Bibliot3ca FERNANDO PESSOA

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PAUL GAUGUIN (1848-1903), Pintor Maldito e Mártir

 Tradução J. Filardo

Por –Philippe VERDIER

Pintor maldito e mártir, Gauguin foi consagrado como o iniciador da pintura moderna na exposição do centenário na Orangerie em 1949. Uma parte da obra, as esculturas e as cerâmicas, ainda permanece no cone de sombra da irradiação projetada pelo pintor. A personalidade de Gauguin reforça a mensagem de suas criações, porque ele era um daqueles artistas cuja biografia não se confunde, em essência, com o conjunto de seus trabalhos. Sua vida, como a de Rimbaud, foi uma aventura. Ligado primeiro ao impressionismo e depois ao movimento simbolista, ele iria denunciar o primeiro em nome do que Kandinsky chamou princípio espiritual da arte, e se proteger contra os perigos de desviacionismo literário inerente ao segundo, em nome da perfeita coincidência do significante e do significado na obra plástica. O exotismo de Gauguin expressa a busca dolorosa que ele perseguiu para redescobrir o valor existencial dos símbolos mágicos e religiosos, laços de harmonia entre tempo integralmente vivido pelo homem e o mistério de um destino que se inscreve na intemporalidade. Seu trabalho contribui para a documentação do antropólogo e do historiador de religião comparada. Como Tolstoi e Van Gogh, Gauguin sentiu até a ansiedade que a falha que separa o Cristianismo humano atual e procurou em Victor Hugo, um consolo sem dogma, uma ordem nova onde todo o mal cessaria de vir “da forma dos deuses.”

As fugas em direção às fontes

Paul Gauguin partiu constantemente durante a sua existência para o paraíso da natureza selvagem, onde tudo é inocência e liberdade. Este retorno em direção que ele possuía a montante, e que suas primeiras lembranças o fizeram vislumbrar, está primeiro em seu próprio sangue que ele percebe: além da imagem de sua mãe, que morreu em 1867, ele juntou o atavismo de sua avó, Tristan aventureira e intelectual socialista, que o conectava a um bisavô vice-rei do Peru e aos conquistadores da América do Sul, de quem o pintor tinha o tipo físico. Eugène Henri Paul Gauguin nasceu em Paris, mas deixou a França bem jovem. Em Lima, ele falou espanhol dos dois aos sete anos. Ele retornou à França como uma espécie de sonho. Aos nove anos, ele deixa Orleans para uma primeira escapada na floresta de Bondy, um peregrino já portando a vara e a mochila aos ombros. Após a formatura e até 1871, ele passou mais de três anos viajando na Marinha do Estado. Em seguida, ele passou dez anos de felicidade constante, casado com Mette Gad, a dinamarquesa, e ganhando bem sua vida no banco Bertin. Em 1883, ele rompe o fio da sua sorte, demite-se do banco, provocando assim o destino que iria separá-lo de sua esposa, isola-lo de seus filhos e se enfurnar, até sua morte nas Ilhas Marquesas, sob privação material, sofrimento físico e ruína moral.

Gauguin começou a desenhar em 1873, a pintar antes de 1876 e, a partir de 1877, a esculpir, primeiro em material frio e clássico, o mármore. Suas primeiras pinturas são

nature morte a la tete de cheval
Natureza Morta com Cabeça de Cavalo

de um autodidata formado em contato com a coleção de seu tutor, Gustave Arosa, e seu irmão, Aquiles, rica em Delacroix, Courbet, Corot, Pissarro e Jongkind. Camille Pissarro se tornaria o mestre de primeira hora de Gauguin, que se liga à escola Impressionista, com quem expôs de 1879-1885. Antes de sua primeira estada na

Bretanha (1886), a fuga com seu amigo, o pintor Charles Laval para o Panamá (abril de 1887) e o breve refúgio na Martinica, Gauguin sente despertar dentro dele uma vocação para a cerâmica, à maneira de Bernard Palissy, decadente e bárbara. Ele produziria em alguns meses cinquenta e cinco vasos. Ele retoma formas e temas de que ele se lembrava de ter visto em vasos peruanos da cultura Chimu na casa de sua mãe e na cerâmica pré-colombiana de Arosa – da mesma forma que a estranha Natureza morta com cabeça de cavalo, pintada em Copenhagen em 1885, recua “mais longe que os cavalos do Parthenon até o cavalo da minha infância, o bom cavalo de madeira.”

La Orana

Durante a segunda estadia na Bretanha (1888), os debates e experiências de Gauguin e Émile Bernard levariam a um duplo ato de nascimento do Sintetismo e do Cloisonismo (é preciso comparar Visão após o sermão da primeira estadia e Bretonnes et veau da segunda). O mergulho em direção às artes primitivas (O Cristo amarelo, Cristo Verde ou Calvário Bretão) só aconteceram com a terceira viagem (1889). Entre as pinturas de 1889 parecem o ídolo (em La Belle Angele), o simbolismo religioso sincrético, anunciando la Orana Maria (Salve, Maria) de 1891, e a Última Ceia de 1899, com Nirvana: Retrato de Meyer de Haan e os arquétipos sexuais e solares: a mulher do Caribe que vem da estalagem do Pouldu, se inspira ao mesmo tempo em uma dançarina do pavilhão javanês da Exposição Mundial de 1889 em Paris e nos girassóis de Van Gogh.

 

La Belle Angele

 

Dançarinas do pavilhão javanês da Exposição Mundial de 1889 em Paris
A Última Ceia

 

Girassóis de Van Gogh

 

Nirvana: Retrato de Meyer de Haan

 

 

 

A Mulher do Caribe

 

 

 

 

 

 

 

A solidão e os deuses

Com o fracasso da tentativa de vida comum com Van Gogh em Arles (1888), o projeto de um ateliê no Sul tinha sido abandonado. A escola de Pont-Aven, reunindo os pintores em férias no campo em torno de Gauguin e Bernard, trazia uma doutrina. Mas as condições não foram reunidas para lançar as bases de um grande ateliê antiacadêmico e um credo simbolista que teria agrupados os artistas em uma atmosfera criação comunal. Gauguin ainda alimentava a quimera de um estúdio de reposição das energias nos trópicos: em 1890-1891, ele planejava fugir para Tonkin, em Madagascar ou para Taiti, onde ele escaparia da asfixia de uma sociedade dominada pelo dinheiro. Seu instinto escolhe Taiti. Depois de uma estadia na ilha por mais de dois anos, ele retorna à França em 1894, a fim de desfrutar de um breve período de calma financeira e moral. Mas duas vendas em Paris, cujo balanço foi negativo ou desastroso (Durand-Ruel e sala Drouot), insinuaram que sua nova forma de pintura, selvagem e encantatória, com títulos ainda mais incompreensíveis que bárbaros, desencorajava mais que o estilo ainda impressionista da década anterior, e uma última estadia na Bretanha lhe fez sentir sua desorientação e isolamento total na Europa. Retornando ao Taiti (1896-1901), a miséria tornou a solidão insuportável. Ele se preparou para sair da vida, pintou um testamento monumental (a tela intitulada De Onde vimos? O que somos? Para onde estamos indo?)

De onde vimos? Para onde vamos?

no final de 1897, concluída em janeiro de 1898, o registro que completa a segunda versão de Noa e partiu para terminar seus dias nas montanhas. Um excesso de arsênio o devolveu ao sofrimento de viver. Mas em 1901, ele estava novamente no limite da sua resistência. A miragem de uma solidão mais completa em uma natureza ainda mais primitiva, a fé em um renascimento final de sua imaginação criativa o levou a Hiva-Hoa nas Marquesas em meados de setembro de 1901. Nesta ilha, Paul Gauguin, fiel à memória do liberalismo militante que havia erguido seu pai Clovis contra Louis Napoleão em 1849, atacou a administração colonial e a onipotência da missão católica e ensinou aos nativos os seus direitos. A morte o salvou de uma derrota completa e a vingança só foi conseguida com sua obra.

Em 1888, Gauguin havia escrito à sua esposa que os dois componentes de sua natureza, a sensível – de uma sensibilidade dada aos valores morais da civilização ocidental – e a indígena, apenas a indígena ainda estava viva. Ele sonhava enxertar na raiz selvagem uma nova poética. Como os navegadores do século XVIII em busca de um paraíso sexual, como os heróis de J. Conrad e R.L. Stevenson, ele era assombrado pela visão de uma ilha nos Mares do Sul, rodeada de calma extática, povoada por criaturas simples e misteriosas, onde os batimentos cardíacos seriam um só com o silêncio da noite e as amenas brisas, onde o divino renasceria nos ídolos encarnando “toda a natureza, reinando em nossa alma primitiva, consolação imaginária de nossos sofrimentos naquilo que eles contêm de vago e de incompreendido diante do mistério da nossa origem e de nosso futuro “. No Taiti, Gauguin experimentou a decepção de não encontrar ídolos. Ele precisou recriar uma mitologia polinésia através de um processo que teria sido uma mistificação, se ele não a tivesse tornado inseparável de seu universo artístico. Os deuses perseguidos pelos europeus recuperam em sua obrada uma existência mágica. O Taiti não tinha jamais possuído esculturas em pedra ou madeira comparáveis às ​​da Ilha da Páscoa de que Gauguin tinha podido ver um espécime na Exposição Mundial de 1889, mas simplesmente postes enfeitados com pano, os anicônicos Atouas, efígies de deuses do céu erguido nos recintos sagrados (são vistos na tela Parahi te Marae, aqui é o templo dos sacrifícios)

Parahi te Marae – Aqui é o templo dos sacrifícios

e os tiis, figuras totêmicas, guardiões de templos a céu aberto. Gauguin expandiu para a escala monumental que lhe sugeriam fotografias de baixos-relevos do templo javanês de Baraboudour, os otikis, objetos simbólicos sexuais e amuletos de feiticeiros, ou qualquer outro tipo de utensílios decorados com figuras, provenientes das ilhas da Polinésia e vendidos no mercado do folclore em Papeete. Ele os incorporou de uma forma perfeitamente plausível do ponto de vista mítico, nas suas paisagens (por exemplo, Hina Maruru, Obrigado a Hina,

Hina Maruru

deusa da Lua e dos renascimentos cíclicos na natureza) e recobria suas telas e baixos-relevos em madeira das ilhas com alfabeto sagrado decorativo, tomado emprestado das tatuagens e das impressões feitas com sucos amarelos ou vermelhos de essências vegetais sobre os tapas (têxteis obtidos por martelamento da casca interna de árvores).

Em um único domínio, os jardins das delícias do Pacífico satisfaziam a esperança do pintor. O nu, feminino ou masculino, havia até então ocupado pouco espaço em sua obra (Étude de nu ou Justine a costureira, 1887; La Baignade, O Banho, obra da fase bretã que antecipa tipologicamente Pape Moe [Água misteriosa], 1893). Este tema que se tornara importante na obra de Gauguin viria a ser estatisticamente reduzido pela queima de vinte Marquisiennes pintadas nuas, ordenada em Hiva Hoa pelo bispo após a

O Ouro de Seus Corpos

morte do artista. Gauguin sustentava consistentemente que seus nus eram castos, porque o desenho e a cor os distanciavam da realidade, dando-lhes um estilo, ou seja, elevando-os à expressão de uma forma universal do ser humano. Deve-se acrescentar que em muitos nus de Gauguin (Parau Api [As notícias do dia] Idole a la perle) as personagens masculinas ou femininas estão desfocadas, sugerindo uma aparência andrógina, que é ao mesmo tempo da criatura primitiva abaixo do pecado original e o símbolo dos dois princípios complementares de criação e da dualidade da vida e a morte. E o ouro de seus corpos traduz pela irradiação sem idade de uma argila telúrica viva “um certo luxo bárbaro

Justine, a Costureira

de outros tempos”, que expressa também Poèmes barbares, Contes barbares. Em um de seus Poèmes barbares (1862), Leconte de Lisle colocou em versos a cosmogonia de Taaroa – “o universo grande e sagrado que é apenas a concha de Taaroa” – que J.A. Moerenhout tinha de um velho padre, o último testemunho dos cultos polinésios destruídos e que tinha registrado em Viagens às ilhas do Grande Oceano (1837). Gauguin bebeu da mesma fonte, mas ele pretendia em Noa Noa ter recolhido lábios de Tehura, sua vahinée do Taiti. A gênese da tela Manao Tupapau (Espírito do morto observando) também mostra como um estudo de nu da Oceania, semelhante à menina nua deitada de bruços pintada por Boucher,

Boucher, Marie Louise O’Murphy

integra a mitologia, pela introdução do terror (figura de fantasmas, flores pintadas com fosforescências de fogo-fátuo) e a música, com tons de violeta, azul escuro, amarelo-laranja e amarelo esverdeado que dão uma atmosfera sombria e opulenta. Para Gauguin assim como para Mallarmé, qualquer coisa pode se tornar tema de poemas, mesmo uma religião esgotada repetida por um vidente sem raízes com as tetas de uma humanidade que permaneceu primitiva.

O espírito observando

Técnica e estética

Nas telas de seus dez primeiros anos, Gauguin escovava os tons pouco distantes uns dos outros, o que lhes dava uma aparência escamosa, uma harmonia monótona de cor “grosseira” (JK Huysmans). Ele adquiriu de Pissarro sua habilidade em pintura, mas seu mestre secreto permaneceu Degas, de quem ele transpôs duas dançarinas sobre uma curiosa caixa de madeira esculpida, verdadeiro baú de marinheiro (1884). Da Martinica à segunda estadia na Bretanha, ele evoluiu muito rapidamente do impressionismo ao Sintetismo. O Sintetismo define uma forma não-naturalista, expressando a ideia da obra de arte por um desenho conciso e pela saturação subjetiva da cor. “A cor pura! é preciso sacrificar tudo a ela. A intensidade da cor indicará a natureza da cor “(Antes e Depois). Gauguin cultuava Rafael e Ingres, mas também Delacroix; ele proporá a equação “a linha é a cor” porque o valor espiritual de uma reforça o da outra. O ato de criar reside na aliança da forma e da cor, afastando-se da realidade. A linha expressa o potencial vital da obra de arte. As linhas retas, estas árvores finas e sincopadas que pontuam a paisagem de Gauguin, tendem ao infinito, e é por isso que, apesar de sua aparência clássica, suas pinturas não são clássicas; Maurice Denis errou ao chamar Gauguin de “um Poussin sem a natureza clássica.” Em contraste, as linhas curvas limitam, se replicando, traduzem a incapacidade de atingir o absoluto. A cor traz em vagas de ondas sensoriais o que há, ao mesmo tempo, de mais universal e mais secreto na natureza. Vibração musical, ela é, como a música na estética de Schopenhauer, a objetificação da “vontade” por trás do mundo das aparências. “Quando meus tamancos caem no chão de granito [a Bretanha], eu ouço o som abafado, sem brilho e poderoso que eu procuro na pintura.” Gauguin, eventualmente, denunciará o impressionismo que el identificará com um sistema de vibração somente óptica, “arte puramente superficial, completamente material “. Sua incursão no pontilhismo será simples curiosidade (Natureza Morta “ripipoint”, 1889).

Ripipoint

Ele olhará do alto os adeptos do divisionismo “químicos jovenzinhos que acumulam pequenos pontos”. Em 1885, Gauguin tinha encontrado os acentos de Baudelaire para afirmar, para cantar que “existem tons nobres, outros comuns, harmonias tranquilas, consoladoras, outras que excitam por sua ousadia”.

É esta interdependência de técnicas e não a corrente simbolista em literatura que coloca Gauguin no caminho das correspondências e de seu próprio estilo pictórico. O enigmático arbusto de fogo ao pé da árvore azul ultramarino de Alyscamps (1888) irrompe já entre os motivos peruanos e os morcegos chineses sobre os painéis de uma biblioteca entalhada e policromada em 1881. As cores, cada vez mais “longe da natureza” nas pinturas após a etapa da Martinica e a produção de cinquenta e cinco vasos são “uma vaga lembrança da cerâmica torcida pelo grande fogo. Todos os vermelhos, os violetas arranhados pelas explosões de fogo”. Gauguin tinha notado que os esmaltes cobrindo uma cerâmica depois da passagem pelo forno estão em perfeita harmonia, porque eles foram fixados, sem furos nem recobrimento, ao mesmo tempo, em uma gama que ultrapassa as complementares. Ele recriou esse efeito em pintura graças ao Cloisonismo que não mistura as cores, mas entrelaça umas nas outras. O Cloisonismo do toque em Gauguin vai a par com o lado ornamental e, portanto, abstrato do seu desenho. Ele mesmo descreveu como “abstração completa, muito especial” o desenho do autorretrato chamado Les Miserables que ele executou para Van Gogh. “Os olhos, a boca, o nariz  são como flores

Alyscamps

de tapete persa.” Esta observação surpreendente é iluminada por aquela que ele fez nos salões do Oriente Médio no Louvre sobre os frisos esmaltados dos palácios Aquemênidas, cujos “monstros musculares têm músculos com contorno de flores e onde rosáceas decorativas se parecem com musculatura “(Le moderniste, 4 de junho de 1889).

 

Paul Gauguin (1848-1903), autorretrato com a inscrição “Os Miseráveis, ao Vincent.” Pont-Aven, no final setembro 1888. Óleo sobre tela (A. 0.45 m; L. 0,55 m). Rijksmuseum Vincent van Gogh, Amsterdam.  créditos: AKG

Depois de 1895, Gauguin não fez mais cerâmicas, mas apenas esculturas em madeira, que, como seus vasos, deviam seu estilo à colocação em relevo, através da decoração, do próprio material. Ele também fez alguns ídolos, máscaras-retratos. Em uma carta a G. D. Monfreid ele reconheceu sua falha de artista decorador: “Dizer que eu nasci para fazer uma indústria da arte e eu não consegui realizar, seja o vitral, móveis, cerâmica … Eis ao fundo as minhas habilidades, muito mais do que a pintura propriamente dita.” Ele estava enganado, exceto naquilo que sua atração pelas artes decorativas, que são em sua essência menos representativa do que a pintura, o levou a inventar uma pintura onde a linha e a cor ornamental são as cifras do símbolo. Se ele tivesse tido o campo totalmente livre, ele talvez tivesse se transformado no equivalente a um William Morris francês. Mas Gauguin derrotado, Gauguin crucificado (Autorretrato, perto do Gólgota e Cristo no Jardim das Oliveiras que também é um autorretrato), foi muito mais que um dos arautos da Art Nouveau, ele foi o libertador da arte moderna.

Cristo no Jardim das Oliveiras