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Seria a munição dos EUA Culpada pelos Defeitos em Recém Nascidos em Basra?


Tradução José Filardo

Por Alexander Smoltczyk

 

Christian Werner / DER SPIEGEL

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Os canhões estão silenciosos no Iraque há anos, mas em Basra e Fallujah, o número de casos de câncer e defeitos congênitos está em ascensão. Os moradores acreditam que as munições americanas com ponta de urânio exaurido são culpadas e alguns pesquisadores acham que eles poderiam estar certos.

 

Parecia, em primeiro lugar, que o velho estava bêbado. Ou talvez que se ele estivesse lendo mitos gregos. Mas, Askar Bin Said não lê nada, especialmente não lê livros, e não há não há álcool em Basra. Na verdade, diz, ele viu as criaturas que ele descreve com seus próprios olhos: “Alguns tinham apenas um olho na testa. Ou duas cabeças. Um tinha uma cauda como um cordeiro pelado. Outro parecia ser uma criança perfeitamente normal, mas com cara de um macaco. Ou a menina cujas pernas tinham crescido juntas, metade peixe, metade humana.”

Os bebês que Askar Bin Said descreve foram trazidos a ele. Ele os lavou e envolveu em mortalhas, e então ele os enterrou no solo seco, cheio de pedaços de plástico e tampas de latas de seu próprio cemitério, que é de sua família há cinco gerações. É um cemitério só para crianças.

Embora sejam pequenos, os túmulos são abertos tão juntos, que estão quase um em cima do outro. Parece que alguém derrubou carrinhos de brinquedo cheios de cimento e então riscou os nomes e as datas da morte neles antes que endurecessem. Em muitos casos, não há nem mesmo espaço para a data de nascimento. Mas isso realmente não importa, porque na maioria dos casos, as duas datas são as mesmas.

Existem vários milhares de túmulos no cemitério, e outros cinco a 10 são adicionados todos os dias. O grande número de sepulturas é certamente notável, diz Bin Said. Mas, acrescenta, não há “realmente uma explicação” por que existem tantos bebês recém-nascidos mortos e deformados em Basra.

Outros, porém, têm realmente ideia do motivo. De acordo com um estudo publicado em setembro no Boletim de Contaminação Ambiental e Toxicologia, uma revista profissional baseada na cidade alemã de Heidelberg, houve um aumento de sete vezes o número de defeitos congênitos em Basra entre 1994 e 2003. De 1.000 nascidos vivos, 23 tinham defeitos congênitos.

Cânceres duplos e triplos

Da mesma forma, valores altos são relatados de Fallujah, uma cidade que foi fortemente disputada na guerra de 2003. De acordo com o estudo de Heidelberg, a concentração de chumbo nos dentes de leite de crianças doentes de Basra era quase três vezes tão elevada quanto os valores comparáveis em áreas onde não houve nenhuma luta.

Nunca antes fora registrada uma taxa tão alta de defeitos do tubo neural (“costas abertas”) em bebês quanto em Basra, e a taxa continua a aumentar. O número de casos de hidrocefalia (“água no cérebro”) entre os recém-nascidos é seis vezes mais alta em Basra do que nos Estados Unidos, conclui o estudo.

Desde 1991, Jawad al-Ali trabalhou como especialista em câncer no Hospital Universitário de Sadr (anteriormente Hospital Saddam), situado em Basra em num edifício de aparência sinistra. Ele se lembra do período após a primeira guerra do Golfo pelo Kuwait. “Não é apenas que o número de casos de câncer de repente aumentou. Tivemos também cânceres duplos e triplos, ou seja, pacientes com tumores em ambos os rins e no estômago. E havia também aglutinações familiares, ou seja, famílias inteiras que foram afetadas.” Ele está convencido de que isso está relacionado com o uso de munições de urânio. “Existe uma conexão entre radiação e câncer. Às vezes leva 10 ou 20 anos antes as consequências se manifestem”.

O termo munições de urânio refere-se a projéteis cujas ligas ou núcleos são feitos com urânio “empobrecido”, ou fracamente radioativo urânio, também conhecido como DU. Quando os soldados alemães são enviados ao exterior, eles recebem as seguintes informações: “Munições de urânio são projéteis perfurantes de blindagem com um núcleo de urânio empobrecido. Devido à sua alta densidade, este núcleo proporciona ao projétil um impulso muito alto e lhe permite perfurar a blindagem de carros de combate.”

Quando o DU explode, ele produz um pó muito fino de urânio. Quando as crianças brincam perto de tanques destruídos, elas podem absorver esta poeira através de sua pele, suas bocas e suas vias aéreas. Um estudo de 2002 da Universidade de Bremen no norte da Alemanha descobriu-se que mudanças cromossômicas ocorreram em veteranos da guerra do Golfo que tiveram contacto com munições de urânio.

O Ministério da defesa alemão contesta que não é a radiação que constitui uma ameaça para a saúde, mas a “toxicidade química do urânio”.

Vivendo em um lixão

A Royal Society de Londres apresentou um dos estudos mais abrangentes sobre a questão em 2002, mas ela só abordou a ameaça potencial aos soldados. Ela concluiu que o risco de danos por radiação é “muito baixo”, assim como o risco de toxicidade renal crônica provocada por pó de urânio.

Isso pode tranquilizar os soldados, mas não Mohammed Haidar. Ele vive em Kibla, um distrito em Basra, que, como outros da cidade, se parece com nada menos que um lixão. Kibla é um bairro de casebres improvisados miseráveis – com um líquido esverdeado e cintilante fluindo por esgotos abertos e recipientes de plástico cheios de material empodrecido.

Haidar, que leciona matemática em um colégio, poderia dar-se o luxo de viver em um bairro melhor. Mas ele gasta cada dinar disponível no tratamento de sua filha Rukya. A garota de três anos está sentado em seu colo, assemelhando-se a boneca de ventríloquo. Ela é uma adorável menina com tranças e fitas em seu cabelo. Mas ela não pode andar ou falar corretamente.

Quando Haidar vira sua filha, duas aberturas nas costas tornam-se visíveis. Ela tem uma fissura na coluna, o sinal visível externamente de hidrocefalia, bem como um tubo de drenagem implantado para remover o excesso de líquido cerebrospinal. Na Alemanha, crianças com casos como o dela são muitas vezes tratadas com cirurgia pré-natal, mas não em Basra. Na verdade, Haidar e sua esposa estão contentes que Rukya ainda esteja viva. Ela é sua primeira e única filha. “Ambos crescemos em Basra. Eu responsabilizo os Estados Unidos. Eles usaram DU. “Minha filha não é um caso isolado, diz Haidar.

O termo “DU” parece ser tão generalizado em Basra quanto são os defeitos congênitos.

Munição DU foi usada duas vezes na área de Basra: fora da cidade durante a guerra de 1991 e dentro da própria cidade em 2003, quando as tropas britânicas estavam avançando para o aeroporto. O lado ocidental de Basra é o distrito urbano com a maior incidência de leucemia entre crianças.

“Aqueles que eram crianças na primeira guerra são adultos hoje” diz Khairiya Abu Yassin da Agência de meio ambiente da cidade. Ela estima que 200 toneladas de munições DU foram usadas em Basra. O Ministério da defesa em Londres alega que as tropas britânicas usaram apenas cerca de duas toneladas de munição DU durante a guerra. De qualquer forma, os restos de tanques destruídos na guerra com a ajuda de munições DU se espalhavam pelas ruas até 2008.

Combustivel para Propaganda

Era impossível manter crianças e coletores de lixo reciclável longe dos destroços, diz Abu Yassin. “Nós instalamos sinais que diziam: Cuidado – Radiação. Mas, as pessoas não levam uma ameaça a sério quando ela não age como a bala de uma arma.”

DU é uma questão sensível, e nem todo médico em Basra está disposto a se manifestar oficialmente sobre ela. As razões para a reticência têm a ver com o regime ditatorial de Saddam Hussein: A ameaça de suposta radiação proveniente de restos de munição perfurante de blindagem forneceu combustível muito popular para propaganda.

Nos Estados Unidos, nenhum grande jornal ainda publicou uma reportagem sobre as doenças genéticas em Fallujah. O Guardian da Inglaterra, por outro lado, criticou o silêncio do “Ocidente”, chamando-o de uma falha moral e citou o químico Chris Busby, que disse que a crise de saúde de Fallujah representava “a maior taxa de danos genéticos em qualquer população jamais estudada”. Busby é co-autor de dois estudos sobre o assunto.

Ainda assim, é difícil identificar precisamente a causa dos defeitos. Anormalidades do cordão espinhal também podem ser desencadeadas por uma deficiência de ácido fólico no início da gravidez, por exemplo. Além disso, muito poucos iraquianos podem pagar exames regulares de gravidez. Como resultado, muitos embriões com defeitos genéticos são levados até o final da gravidez, em contraste com o que normalmente acontece na Europa ou Estados Unidos.

Wolfgang Hoffmann, epidemiologista da Universidade de Greifswald, no nordeste da Alemanha tem colaborado com colegas cientistas em Basra durante anos. “Defeitos congênitos muitas vezes parecem muito perturbadores em fotos”, diz ele. “Mas eles sempre são casos isolados e não são necessariamente úteis para identificar tendências.”

Hoffmann cita a falta de dados completos e questiona a confiabilidade epidemiológica dos relatórios. Ele acredita, no entanto, que indicações de aumento das taxas de câncer em Basra devem ser levados muito a sério, em parte porque os dados de Basra são mais confiáveis.

Buscando a verdade

Os “fatores de risco plausíveis” para a leucemia infantil, diz Hoffmann, “sem dúvida incluem o ambiente contaminado, mas também a falta de prevenção, o trauma sofrido pelos pais e a infraestrutura médica devastada.” O aumento estatístico do número de crianças com leucemia desde 1993 é também uma função de casos não terem sido totalmente documentados antes de 2003.

Janan Hassan, uma oncologista do Hospital infantil de Basra, participou de um estudo que acaba de ser publicado no Medical Journal da Universidade Sultão Qaboos em Omã. Ele afirma que, embora a taxa de leucemia infantil em Basra permanecesse estável entre 2004 e 2009, em comparação com outros países da região, há uma tendência de crianças de muito tenra idade desenvolver a doença.

Assim, ela acredita que as objeções são apenas parcialmente aplicáveis. Há um “forte aumento” de defeitos genéticos como causa de leucemia, observa ela. “E os casos estão vindo precisamente das áreas onde houve intensos combates. Como você explica isso? Dizendo que as exigências de informação mudaram?”

Sabria Salman deu o nome de Muslim ao filho, mas isso não o protegeu. Muçulmano, agora com 10 anos de idade, recentemente passou por cirurgia para remover um tumor de 500 gramas da parte superior de seu braço. Ele não grita mais de dor. Em vez disso, o garoto tem um sorriso permanente no rosto, como se ele já não tivesse forças para mudar a sua expressão. Ele transpira muito e tem dificuldade para respirar. Há um tubo de drenagem saindo do seu braço esquerdo e o braço direito está envolto em ataduras manchadas de vermelho ao longo das bordas.

Salman chama isso de “câncer nos músculos.” O garoto quebrou o ombro há dois anos, e desde então, seu corpo tem feito poucos progressos no sentido de curá-lo.

‘Bombas no Nosso Bairro’

O hospital paga pela quimioterapia, embora a radioterapia seria mais eficaz para seu tumor. Mas, radiação só está disponível no exterior ou em Bagdá, onde há uma lista de espera de cinco meses – e a família não têm mais muito tempo. A mãe reza para Alá, e quando o intérprete lhe pergunta de quem é a culpa pela aflição do filho, ela diz: “A culpa é da guerra. A poluição. Havia muitas bombas no nosso bairro.”

Urânio pode ser um fator, mas outras substâncias utilizadas na produção de bombas e munições também estão implicadas, metais pesados tóxicos, tais como chumbo e mercúrio. “O bombardeio de Basra e Fallujah pode ter aumentado a exposição da população a metais, possivelmente resultando no atual aumento de defeitos congênitos”, afirma o estudo de Heidelberg.

Além disso, quando o campo de petróleo de Rumaila perto de Basra foi incendiado em 2003, uma nuvem de fuligem cheia de partículas cancerígenas caiu sobre toda a cidade. E outro fator também poderia estar em jogo. Desde que Saddam foi deposto, os vizinhos do Iraque, Irã, Síria e Turquia, tem desviado substancialmente mais água dos rios Tigre e Eufrates. A corrente em Shatt-al-Arab, formada pela confluência dos dois rios, agora é tão fraca que a água salgada penetra no interior do Golfo Pérsico até Basra.

Isso significa que águas residuais provenientes de instalações industriais a jusante de Basra, tais como a refinaria de petróleo iraniana em Abadan, já não estão sendo adequadamente diluídas, aumentando a concentração de metais pesados nas águas subterrâneas.

Abu Ammar vive com sua família no terreno do antigo centro de comando naval de Saddam Hussein. Os alojamentos estão lotados, com 10 pessoas em um quarto, e a situação de várias outras famílias nas instalações não é melhor. É ainda outro bairro empobrecido de Basra – as riquezas dos poços de petróleo de Basra, onipresentes na vizinhança na forma de fumaça fedorenta tem ainda que pingar sobre as pessoas.

Três olhos para três crianças

Ammar desenrolou um tapete de plástico sobre o chão e colocou uma lata de 7-Up e um pastel para cada um de seus visitantes sobre o tapete. A família – ou o que resta dela – se agacha ao redor do tapete. Os bandidos de Saddam executaram dois irmãos de Ammar. O primo sentado ao lado dele ainda tem um pedaço de estilhaço de um ataque preso atrás de seu olho; a mãe morreu de desgosto; sua esposa já não sai de casa – “e estas são nossas crianças…”, diz ele.

Ele aponta para uma mulher de 21 anos, uma garota de sete anos e um garotinho, sentados um ao lado do outro. Eles não têm os mesmos pais, mas todos os três têm as mesmos faces estreitas, e juntos eles têm apenas três olhos.

Os soquetes de seus olhos ausentes parecem-se com o interior de uma ostra, leitoso e disforme. A jovem, Madia, frequenta a faculdade local. Ela não gosta de ir lá, diz, embora ela cubra metade do rosto com o véu. “O que causou isso? Acho que minha mãe inalou algum produto químico quando eu estava dentro dela,”, diz Madia.

É fácil atribuir a culpa por esses misteriosos defeitos congênitos a algo chamado “munição DU” fabricada nos EUA. É mais fácil do que pensar sobre os efeitos deletérios de chumbo e mercúrio sobre o solo e os tomates, ou da fuligem no ar e os materiais tóxicos na água. Mas isso não exime de responsabilidade aqueles envolvidos na guerra. Não é suficiente declarar que uma guerra acabou. Embora o Iraque agora tenha eleições e o tirano tenha sido enforcado, a guerra ainda está no solo, no ar e nas crianças.

Omran Habib chefia o Grupo de Pesquisa do Câncer de Basra. Ele obteve o seu doutoramento em Londres e agora trabalha como um epidemiologista do Hospital da Universidade de Basra. “A guerra fez uma enorme quantidade de danos aqui”, diz ele. “DU certamente não é bom para nossa saúde. No entanto, mesmo a presença de urânio na urina de pacientes não implica em causalidade.”

Uma Trouxa em Branco

A Organização Mundial de Saúde (OMS) atualmente está montando um relatório sobre a munição DU. Ele refletirá o estado atual das pesquisas sobre o assunto, mas dificilmente proporcionará quaisquer novas percepções. Com a ajuda da Universidade de Greifswald, um registro de câncer foi desenvolvido para a região de Basra e servirá como base para todos os estudos futuros. Ainda assim, mesmo que mais pesquisa seja necessária, se apenas por causa das crianças, ela virá tarde demais para muitos.

Certamente é tarde demais para o corpo deitado dentro de um pequeno pacote de material branco, amarrados em ambas as extremidades como um pedaço de doce, jazendo em uma pilha de sujeira ao longo da borda do cemitério infantil em Basra. Era para ser o seu primeiro filho, diz o pai, de pé ao lado do corpo. Ontem a criança estava ainda se movendo dentro da barriga da mãe. Hoje o pai simplesmente recebeu um pacote.

O lavador de corpos de plantão suspira alto enquanto cava a sepultura, na esperança de aumentar sua gorjeta. Então ele coloca o pacote no buraco, diz algumas palavras de oração, faz alguns ajustes no pacote e o cobre com terra. Afastado ao lado, uma galinha está bicando um pedaço de um recipiente de “Capri Sun” saindo do solo.

Depois, os homens fumam. O pai recebe um pedaço de papelão e escreve o nome de seu filho, copiando-o do certificado de nascimento e morte combinados que lhe deram no hospital. O coveiro vai arranhar o nome no cimento. O menino ia ser chamado Hussein Ali. O pai escreve o nome de seu filho morto pela primeira e última vez.

O homem permanece imóvel. Quem se imagina culpar em tal momento? Ele parece vazio, completamente perdido e privado de uma pequena vida.

Traduzido do alemão por Christopher Sultan

 

 

Publicado originalmente em http://www.spiegel.de/international/

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