Bibliot3ca FERNANDO PESSOA

E-Mail: revista.bibliot3ca@gmail.com – Bibliotecário- J. Filardo

A Maçonaria Operativa não morreu na França. Sobreviveu em outro formato…

J.Filardo M.’. I.’.

Rios de tinta já correram sobre a discussão das origens da Maçonaria e, em resumo, existem dois campos mais importantes: o primeiro defende que a Maçonaria como a conhecemos teve sua origem como uma invenção inédita em 1717 pela Grande Loja de Londres.  Outro grupo defende uma evolução gradual da maçonaria operativa até a maçonaria especulativa que teria acontecido na Escócia e na Irlanda e daí transplantada para a Inglaterra. Isso não significa que um grupo está certo e o outro errado. A Maçonaria Especulativa substituiu a maçonaria operativa quando esta desapareceu, e sua origem realmente foi a Escócia. O que aconteceu em 1717 foi a criação da noção de Grande Loja, ou seja, uma organização centralizada que governaria um conjunto de lojas.

E, para ambos os campos, a Maçonaria Operativa não existe mais.  Extinguiu-se com as mudanças tecnológicas, econômicas, políticas e culturais da  Idade Média e perdeu o monopólio das técnicas construtivas com a abertura das sociedades à educação.  É preciso lembrar que as construções atribuídas aos maçons operativos ─ as catedrais ─ por exemplo, empregavam não só os pedreiros, mas também ferreiros, carpinteiros, vidraceiros e outras especialidades. Com a popularização das profissões, a exclusividade dos profissionais das guildas deixou de existir e, consequentemente, as guildas ou corporações não tinham mais razão de ser, de maneira geral na Europa e no que nos interessa, na Inglaterra.  Algumas poucas lojas operativas resistiram até o Século XVII, ajudaram na reconstrução de Londres e depois entraram em decadência até que foram de certa forma resgatadas, já transformadas em semi-especulativas pela Grande Loja de Londres no início do Século XVIII.

Na França, porém, os operativos não desapareceram. Existem até hoje sob a forma do Companheirismo, uma espécie de Liceu de Artes e Ofícios com estrutura maçônica, incluindo as lendas fundadoras do Templo de Salomão.

Ocorre, entretanto, um fenômeno social perfeitamente explicável, onde a Maçonaria nega seus vínculos com o Companheirismo e, absurdo total, quando a Maçonaria Francesa é efetivamente organizada em 1801, ela nega a entrada em suas fileiras dos membros do Companheirismo. É o que nos conta o Irmão Victor Guerra em livro a ser brevemente publicado, RÉGULATEUR DU MAÇON 1801 – Rito Francês dos Modernos:

“Relendo o Régulateur du Maçon de 1785-1801, deparei-me com uma citação curiosa localizada na primeira seção do Preâmbulo, e que parece ser algo mais que uma citação, por certo, bastante xenófoba e que parece toda uma declaração de intenções, que vai profundamente contra a corrente maçônica operativa, que neste caso puderam encarnar o “Companheirismo” [os Compagnons], não lhes dando a possibilidade de ingressar na Maçonaria.

Não vou negar que quando li a citação, sobre a qual o Irmão Joaquín Villalta me chamou a atenção, dei um salto na cadeira, porque não podia acreditar no que estava lendo, não só estranhei o texto, mas depois posso dizer que não encontrei nenhuma menção de tal texto por quase ninguém, nem historiadores nem maçonólogos, e que me pareceu uma forte contundência, e é isso que motivou este artigo.

Diz o Régulateur

“Nul profane ne peut être admis avant l´âge de vingt-un ans; il droit être de condition libre et non servile, et maitre de sa personne. Un domestique quel qu´il soit, ne sera admis qu´au titre de Frère servant.

On ne doit recevoir aucun homme professant un état vil et abject. Rarement on admettra un artisan, fût-il maitre, surtout dans les endroits où les corporations et communautés ne sont pas établies. Jamais on n´admettra les ouvriers compagnons dans les arts et métiers”

O que se pode traduzir assim em português

“Nenhum profano pode ser admitido em loja antes dos 21 anos; com a condição de ser livre e não servil e, portanto, dono de sua pessoa. Não se admitirá a um criado qualquer que seja, exceto na condição de Irmão servidor.

Nenhum homem deve ser recebido que possa exercer profissão vil ou abjeta. E raramente se admitirá um artesão, mesmo que seja um Mestre, especialmente em lugares onde corporações e comunidades não estão estabelecidas. Jamais se admitirão os trabalhadores chamados “Companheiros” nas artes e ofícios (supõe-se que na loja) “

O certo é que tal texto geralmente não aparece nas historiografias em uso, nem é reproduzido em quase nenhuma parte, chegando a poder concluir que há um manto de silêncio ou de ignorância sobre tal preâmbulo, que por outro lado está marcado e marca uma época e toda uma concepção sócio-política.

Podemos entender, lendo essa primeira parte, que há uma certa intenção de impedir que menores ingressem na fraternidade, o que é parcialmente lógico, ainda mais com os olhos do século XX, já que naquela época a introdução de crianças no local de trabalho era uma coisa bastante usual, o que não significa que algumas guildas tivessem alguma restrição quanto a isso; também pode ser considerado bastante lógico que não se recebesse aquelas pessoas que não eram “livres” em suas decisões, ou que tivessem um alto nível de autonomia pessoal, algo a que naquela época as mulheres não tinham direitos, e é por isso que em vista do texto do Régulateur, todos eles eram descartados como um valor para a loja.

Podemos compreender dentro da ideologia maçônica e social do momento, a rejeição absoluta à introdução em loja de qualquer pessoa que não estivesse “no prumo” com a concepção e uso moral, recusando, portanto, as pessoas “vis e abjetas…”.

Voltando à citação, é evidente que estamos diante de um texto presente no “Régulateur” antes de se declarar a Revolução, cujos considerandos vêm expressar, dentro da teoria das “elites de poder”, que a Maçonaria é concebida, pelo menos da perspectiva das “Luzes” como uma encarnação de um autêntico processo de renovação, que em muitos casos ela é, já antes mesmo da introdução do tema da religião natural, que será um dos “Leitmotifs” que permitirão o ecumenismo manifestado a partir de 1717 na maçonaria.

A projeção subsequente da Maçonaria constituirá no que poderíamos chamar de uma “elite política mundana”, em cujo seio podiam conviver a aristocracia liberal e a emergente burguesia, mais comprometida e progressista, embora, pela vontade dos catecismos revolucionários os converterá em antagonistas.

No texto fica meridianamente claro que se pretendia deixar de lado as massas, que evidentemente não poderiam acessar facilmente o seio das lojas, não por uma questão de classe, mas porque os encargos econômicos que a própria organização maçônica impunha. Por exemplo, as taxas da “Recepção” estavam nesse momento situados em torno de 50 libras, a metade do salário de um metalúrgico, o que em si era um filtro importante para que “um qualquer” pudesse fazer parte das elites de poder de que se nutriam as lojas.”

Os Compagnons franceses têm costumes idênticos aos dos maçons operativos. O Companheiro, para se formar e graduar a mestre de ofício realiza o chamado “Tour de France” durante dois anos, indo de “cayenne” (na prática o equivalente a lojas) onde se hospeda e aperfeiçoa sua técnica específica. Isso está ocorrendo nesse momento.

Companheiros do Dever diante de uma Cayenne.

 

Companheiros do Dever

 

No incêndio da catedral de Notre Dame de Paris, foi encontrada uma inscrição datando a realização do trabalho pelos Compagnons du Devoir

e diante da destruição do telhado, o governo informou que havia madeira (carvalho) suficiente para refazer o telhado segundo as plantas originais, mas que talvez não houvessem “Compagnons du Devoir” suficientes para realizar o trabalho.

Os maçons também podiam circular de cidade em cidade, obtendo hospitalidade na loja local, trabalho ou ajuda para prosseguir em seu caminho.

O texto a seguir foi publicado no blogue SOUTHWEST STORY BLOG sobre os Companheiros do Dever, e para os conhecedores da Maçonaria, ficará mais que evidente que eles são a perpetuação da maçonaria operativa no século XXI.

Em nossa revista publicamos uma matéria sobre eles  em  COMPANHEIROS DO DEVER

 

 

 

 

 

Tradução J. Filardo

“COMPAGNONS DU DEVOIR” UMA SOCIEDADE SECRETA DA IDADE MÉDIA

Carla

Cartola de madeira em exposição no Museu de Toulouse dos “Compagnons du Devoir” – traduzido como “Companheiros do Dever” – também conhecido como “Compagnons du Devoir e du Tour de France”, é uma associação francesa de artesãos que data da Idade Média. Por tradição, para aprender seus ofícios, os “companheiros” fazem um percurso pela França e passam por aprendizagem ao longo do caminho com diferentes mestres.

Historicamente, a organização e seus muitos ramos datam do apogeu da construção das catedrais góticas no norte da França durante os séculos XII e XIII, quando alguns dos primeiros “companheiros” desafiaram o edito real de 1268 do rei Luís IX, que governava em verdadeiro espírito medieval que os artesãos eram proibidos de deixar seus senhores e viajar para aprimorar seus ofícios. De fato, esse decreto lançou um véu de segredo sobre a associação e a movimentação e afiliação de aprendizes, véu este que dura mais ou menos até os dias atuais. Durante esses dias, há muito tempo, a localização das primeiras “cayennes” – albergues para aprendizes administrados por uma “mãe” – foram transmitidas em sigilo pelo boca a boca, e a afiliação a um ramo dos “companheiros de dever” só era sinalizada usando um ou dois brincos projetados para representar o ofício: “Os carpinteiros usam, pendurados em uma das orelhas, um esquadro e um compasso e, no outro, uma cruz, os telhadistas um pequeno martelo, os padeiros um rastelo. Cada um desses artesãos acha que só eles têm o direito de embelezar seus brincos.  Os acessórios dos brincos causavam batalhas”.

Segundo a lenda, as raízes da organização remontam à época da construção do Templo de Salomão em meados do século 10 AEC, com os fundadores dos “Compagnons” sendo o rei Salomão, um mestre Tiago – Maître Jacques – um cortador de pedra e Pai Soubise o arquiteto do templo.


Balcão do museu dos “Companheiros” de Toulouse com imagem do Padre Soubise
A primeira menção indiscutível das práticas dos “Companheiros” remonta ao ano de 1420, quando o rei Carlos VI escreve uma ordem para os sapateiros de Troyes, onde se dizia que:
“Vários companheiros e trabalhadores do referido ofício, de várias línguas e nações, vieram e foram de cidade em cidade para trabalhar e aprender, conhecer, ver e conhecerem uns aos outros.”

Podemos dizer que os “Compagnons du Devoir” foram os intercambistas da Idade Média!

Em 1539, pela “Ordenança de Villers-Cotterêts”, o rei Francisco 1º reforçou as proibições promulgadas por vários de seus antecessores:
“De acordo com nossas antigas ordenanças e julgamentos de nossas cortes soberanas, proibimos qualquer irmandade de comerciantes e artesãos em todo o reino. […] é proibido a todos os companheiros e obreiros reunir-se em corpo sob o pretexto de irmandades ou de outro modo, cabalar entre si, colocar um na  casa do ou fora dela ou impedir de toda forma que os senhores escolham eles mesmos os trabalhadores franceses ou estrangeiros”.

Durante o século XVIII e a primeira metade do século XIX, a organização dos “Compagnons du Devoir”, apesar dos interditos reais e até religiosos – já em 1655 a igreja acusou os ramos dos seleiros, sapateiros e alfaiates dos “Companheiros” de serem “ímpios”, adotarem práticas sacrílegas e supersticiosas ”- passou por um período de fortalecimento enquanto atuava como um sindicato nos moldes atuais.
Durante a segunda metade do século XIX, em parte devido à revolução industrial e em parte devido à legalização dos sindicatos, os “Compagnons” conheceram um período de declínio que só viria a se reviver após a Segunda Guerra Mundial (durante a guerra, as associações foram perseguidas pelos ocupantes alemães por as considerarem próximas dos maçons).

Hoje, a “Compagnonnage” é uma rede tradicional de mentoria, através da qual jovens – homens e mulheres – aprendem um ofício enquanto se aprimoram ao vivenciar a vida comunitária e viajar.  “Compagnons du Devoir” está listado no patrimônio cultural intangível da UNESCO.

Bem no centro de Toulouse, na Rue Tripière no. 12, há um pequeno museu de 3 salas, dedicado principalmente ao ramo de carpinteiros dos Companheiros. Ele expõe algumas obras-primas de madeira – ou trabalhos de graduação – de carpinteiros, mas também de outros artesãos.  A entrada no museu é gratuita, mas ele está aberto apenas às quartas-feiras, das 14h às 17h e fechado durante o mês de agosto.

Bola de Rugby de madeira

Trabalho de madeira da graduação

Trabalho de madeira da graduação

Museu dos Companheiros de Toulouse

Museu dos Companheiros de Toulouse

Museu dos Companheiros de Toulouse

Museu dos Companheiros de Toulouse está alojado em uma antiga “caiena”

Coelhos de terracota representando os aprendizes.

Em Paris, o Museu do Compagnonage fica no sexto arrondissement, na Rue Mabillon, n. 10. É bem pequeno e  merece uma visita. Entrada franca e funciona de Segunda a Sexta das 14:00 às 18:00 hs.