Bibliot3ca FERNANDO PESSOA

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A cabala e o tema da Criação

cabalaCriação

Por Mestre Anatalino

criação

E criou Deus o homem à sua imagem; criou-o à imagem de Deus e criou-os varão e fêmea
Génesis, 1, 27)

Assim Deus, uma potência sem similitude,
Sentindo na sua alma uma solidão infinita,
Se fez estrela de extraordinária magnitude:
Este universo, mais a vida que nele habita.

Em seis dias de trabalho, com muito amor,
Ele fez o Cosmo, usando a própria energia.
E no último dia se compensou do seu labor,
Vendo o quanto era bonita a obra que fazia.

Mas ainda assim sentia-se só, num impasse,
Pois no mundo não encontrava consciência,
Nem uma voz que com Ele se comunicasse.

Então Ele fez o homem, a sua obra preferida;
Mas porque também lhe deu u’a inteligência,
Nunca mais Deus teve sossego na sua vida.
 [1]

“Depois quando permitiu que a noite existisse para que aparecessem as estrelas, Deus se volveu para a sombra que engendrou e a olhou para lhe dar forma.

“Imprimiu uma imagem no véu com que tinha coberto a sua glória e essa imagem lhe sorriu e quis que essa imagem fosse a sua para criar o homem à semelhança dela.

“Experimentou, de certo modo, a prisão que queria dar aos espíritos criados. Olhava a forma que deveria ser, algum dia, a do homem, e o seu coração se enterneceu, pois presumiu as queixas da sua criatura.

“Tu, que queres submeter-me à lei, dizia, prova-me que esta lei é justa, submetendo-te tu mesmo a ela.

“E Deus se fez homem para ser amado e compreendido pelos homens.” (…) [2].

A antropologia bíblica é um tanto ambígua quando fala da criação do homem. Em Génesis, 1: 2, 6, encontramos o seguinte texto: “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança, e presida aos peixes do mar, às aves do céu, e aos animais selváticos e à toda terra, e a todos os répteis que se movem sobre a terra.” Deste estranho enunciado, extraímos logo que Deus não estava sozinho quando fez o homem, pois a sua locução foi registrada no plural (façamos o homem). E depois, que o homem foi criado a partir de um modelo que já existia, ou seja, o próprio Deus ou quem com Ele estivesse naquele momento.

Até aí tudo bem, pois poderíamos estar diante apenas de uma questão de linguagem. Podia dar-se o facto de que Deus estivesse falando consigo mesmo e se referisse no plural como muitas vezes fazemos quando estamos conjecturando. Afinal, sendo Ele o ser plurimorfo, omnividente e sempiterno que é, não haveria nada de estranho aí.

O problema vem depois quando a Bíblia trata da descendência de Adão. Então ficamos sabendo que o primeiro filho do casal terrestre foi Caim, e o segundo Abel. Os dois entraram em conflito e Caim, o mais velho, matou Abel. Deus não gostou nem um pouco dessa acção e colocou sobre a face de Caim uma marca. Depois mandou que saísse das cercanias do Éden, onde a família de Adão fora morar após a sua expulsão do paraíso. A marca, segundo o cronista bíblico, foi posta em Caim para que, aquele que o achasse e identificasse, não o matasse, pois se o fizesse, Deus tiraria do assassino a sua vingança.

Ressalta, desde logo, que Caim e Abel não eram os únicos seres na terra além dos seus pais Adão e Eva. Pois se fossem, quem seriam aqueles que achariam Caim e o matariam?

E Deus confirma esta assertiva dizendo:

Não será assim, mas qualquer que matar Caim será castigado sete vezes mais.(…) E Caim, tendo-se retirado da face do Senhor, andou errante sobre a terra, e habitou no país que está ao nascente do Éden” [3].

Logo adiante se diz que Caim conheceu a sua mulher e com ela gerou um filho a quem chamou de Enoc. Mesmo considerando o que se diz em Genesis, 5; 4, que Adão viveu oitocentos anos e gerou filhos e filhas, de certo a mulher de Caim não podia ser sua irmã, pois Caim tinha “se retirado da face do Senhor” e habitado num país ao nascente do Éden, longe, portanto do local onde habitava a sua primitiva família.

Assim, pois, tudo está a indicar que a família de Adão não foi a primeira entre a espécie humana, e que quando Deus o fez “à sua imagem e semelhança”, outros seres humanos já existiam sobre a face da terra.

Temos duas teses a considerar sobre este assunto. A primeira, antropológica, sugere que a criação do homem, conforme sugere a Bíblia, é uma metáfora que exprime o momento em que o homem se destaca entre as espécies animais, adquirindo a capacidade de reflectir. É o momento em que ele se torna humano. Por isso se diz que o Senhor Deus o “formou do barro da terra e inspirou no seu rosto um sopro de vida.” O “barro da terra” é o primitivo ancestral humano, evoluído da sua matriz animal, que “capturou” o sopro divino, quando desenvolveu a camada neural que lhe deu a capacidade de reflectir. Este sopro, é, segundo a tradição cabalística, a Palavra Sagrada, ou a Sabedoria, que permitiu ao homem colocar “ordo ab chao”, ou seja, adquirir consciência de si mesmo e do mundo e organizá-lo de uma forma lógica.

Esta tese, sustentada pelos antropologistas e psicólogos do evolucionismo, vê o homem como resultado de uma longa evolução que se processou no correr de milhares de anos e que foi conduzida pela sua necessidade de desenvolver meios cada vez mais eficazes de sobrevivência, em face de um ambiente hostil. Assim, o homem, à medida que ia descobrindo essas estratégias, que o fazia cada vez mais sábio, ia também adicionando novas camadas neurais à estrutura do seu cérebro, as quais foram também legadas aos seus descendentes como herança biológica.

Visão cabalista

Outra tese, defendida por correntes místicas da Cabala e da Teosofia sustentam que o homem não foi feito pelas mãos de Deus, mas sim pelos seus dignatários angélicos, os Elohins. Por isso temos a expressão no plural “façamos o homem à nossa imagem e semelhança.” Quer dizer, não foi “um Deus” que fez Adão, mas vários deuses, trabalhando conjuntamente. Esta seria uma ideia que estaria mais consentânea com a própria crença dos rabinos de Israel, produtores da Bíblia, pois um dos pressupostos fundamentais da sua religião é que Deus não tem forma nem nome conhecido pelos homens, razão pela qual nenhuma imagem sua poderia ser reproduzida. Este, aliás, constituía dois dos mais severos mandamentos do Decálogo, e quem os violasse era punido com a morte mais horrível [4].

Destarte, dizer que o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus, constituiria, pois, uma grande incoerência que os sábios de Israel jamais cometeriam. E é neste sentido que Jesus ensina que Deus é Espírito e como tal deve ser adorado. Esta tese é mais consentânea com a ideia da “Sabedoria Mestre de Obras”, conceito núcleo da Maçonaria moderna [5].

Segundo a tradição cabalística, também adoptada pela Gnose e pelos adeptos da teosofia, Adão, o homem da terra, foi feito conforme o modelo do “homem do céu”, conhecido como Adão Kadmon. Este “modelo” seria inspirado na própria imagem dos anjos, estes sim, semelhantes ao homem na sua forma. Por isso é que o Livro da Criação (Bereschit), ao se referir à criação do mundo diz “ Bereschit bara Elohim…” ( No começo os Elhoim criaram…). Isto quer que o mundo, e por consequência, o homem, não é exactamente uma criação directa de Deus, mas sim de uma entidade por Ele criada, ou seja, o Elhoim, que na Cabala é o Demiurgo. Com efeito, esta ideia vem expressa no Zhoar quando diz que “…se o mundo tivesse sido obra da essência divina chamada Jehováh, tudo nesse mundo teria sido indestrutível; mas como o mundo é obra da essência divina chamada Elohim, tudo está sujeito à destruição; e é por isso que a Escritura diz : “Vinde e vede as obras de Elohim que estão sujeitas à destruição (schamoth) sobre a terra” (…) “Rabbi Issac disse: (…) se o mundo tivesse sido criado pelo nome de misericórdia, isto é, pelo nome de Jehovah, todo o mundo teria permanecido indestrutível; mas como o mundo foi criado pelo nome do rigor, isto é, pelo nome de Elohim , tudo é perecível nesse mundo” (Zohar, I,58,b).

A Cabala é uma forma de linguagem que explora o recurso da metáfora para explicar os grandes segredos contidos na Bíblia. Assim, a criação do homem, segundo esta linguagem, não pode ser lida literalmente como uma acção de Deus, fazendo um molde de barro e insuflando nele a vida, com um mero sopro. Trata-se de uma operação muito mais complexa, que integra todas as recentes descobertas feitas pelos cientistas do átomo, os antropólogos e a moderna engenharia genética, defensores da teoria evolucionista [6].

João Anatalino Rodrigues

Notas

[1] Soneto publicado no nosso livro “O Parto de Deus”, Clube dos Autores”, 2010

[2] Comentários do Rabino Shimon Ben Iochai à Sepher Dziniouta- O Livro do Mistério Oculto, a bíblia cabalística. Cf. Eliphas Lévi – As Origens da Cabala – Ed. Pensamento, São Paulo.

[3] Idem, 4;16

[4] A idolatria (fabricar e adorar estátuas e figuras de deuses) e a blasfémia (tomar o nome de Deus em vão),eram os dois crimes mais graves na antiga legislação hebraica. Eram punidos com a morte por apedrejamento.

[5] Segundo o estudo de Whybray, a “Sabedoria-Mestre de Obras” é a personificação poética de um atributo de Deus: o da Criação. Esta bela construção metafórica, que a Maçonaria aproveita para informar a sua face espiritualista, é uma inspiração que serve bem aos seus propósitos filosóficos, pois no jargão maçónico, trata-se de colocar “Ordem no Caos”, ou seja, reunir o que está disperso, promover sinergia e construir o edifício social, da mesma forma que a “Sabedoria-Mestre de Obras” faz com o Cosmo. A este respeito veja-se a nossa obra O Tesouro Arcano, Madras, 2013.

[6] A este respeito vejam-se as obras de Fritjof Kapra, que fazem uma integração entre as modernas teorias do nascimento do universo, a criação do homem e as antigas tradições registradas nos livros sagrados.