JOSCELYN GODWIN
Tradução: S.K.Jerez
No final do século treze, a tentativa de impor uma civilização cristã na Europa estava consumada. As catedrais góticas e as igrejas irradiavam sua influência sobre cada comunidade, grande ou pequena. As ordens mendicantes como os franciscanos não só pregavam o Evangelho, mas passavam sua vida compartilhando a pobreza de seus mais humildes ouvintes. As universidades floresciam com um plano de estudos realizado sobre as Sete Artes Liberais (Gramática, Lógica, Retórica, Aritmética, Geometria, Música e Astronomia) coroado pela Teologia. Os cultos aos santos e às suas relíquias, com peregrinações aos seus santuários, eram fruto de interminável variedade e interesse, e de um reconhecimento para com os espíritos do lugar. Uma crescente devoção pela Virgem Maria oferecia um enfoque feminino para o amor e a oração que até então era ausente no monoteísmo. Poucas pessoas na Europa tinham alguma dúvida acerca da existência do Céu, do Purgatório e do Inferno e de como ir a parar em cada um desses lugares.
No passado, sistemas comparáveis de crenças e controle social perduraram por milhares de anos, como testemunham as civilizações da China, Egito, Peru e as da Europa dos construtores megalíticos. Em todos os casos conhecidos a hierarquia estava encabeçada por um rei sagrado, a quem os seletos membros serviam de ordem administrativa. Eles possuíam conhecimentos científicos e cosmológicos que incorporaram nos monumentos de pedra e, sem dúvida, em outras formas mais efêmeras. A vida das massas estava estruturada com base em rituais e obrigações religiosas, que se transformavam, gradual e insensivelmente, na lei e ordem secular.
Assim era na Idade Média. Idealmente, o Sacro Imperador Romano era o rei sagrado cuja autoridade era respeitada por todos os governantes regionais. A hierarquia da igreja, ajudada pelas ordens monásticas, proporcionou o aparato administrativo. Mas, diferentemente das velhas teocracias, nem bem este edifício havia sido concluído, rachaduras começaram a aparecer em sua estrutura. Claro que há indivíduos aos quais pode se atribuir culpa pela autodestruição da civilização cristã. Mas, fazendo uma retrospectiva, parece impossível perceber valores eternos em uma idade que alguns designam com o termo hindu Kali Yuga ou, segundo o esquema cíclico grego, Idade de Ferro. Nada parece durar por muito tempo.
O século quatorze começou sua triste história de decadência com a dissolução brutal da Ordem dos Cavaleiros do Templo, e a terminou com a rivalidade entre dois papas. Logo viria o cisma final entre as igrejas Católica e Ortodoxa, depois a Reforma e a Contrarreforma, as Guerras Religiosas, o chamado Iluminismo e o desconsolador e desalmado estado conhecido como a Modernidade. Mas essa história não é a que nos interessa. Estamos procurando traçar a influência daqueles que sempre zelaram pelo estado espiritual de nossa civilização, e não os encontraremos de um lado ou de outro dessas disputas.
As imagens, os símbolos, mitos e arquétipos são o que verdadeiramente designa uma cultura, mais que a teologia e a fé em coisas invisíveis. Na Idade Média, estes coincidiram; no Renascimento, se separaram, e os séculos quinze e dezesseis viram uma troca de revolucionárias dimensões no imaginário europeu. As imagens cristãs não desapareceram, mas acoplaram a elas um grupo de imagens rivais, renascidas da antiguidade greco-romana, com as quais conviviam de má-vontade.
Uma vez, na Siena medieval tardia, uma estátua romana de Vênus foi desenterrada. Isto aconteceu em 1345, em uma época na qual o nu não era utilizado gratuitamente na arte, mas só quando o realismo requeria, como nas representações de Adão e Eva. A estátua, exemplo do cânone clássico de beleza, foi montada sobre um pedestal na praça e foi admirada pelo povo. Mas os dois anos que se seguiram, foram cheios de catástrofes para a cidade. Temendo que sua idolatria houvesse ofendido a Deus e à Virgem, os piedosos sieneses baixaram a sua Vênus e a desfizeram em pequenos pedaços, que enterraram. Este instrutivo relato, contado por Titus Burckhardt em seu livro sobre Siena, ilustra a natureza ambígua das imagens do mundo pagão: eram tremendamente atrativas, mas traziam consigo um sopro de enxofre. Havia uma forte tradição teológica de que os deuses pagãos eram apenas os demônios caídos do bando de Satã, que haviam se divertido antes da vinda de Cristo inventando falsas religiões para ludibriar a humanidade.
No século seguinte o perigo foi esquecido. A adulação à Antiguidade se difundiu por todas as partes e os modelos greco-romanos foram ansiosamente imitados por escultores, pintores, arquitetos, poetas, dramaturgos e filósofos. Mas estes artistas não pararam de produzir obras sobre temas sagrados, como sabe qualquer um que já se aborreceu com as intermináveis virgens com seu menino dos museus de arte italianos. Não obstante, uma crescente moda na vida secular, que começou com as artes decorativas e se estendeu à escultura e arquitetura, favoreceria os temas clássicos. Logo, eles se tornaram a norma, junto com a educação em latim e grego, preferida pelos humanistas. As casas da aristocracia forma adornadas rapidamente com a iconografia da Metamorfose de Ovídio e da Eneida de Virgílio, com deuses e deusas pagãos, e, coisa que não carece de significado, com figuras desnudas.
Imagine-se a diferença entre passar os impressionáveis anos da infância vendo a iconografia da igreja e os Livros de Horas, e crescer entre paredes pintadas com os Amores de Júpiter e os Trabalhos de Hércules! Não importava que os mitos clássicos fossem conhecidos como pura ficção e suas divindades consideradas, no melhor dos casos, como alegóricas: as imagens eram poderosas e memoráveis. Uma razão para isso é que, pela primeira vez em muitos séculos, o erotismo havia se tornado um tema aceitável para as artes visuais. Isso continuaria assim através da hipocrisia puritana do século dezenove, quando os temas clássicos serviram de pretexto para que os artistas pudessem continuar, sem ser molestados, com sua prática favorita de retratar corpos sensuais desnudos.
Ainda que a imaginação cristã e pagã coabitassem nas oficinas dos artistas, destinadas, respectivamente, ao uso sagrado e ao secular, os usuários devem ter percebido sua incompatibilidade. Alimentada principalmente na mente inconsciente, esta incompatibilidade explodiu em fervor religioso, fanatismo e conflito, como se as verdadeiras crenças das pessoas tivessem que ser protegidas a todo custo. E, verdadeiramente, os valores cristãos estavam sob fogo, pois poucos (e menos ainda os papas e cardeais do Renascimento) escolheriam voluntariamente o caráter abnegado dos Evangelhos em detrimento das coloridas e heroicas virtudes de Hércules, Enéas e dos romanos históricos.
Se o Renascimento constituiu um avanço ou retrocesso em comparação com a era medieval é uma pergunta à qual se pode responder segundo o gosto pessoal e os dogmas de cada um. A escola tradicionalista (Guénon, Coomaraswamy, Schuom, Burckhardt, etc.)* viu o Renascimento, com todas as suas glórias, como o princípio do fim da civilização europeia, devido o abandono aos princípios sagrados. Seguramente, para os camponeses, trabalhadores de ofício e serventes, que constituíam a maioria da população da Europa, o colapso da síntese medieval foi o primeiro passo da sua degradação, desde os seres humanos com a esperança do céu, ao proletariado urbano e, finalmente, aos consumidores.
Isso basta quanto aos efeitos exotéricos dos novos deuses. No campo esotérico, tiveram um efeito igualmente revolucionário.
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No segundo artigo, já citado, intitulado “Zoroastro”, mencionava Jorge Gemistos Pleton, enviado de Mistra ao Concílio de Florença em 1438-39, e sua noção de uma antiga teologia ensinada por uma cadeia de iniciados pré-cristãos. Entre os presentes de Pleton aos florentinos, segundo D. P. Walker, estava o canto dos hinos Órficos às divindades clássicas. Com isso, Pleton plantou a semente que Marcílio Ficino, tradutor das obras de Platão, Plotino e Hermes Trismegisto, cultivou com um efeito espetacular na tradição mágica europeia.
A magia de Ficino foi acrescentada a uma tradição existente de magia medieval que, por sua vez, havia derivado de origens árabes, tais como o famoso manual de evocação dos espíritos chamado Picatrix. A ideia fundamental era a doutrina das correspondências, que ensina que tudo no universo corresponde a outras coisas em níveis mais altos ou mais baixos de ser. Assim, por exemplo, o corpo humano corresponde às doze constelações do zodíaco, que regem seus doze órgãos principais. Os sete planetas têm sua correspondência no reino mineral como os sete metais, enquanto que no reino vegetal são regidos por distintas plantas e assim sucessivamente. O princípio da magia natural consiste em que, manipulando algo em um determinado nível, são atraídas as influências daquilo que lhe é correspondente em outro nível. Dessa maneira, para dar um exemplo simples, usar um anel de ouro atrai as nobres qualidades do Sol, enquanto que uma pulseira de cobre atrai as influências amáveis de Vênus.
As fontes árabes também falavam da magia operada através de agentes conscientes, anjos ou demônios, cujas categorias são ordenadas segundo as leis de correspondência e aos quais se pode dar ordens mediante o ritual apropriado. Mas os perigos de negociar com demônios (que poderiam até assumir a personalidade de anjos) faziam desta uma atividade igualmente arriscada tanto para cristãos quanto para muçulmanos.
A afluência da antiga literatura filosófica e da sabedoria grega expandiu muito estes horizontes. Para Ficino, que não era um ingênuo diletante, os tratados herméticos e os escritos de Plotino esclareciam muitas coisas obscuras, como o mecanismo pelo qual a magia natural funciona. Uma vez mais, a chave era a imaginação. Era a energia imaginativa que abria a conexão entre um nível e outro, e quanto mais forte atuasse, mais certeiros seriam os resultados. O combustível com o qual funcionava era Eros (o amor ou o desejo), e a substância na qual seria impresso era o Spiritus, ou espírito sutil que penetra em todo o universo material.
Baseando-se nestes princípios, Ficino desenvolveu um tipo de magia planetária na qual o mago se rodeava de cores, olores, substâncias e música do tipo correspondente ao planeta cujas influências desejava atrair. Estes captariam as influências através de suas próprias correspondências e o ajudariam na concentração intensa de sua vontade e imaginação. Um ponto de discussão entre os magos do Renascimento era se o planeta deveria ser concebido como um objeto puramente natural, ou como um ser animado, provavelmente um anjo.
Poderia suscitar-se a questão de que, se o desejo da pessoa é lícito, por que não simplesmente rezar a Deus ou aos santos para isso? Executar uma operação mágica parece, para o crente conservador, um insulto à eficácia da oração e à Sabedoria de Deus, que pode atendê-lo ou não. O mago poderia argumentar que a magia é simplesmente uma operação no mundo natural, que opera com o conhecimento especializado da criação de Deus e que, portanto, não é mais ímpia que a agricultura. Além de tudo, os agricultores não seguem a recomendação de Cristo: “Não penseis no amanhã”, mas dependem de seu conhecimento das leis da Natureza e atuam em conformidade com elas. Mesmo quando o mago se dirige a um espírito ou anjo, isso é pior que fazer uma oração comum para um santo?
Como no caso da síntese medieval (ver artigos: IX: “As Catedrais” e X: “As Artes da Imaginação”) a nova imaginação pagã do Renascimento operava em dois níveis, o exotérico e o esotérico. Os novos palácios e jardins, pinturas, esculturas, objetos decorativos, gravuras e livros, que eram a antítese das catedrais góticas e a arte cristã medieval, estavam sob domínio público. Ninguém podia evitar a influência do novo ambiente imaginal, e poucos queriam fazê-lo, já que abria os sentidos ao Eros da beleza terrena. Inadvertidamente, os europeus se tornavam platônicos: enquanto a corrente cristã principal desdenhava a beleza natural e a atração erótica, a filosofia de Platão as abraçava, como o primeiro sinal das asas sobre as quais a alma se elevaria, eventualmente, ao conhecimento da beleza intelectual.
Nos círculos mais esotéricos dos humanistas muito educados era igualmente impossível evitar a sedução da filosofia clássica e o desafio inerente que isso apresentava para a visão cristã do mundo. A linhagem de sábios pagãos de Pleton, adotada por Ficino e pelos humanistas florentinos, abriu uma visão do passado mais distante que era muito diferente do estreito sectarismo do Velho Testamento. Os egípcios, babilônios, persas, gregos e romanos já não eram classificados como gentios, fora do rebanho dos eleitos, mas como filhos de Deus, cada um dotado da sabedoria apropriada a seu tempo e lugar. Os recém-descobertos textos clássicos podiam ser explorados para fins de instrução e não apenas por curiosidade e para aprimorar o uso do latim e do grego.
Os habitantes das velhas cidades europeias ainda vivem no meio da evidência dessa imaginação dual; a catedral gótica e as igrejas de um lado, e os palácios do Renascimento com sua iconografia contrária, do outro. É uma rica – muito rica – combinação, mesclando duas visões de mundo que, com todos os esforços bem intencionados para reconciliá-las, continuam sendo um enigma sem solução na história da consciência. Moisés e Homero; César e Cristo; gostemos ou não, estas são as raízes gêmeas de nossa herança espiritual. Tradução: L. H.
NOTA
*Nota do tradutor. O autor se expressa desta maneira de acordo com a fachada da escola “tradicionalista” manipulada por Schuon e seus seguidores. Este erro é comum nos Estados Unidos e, em geral, na língua inglesa. Assim também em Alan Watts: ver o prefácio de A arte de Ser Deus, e outros autores. Ver igualmente SYMBOLOS Nº 11-12, 1996, págs. 253 e ss. Guénon, segundo seus próprios termos, se negou a ter discípulos e recusou a paternidade de qualquer escola.
http://www.symbolos.com/s21godwin_nuevos_dioses.htm