundamental tanto na atitude individual quanto institucionalizada dos maçons ingleses. Reconhecidamente, a Grã-Bretanha nunca foi invadida durante este período crucial, mas o exemplo do tratamento dos maçons no continente e em particular na França, bem como a ameaça de uma invasão pairando, foram suficientes para que os maçons ingleses simplesmente se retirassem da vida pública. No entanto, o hábito de não mais comentar e não revelar sua participação maçônica continuou, e essa retirada continuou muito depois da guerra.  Tanto tempo, que foi só em meados da década de 1980 que a Maçonaria voltou à tona na Grã-Bretanha, apesar disso. A Grande Loja Unida até então estivera muito feliz com o status um tanto adormecido da instituição dentro da sociedade: ela havia ficado fora de sintonia com a última, enquanto supostamente representasse seus aspectos, formando um microcosmo de sociedade em geral. 

Entrincheirar-se ou comunicar-se?
Em 1984, então, um livro que fez grande barulho viu a luz, prometendo revelar os segredos da Maçonaria. Esta publicação, “Inside the Brotherhood”, de Stephen Knight, claramente abalou a GLUI. Não tanto pelas revelações que lá estavam, mas pela atenção que provocou, numa época em que a Maçonaria estava mais na sombra do que na luz. O modo como a GLUI lidaria com essa situação sem precedentes seria decisivo. Duas opções lhe estavam disponíveis: ou continuava no caminho da não-comunicação, como estava acostumada a fazer desde os anos 50, recusando-se a comentar ou até mesmo corrigir erros factuais sobre a maçonaria em artigos, por exemplo, ela percebeu que havia chegado a hora de sair desse estado de vigilância em nível comunicativo e concordou em iniciar a discussão com a sociedade civil. Ao escolher se reconectar com o público, a GLUI fez uma verdadeira mudança de estratégia. Contratou uma firma de relações públicas para lidar com a comunicação, e as instruções agora eram claras: era necessário estar preparado para responder às perguntas mais insistentes, ou seja, falar mais abertamente, individualmente, sobre sua qualidade de membros da Maçonaria. Mesmo que a evolução estivesse na direção certa, não se mudam décadas de práticas tão facilmente. Ainda havia um longo caminho a percorrer para alcançar um status de transparência, um valor que se tornou inevitável no início dos anos 90 e que se tornaria ainda mais importante na sociedade da comunicação.  O relatório parlamentar de 1997 pode ter finalmente sido um marco positivo na marcha em direção à abertura.  Desde a década de 2000, a GLUI tem se empenhado em criar uma imagem cada vez mais moderna, chegando a privatizar o grande templo do Freemasons Hall para eventos não-maçônicos, tais como filmes e séries, e moda, ou ainda o Fashion Week de Londres em 2014, por exemplo. A aparição na mídia e nas redes sociais atesta esse desejo de abertura.  Resta saber se a Grande Loja Unida da Inglaterra persistirá no caminho da modernidade, aproveitando os debates que estão no coração da maçonaria contemporânea.  Uma nova etapa foi vencida neste verão, que é uma reminiscência da cronologia de certos eventos na França, abrindo as portas do templo a mulheres transexuais que haviam sido iniciadas como homens. 

Nova Welcome Lodge
 A Maçonaria Britânica tem abertamente e sempre reivindicado seu apolitismo. No entanto, a criação em 1929 de uma “loja de classe” mostra que existem ligações políticas, mesmo que a New Welcome Lodge (n ° 5139) seja um caso muito especial.  Como o próprio nome indica, ela estava aberta a novos membros, isto é, às classes sociais que geralmente não frequentavam lojas maçônicas. O ímpeto dado à criação da New Welcome veio do Príncipe de Gales, o futuro rei Edward VIII. Na época, este, bem como vários outros maçons de alto escalão, queriam resolver o problema da rejeição dos candidatos trabalhistas às portas da loja. Conscientes do fato de que a Maçonaria tinha um papel a desempenhar na pacificação das relações sociais, a ideia era criar uma loja voltada para as classes trabalhadoras. Ao longo do tempo e após as sucessivas derrotas do Trabalhismo nas eleições legislativas, deputados conservadores entraram na loja, bem como mensageiros ou funcionários do Palácio de Westminster, que agora compõem a maioria dos membros.  De acordo com a Grande Loja Unida da Inglaterra, atualmente não há nenhum deputado membro da Loja.

 

Publicado no FM-Revista Franc Maçonnerie