Bibliot3ca FERNANDO PESSOA

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A Maçonaria e o novo Código de Direito Canónico: uma conciliação possível?

Publicado em FREEMASON.PT

Por Fernando Monteiro e Cláudia Neves da Silva

Código de Direito Canónico

Índice

  • Introdução
  • A Maçonaria
    • De Agremiação de Pedreiros à Espaço Especulativo
    • Maçonaria: definição e princípios
  • Maçonaria X Igreja Católica
    • A “Machinatio” Maçónica
    • O novo Código de Direito Canónico
  • Considerações Finais
  • Referências bibliográficas

Introdução

No dia 28 de abril de 1738, o papa Clemente XII promulgou a bula In eminenti apostolatus specula, que entrou para a história, por ser a primeira condenação pontifícia da Maçonaria. Apenas 21 anos separavam este documento da data que se costuma indicar como o início da Maçonaria moderna: 1717. A pergunta que fica é: quais razões, de facto, levaram a Santa Sé a condenar uma sociedade de homens que, pelas suas características, ainda não podia ser suficientemente conhecida das autoridades romanas daquele tempo? Entre as várias tentativas de resposta, Alec Mellor, advogado católico francês iniciado na Maçonaria, a 29/03/1969 sustenta que “o motivo da condenação não era religioso […] os motivos do Papa eram de ordem política e ligados ao destino da infeliz família real dos Stuart, destronada e refugiada em Roma, sob a protecção da Igreja.” (apud Hortal, 2002, p. 7). Para Benimeli, no entanto, “esta hipótese, [é] totalmente insustentável do ponto de vista histórico, à luz da documentação vaticana da época.” (Benimeli; Caprile; Alberton, 1998, p. 28).

O próprio documento do papa Clemente XII é algo obscuro na sua redacção. Compreende-se, porém, melhor resumo dele feito na bula Providas Romanorum Pontificum, promulgada pelo papa Bento XIV, a 18/05/1751. Nesta segunda condenação à Maçonaria, seguindo as directrizes da condenação anterior, enumeram-se seis razões para a condenação. A primeira é que, nas tais sociedades e assembleias secretas, estão filiados indistintamente homens de todos os credos; daí ser evidente o grande perigo para a pureza da religião católica; a segunda é a obrigação estrita do segredo indevassável, pelo qual se oculta tudo o que se passa nas assembleias secretas; a terceira é o juramento pelo qual se comprometem a guardar inviolável o segredo; a quarta é que tais sociedades são reconhecidamente contrárias às sanções civis e canónicas; a quinta é que em muitos países as ditas sociedades maçónicas foram proscritas e eliminadas por leis de príncipes seculares; a última, enfim, é que as tais sociedades de maçons são reprováveis por homens prudentes e honestos (Hortal, 2002, p. 8).

Para Jesus Hortal, (2002, p. 8) numa leitura superficial, dá a impressão de que deixando de lado o segredo, sobre cuja natureza e conteúdo nada se diz nas condenações, não há nada de verdadeiramente grave, capaz de justificar a pena de excomunhão cominada aos maçons. Um exame mais atento, no entanto, permite vislumbrar motivos doutrinários mais profundos.

O motivo real parece advir do “grande perigo para a pureza da religião católica”, estampado no primeiro motivo, entre os aduzidos na bula papal. O problema mais profundo parece residir, portanto, na reunião de homens de diversas religiões e credos que poderá levar a considerar a religião católica apenas como um caminho possível entre outros muitos. O indiferentismo e o relativismo religiosos não eram, no século XVIII, apenas hipóteses teóricas, mas atitudes bem frequentes nos ambientes iluministas. O próprio facto da reunião de homens de diversas religiões não era nem é uma heresia, mas levantava a desconfiança dos guardiães da fé. (Hortal, 2002, p. 10).

Duzentos e cinquenta anos após a primeira condenação, a posição da Igreja parece não ter mudado muito (Hortal, 2002, p. 10). A partir desta constatação decidimos por analisar a relação Igreja Católica e Maçonaria, por meio da leitura de dois importantes documentos publicados pelo Vaticano, por intermédio da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé: a Carta do cardeal Seper (1974) e a Declaração do cardeal Ratzinger (1983).

A Maçonaria

De Agremiação de Pedreiros à Espaço Especulativo

É tarefa inútil querer precisar o momento exacto do aparecimento da Maçonaria, uma vez que as suas origens se perdem num passado de mitos e lendas, remontando ao rei Salomão e outros personagens do velho Testamento (Azevedo, 1996-97, p. 180). Difícil saber onde termina o facto histórico e começa o mito. Ambos fazem parte do quotidiano vivido pelos maçons, nos seus rituais, nas suas tradições, no seu imaginário e, sobretudo, na sua identidade (Morel; Souza, 2008, p. 15).

Há, no entanto, um ponto de concordância entre os estudiosos quanto à filiação directa da Maçonaria moderna à antiga Maçonaria de ofício, dita operativa. “Tudo, porém, parece indicar uma evolução a partir das corporações de pedreiros, surgidas na Idade Média, para a construção de grandes catedrais góticas.” (Hortal, 2002, p. 12).

A historiadora Célia Marinho Azevedo aponta para a necessidade de compreensão das raízes etimológicas do termo franco-maçonaria, para um maior entendimento sobre as peculiaridades que cercavam as sociedades de franco-maçons em relação a outras guildas existentes durante a época medieval. Paralelamente aos artesãos reunidos em ofícios regulares, a partir do século XIII, sob a égide do feudo ou de uma cidade, havia outros artesãos que escapavam a todas as obrigações e sujeições locais, usufruindo da liberdade de circulação. O único poder então existente capaz de conceder o privilégio das franquias era a Igreja católica. E foi sob a sua tutela que se organizaram e se desenvolveram essas confrarias laicas de artesãos privilegiados conhecidos como Francs-mestiers, ffremason, masonfrre ou ffremaceons.(Azevedo, 1996-97, p. 180).

Marco Morel e Françoise Jean Souza (2008, p. 40) afirmam que os homens ligados à arte da construção, em função da natureza itinerante do seu trabalho, acabavam por não se vincularem a nenhuma cidade ou feudo, possuindo o privilégio da livre circulação e da não sujeição à servidão e aos impostos. Como consequência desta prerrogativa, que na época era concedida pela Igreja, origina-se o nome franco-maçom ou pedreiro-livre. “A palavra ‘franco’ qualifica o indivíduo livre da servidão. Já a palavra ‘Maçom’, originária do francês, língua oficial dos ofícios, quer dizer pedreiro, não só o operário, mas também os arquitectos, chamados mestres de pedraria.”

As finalidades das antigas corporações de ofício dos pedreiros-livres, todavia, ultrapassavam as questões puramente profissionais, uma vez que a franco-maçonaria se encontrava carregada de conteúdos religiosos expressos na adopção de símbolos cristãos e na estreita relação com o clero. Cada corporação de ofício possuía um santo padroeiro e a sua sede era estabelecida numa igreja ou capela. “Além dos deveres religiosos que se impunham, o ofício dos pedreiros-livres assumia preocupações caritativas, como o socorro aos doentes e a missa para os mortos” (Morel; Souza, 2008, p. 40).

A partir dos séculos XVI e XVII, as agremiações de pedreiros-livres começaram a admitir os “membros aceitos”, ou seja, homens não vinculados ao ofício da construção. Os maçons “aceitos” ingressavam na confraria interessados em participar de uma nova forma de associação, que garantia o intercâmbio e o acolhimento dos maçons durante as suas deslocações pelas cidades. Além disto, “as confrarias ofereciam a possibilidade de compartilhar entre si preciosos conhecimentos filosóficos e esotéricos”. Em consequência desta política de abertura aos “aceitos”, o elemento novo foi se tornando cada vez mais numeroso, a ponto de o carácter operativo da ordem ser substituído por uma finalidade de natureza puramente especulativa. (Morel; Souza, 2008, p. 41).

No século XV, a Maçonaria operativa começa a entrar em declínio, e no século seguinte, quase deixa de existir, sobretudo devido à Reforma Protestante ocorrida na Inglaterra. Todas as corporações de ofício foram suprimidas por Henrique VIII. As catedrais já não eram mais erguidas, pois aos olhos dos puritanos elas eram monumentos da religião católica e, portanto, consideradas perigosas, de modo que muitas delas foram desfiguradas ou parcialmente demolidas. A mesma investidura foi dirigida contra todas as outras estruturas de tipo semelhante, de modo que as velhas lojas de maçons construtores, que tinham surgido para erguer catedrais, viram-se sem trabalho (Haywood, 19–, p 56).

Soma-se a isto o facto de o estilo renascentista ter colocado um ponto final na construção das majestosas construções da Idade Média. O novo estilo de construção, mais simples e menos dispendioso, acabou por substituir vantajosamente o difícil e complexo estilo ogival, fazendo com que a gloriosa corporação dos pedreiros-livres declinasse aos poucos, até entrar em franca decadência (Aslan, 1997, p. 16).

Além disto, há o desenvolvimento dos estudos e a formação de verdadeiras escolas de arte na Renascença, onde o segredo da construção acaba por se tornar inútil. A arquitectura passa a ser estudada em tratados impressos e não apenas através da transmissão oral dos conhecimentos dos mestres-maçons, fazendo com que as lojas ou grémios de pedreiros-livres, se esvaziassem das suas funções e conteúdo (Hortal, 2002, p. 13).

Durante o século XVII, percebe-se na Inglaterra e na Escócia uma manobra para garantir a sobrevivência dessas lojas de pedreiros, já bastante acometidas pelo malogro das construções. Grande parte dos historiadores maçons concorda que as feições da Maçonaria moderna ou especulativa remontam a 1717, marco da fundação da Grande Loja de Londres, que converteu a Maçonaria numa espécie de escola de formação humana de carácter universal e secreto, reunindo homens de diferentes raças, religiões e línguas, com o objectivo de alcançar a perfeição por meio do simbolismo de natureza mística e/ou racional, da filantropia e da educação (Benimeli apud Barata, 1994, pp. 78-99).

Para Hortal (2002, pp. 35-36) “A Maçonaria moderna, considerada para além das lendas e dos mitos, é fruto, talvez o mais representativo, do Iluminismo”. Não é por acaso que na Maçonaria se encontram, em todas as latitudes, duas características do Iluminismo: “a confiança absoluta nos poderes infalíveis da razão humana e da experiência, e o sentimento da imensidão da natureza, governada pelas leis férreas do mecanicismo, nem sempre favoráveis ao homem”. Segundo o autor, as lojas maçónicas, sob o manto do segredo, prestavam-se perfeitamente para a difusão das ideias iluministas, frequentemente consideradas subversivas pelos governos civis. “No fundo, trata-se do […] ideal iluminista que pretendia dissipar as trevas de um mundo ensombrecido pela ignorância, mediante o esforço inteligente do ser humano, capaz, por si só, de atingir a verdade”. (Hortal, 2002, pp. 35-36).

Maçonaria: definição e princípios

O conceito de Maçonaria recebeu, de maçons e anti maçons, ao longo dos tempos as definições mais variadas (Hortal, 2002, p. 11). O Grande Oriente do Brasil (GOB), órgão responsável pela administração de lojas maçónicas sob a sua respectiva jurisdição, conceitua a Maçonaria como: “uma instituição essencialmente filosófica, filantrópica, educativa e progressista”.

Filosófica porque nos seus actos e cerimónias ela trata da essência, propriedade e efeitos das causas naturais, investigando as leis da natureza e relaciona as primeiras bases da moral e da ética pura. Filantrópica porque não está constituída para obter lucro pessoal de nenhuma classe, senão, pelo contrário, as suas arrecadações e os seus recursos se destinam ao bem-estar do género humano, sem distinção de nacionalidade, sexo, religião ou raça, procurando conseguir a felicidade dos homens por meio da elevação espiritual e pela tranquilidade da consciência. É progressista porque partindo do princípio da imortalidade e a da crença num princípio criador regular e infinito, não se aferra a dogmas, prevenções ou superstições e não põe nenhum obstáculo ao esforço dos seres humanos na busca da verdade, nem reconhece outro limite nessa busca senão o da razão com base na ciência. Os seus princípios são a liberdade, a igualdade e a fraternidade.

A liberdade dos indivíduos e dos grupos humanos; a igualdade de direitos e obrigações dos seres e grupos sem distinguir a religião, a razão ou a nacionalidade; a fraternidade de todos os homens, já que são todos oriundos de um mesmo criador (GOB, 2011, p.1). Numa perspectiva académica, Eliane Colussi define a Ordem dos Pedreiros Livres como:

[…] associação fraternal, possuidora de uma organização em ritual e símbolos na qual o segredo ocupa papel fundamental. É uma instituição que foi e permanece sendo acessível principalmente ao sexo masculino e que tem por objectivos o aperfeiçoamento intelectual da sociedade, dos seus filiados, e a promoção da acção filantrópica interna e externa; caracteriza-se por não orientar política e religiosamente os seus membros. (apud Silva, 2009, p. 77).

Maçonaria X Igreja Católica

Se a Maçonaria operativa manteve estreitos laços com a Igreja católica, gozando inclusive dos privilégios das franquias, o mesmo não se pode dizer em relação à Maçonaria moderna, também chamada especulativa, inaugurada em 1717, com a fundação da Grande Loja de Londres, eleita desde cedo pela Igreja católica como sua principal inimiga.

A forma secreta de reunião, o sigilo sobre tudo o que ali se passava, o deísmo religioso, a propagação dos ideais iluministas e a grande adesão que provocou, renderam-lhe a oposição do clero e de alguns governos civis. A primeira condenação pontifícia da Maçonaria deveu-se a Clemente XII, na sua Carta Apostólica In eminenti, datada de 28 de Setembro de 1738.

O mesmo fez alguns anos mais tarde, a 18 de Maio de 1751, Bento XIV, com a Constituição Providas. Pio VII com a Constituição Ecclesiam a Jesu Christo (13-9-1821); Leão XII com a Constituição Quo graviora (13-3-1825); Pio IX com a Constituição Qui pluribus (9-11-1846), com a alocução Quibus quantisque (20-4-1849), com a constituição Nostris et nobiscum (8-12-1849), com a Encíclica Quanta cura (8-12-1864), com a alocução Multiplices inter (25-9-1865), com a Constituição Apostolicae Sedis (12-10-1869), com a Carta Quamquam (29-5-1873), com a Carta Exortae (29-4-1876); e depois Leão XIII com a Encíclica Humanum genus (20-4-1884) (Benimeli; Caprile; Alberton, 1998, p. 23). Eis parte da condenação de Clemente XII:

Homens de todas as religiões e seitas, sob a aparência de honestidade natural, por um pacto estreito e impenetrável, conforme leis e estatutos por eles criados, obrigando-se sob juramento, pronunciado sobre a Sagrada Escritura e sob penas graves a ocultar, por um silêncio inviolável, tudo o que praticam nas sombras do segredo’ […]. resolvemos e decretamos condenar e proibir as mencionadas sociedades, assembleias, reuniões, corrilhos ou conventículos de franco-maçons. (Benimeli; Caprile; Alberton, 1998, pp. 23-25).

Leão XII, na constituição apostólica Quo graviora, de 13/03/1825, condenou genericamente todas as sociedades secretas. Precisamente nesse documento aparece pela primeira vez a formulação que passará para o primeiro Código de Direito Canónico: a de considerar a Maçonaria como uma sociedade que tem como finalidade maquinar (conspirar) contra a Igreja e os legítimos poderes do Estado. (Hortal, 2002, p. 45-46). De Pio IX a Leão XIII encontra-se nada menos do que 350 intervenções contra a Maçonaria, que veem nas lojas maçónicas um local apropriado para conspirações contra a Igreja e os regimes monárquicos.

O historiador Alexandre Mansur Barata (2006, pp. 127-128) sustenta que a Igreja Católica condenou uma associação que, de facto, conhecia muito pouco, não sabia o que era, nem quais eram os seus objectivos. Acrescenta que Clemente XII ao condenar e proibir a Maçonaria em 1738, não foi nada original, pois na medida em que a ordem dos pedreiros- livres começou a se expandir pela Europa, vários governos seculares, tanto católicos, quanto protestantes, receosos em relação ao seu carácter secreto, adoptaram medidas para coibi-la, como na Holanda (1735), Genebra (1736), França (1737), Suécia e a cidade de Hamburgo (1738).

Com base em Pedro Álvares Lázaro, Barata destaca que as motivações de Clemente XII para condenar e proibir a Maçonaria podem ser resumidas da seguinte forma: numa perspectiva teológica, por considerar a Maçonaria contrária aos princípios da Igreja Católica ao congregar homens de todas as religiões; numa perspectiva moral, na medida em que o segredo que cercava a sociedade de franco-maçons era um mecanismo para encobrir as maldades e as perversões praticadas pelos maçons; e, numa perspectiva política, o papa via no segredo maçónico um perigo que deveria ser obstado. (Barata, 2006, pp. 127-128).

Vista sob esse prisma, a condenação da Maçonaria pela Igreja Católica “somou ao conjunto de justificativas utilizadas como de ‘razão de estado’ para repressão aos maçons, um fundamento de natureza religiosa”. Não eram apenas os governos civis que estavam ameaçados pelas reuniões secretas dos maçons, mas também a fé católica, “o que no caso português significou a inclusão do pertencimento à maçonaria no rol dos crimes circunscritos à jurisdição inquisitorial.” (Barata, 2006, pp. 127-128).

Em 1917 foi promulgado o primeiro Código de Direito Canónico. Nele mantém-se a proibição de católicos se inscreverem nas associações maçónicas, com a mesma motivação tradicional: “os que dão o seu nome à seita maçónica ou a outras associações que maquinam contra a Igreja ou contra os legítimos poderes civis, incorrem, pelo próprio facto, em excomunhão simplesmente reservada à Sé Apostólica” (cânon 2.335).

Desta forma, o Código Canónico estabelecia uma presunção de direito: a acção conspiratória (machinatio) contra a Igreja e o Estado seria algo característico dos maçons e não precisaria de comprovação prática. Mas o diploma legal editado pela Igreja não se contentou em cominar a aludida pena. Para os religiosos maçons, estabelecia ainda uma serie de suspensões e privações, além de impor a obrigação e denunciá-los ao Santo Ofício (Hortal, 2002, p. 47).

A “Machinatio” Maçónica

É comum ouvir, entre católicos, argumentos em defesa da Maçonaria, sustentando que homens a ela filiada, durante vários anos, nunca viram nem ouviram qualquer tentativa de conspiração contra a Igreja ou o Estado. Mas noutros segmentos, igualmente católicos, ao contrário, saltam vozes que espalham a ideia da Maçonaria como um conjunto de conspiradores, dedicados a tramar conspirações tenebrosas contra tudo o que de bom e santo possa existir. “O Código de Direito Canónico de 1917 parece ir nessa direcção, quando fala de maquinação.” (Hortal, 2002, p. 48). Mas em que consistia essa machinatio, cujo protótipo eram as associações maçónicas?

Os principais canonistas interpretam a palavra latina machinatio como não significando necessariamente o planeamento de acções concretas, destinadas a destruir, pela força, a Igreja ou o Estado. Podia tratar-se de uma machinatio ideológica, ou seja, da transmissão sistemática de ideias que entrassem em conflito com as verdades católicas, mesmo que isso não fosse dito abertamente.

Existe a machinatio, escreve Regatillo, citando uma declaração do Santo Ofício, de 10/05/1884 – “se [a sociedade] pretende violar a liberdade e os direitos da Igreja, afastar os fiéis dela, relaxar a disciplina, subverter, por meios ilícitos, tanto aberta quanto clandestinamente, a organização social, a forma legítima de governo ou a seguridade do Estado”.

Não era preciso que a Maçonaria pretendesse fazer tudo isso; bastava este “pretender afastar os fiéis da Igreja”, para que pudesse ser enquadrada na condenação geral. O protótipo desta maquinação era, conforme o Código de Direito Canónico de 1917, a Maçonaria. (apud Hortal, 2002, p. 49).

De forma semelhante ao que ocorreu no campo do ecumenismo, também na questão maçónica houve algumas tentativas de abertura de diálogo, após a Segunda Guerra Mundial, ainda durante o pontificado de Pio XII (1939-1958).

A carta de 1974 e a tentativa de alcançar a paz

Durante o Concilio Vaticano II, alçaram-se vozes, ou mais exactamente, uma voz, a de d. Sérgio Méndez Arceo, então bispo de Cuernavaca, no México, pedindo a revisão da posição da Igreja em relação à Maçonaria. Em 6/12/1962 e em 20/11/1963 o bispo mexicano argumentou, na aula conciliar, em favor da aproximação entre católicos e maçons; mas especificamente, solicitou nova atitude pastoral em face da Maçonaria, argumentando sobre a possibilidade do reconhecimento de maçonarias que não maquinam contra a Igreja e os poderes do Estado.

Na reunião de 21 a 23 de Outubro de 1969, bispos de toda a Escandinávia (Suécia, Noruega, Dinamarca, Finlândia e Islândia) decidiram defender a mesma ideia de maçonarias que não conspiram contra a fé cristã. Nas Filipinas, encontros entre representantes da Igreja e da Maçonaria levaram a uma série de conclusões que pareciam mostrar a conciliabilidade entre o ser católico e a filiação às lojas maçónicas.

Dentro deste quadro incipiente de diálogo, o cardeal König, sucessor de Innitzer no Arcebispado de Viena, conseguiu formar uma comissão mista católico-maçónica, que acabou produzindo um documento conhecido como “Declaração de Lichtenau”, assinada por nove maçons e três teólogos católicos dos países de língua alemã, destinada ao papa Paulo VI e ao prefeito da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, cardeal Seper, como contribuição para o estudo de ulteriores medidas, propugnava a abolição das condenações canónicas a Maçonaria (Hortal, 2002, p. 56).

Como os acontecimentos se precipitavam, tornava-se necessária uma tomada de posição por parte das instâncias superiores da Santa Sé. Mesmo que ainda prematuro para a publicação de uma decisão definitiva, a 19/07/1974, a Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, enviou ao cardeal John Krol e algumas Conferências Episcopais uma carta sobre a questão que envolvia a relação Igreja/Maçonaria. Após lembrar as consultas realizadas por muitos bispos acerca da interpretação do cânon 2.335 do Código de 1917, que impunha a pena de excomunhão aos católicos que se filiassem na Maçonaria, a carta prosseguia:

Durante o longo exame da questão, a Santa Sé consultou diversas vezes as Conferências Episcopais interessadas de modo particular pelo assunto, a fim de tomar conhecimento mais acurado tanto da natureza e da actuação da Maçonaria nos nossos dias quanto do pensamento dos Bispos a respeito.
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A grande divergência de respostas, pela qual transparecem as situações diferentes de cada nação, não permitiu à Santa Sé mudar a legislação vigente, a qual, por isto, continua em vigor, até que nova lei canónica seja publicada pela competente Comissão Pontifícia para a revisão do Direito Canónico. No entanto, no exame dos casos particulares, é necessário levar em consideração que a lei penal está sujeita a interpretação estrita. Por conseguinte, pode-se ensinar e aplicar, com segurança, a opinião daqueles autores segundo os quais o cânon 2.335 se refere unicamente aos católicos que dão o nome às associações que de facto conspiram contra a Igreja.
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Em qualquer situação, porém, continua firme a proibição aos clérigos, aos religiosos e aos membros dos Institutos Seculares, de darem o nome a quaisquer associações maçónicas. (CNBB, boletim semanal de Notícias n. 230, de 23 de Agosto de 1974 apud Hortal, 2002, p. 58).

Pelo teor da carta, se depreende um alcance muito limitado. Restringe-se à interpretação do cânon 2.335, sem fazer qualquer menção aos demais dispositivos canónicos que se ocupam da Maçonaria. Ademais, sequer declara abolida a pena de excomunhão para os que se inscrevesse na Ordem maçónica. Apenas afirma que, de acordo com os princípios gerais da legislação canónica, essa pena nem sempre se aplicava. Não se verificando a machinatio de facto, a pena não deveria ser aplicada.

Todavia, a carta “Parecia insinuar o desejo de mudança, mas também transparecia a insuficiência para tanto dos dados recolhidos até o momento.” Por esta razão, a Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé declarava que a legislação vigente, relativa à Maçonaria, continuava em vigor e, para confirmar esta vigência, lembravam-se as proibições para os clérigos e os membros dos institutos de vida consagrada. (Hortal, 2002, p. 59).

O novo Código de Direito Canónico

No dia 25/01/1983 foi promulgado o novo Código de Direito Canónico. Já não havia nele qualquer referência explícita à Maçonaria. O polémico cânon 2.335 foi substituído pelo cânon 1.374, com a seguinte redacção:

Quem se inscreve em alguma associação que maquina contra a Igreja seja punido com justa pena; e quem promove ou dirige uma dessas associações seja punido com interdito (Benimeli; Caprile; Alberton, 1998, p. 224).

A imposição da “justa pena” não era mais automática, mas ficava à discrição do juiz ou da autoridade administrativa competente, que, de acordo com o que se dizia na Carta da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé de 1974, deveria aplicá-la apenas se ficasse comprovado que uma determinada associação maquina contra a Igreja.

Com isto, católicos simpáticos à Maçonaria viram, nessa redacção, como que uma confirmação das suas afirmações. “Se não está mais penalizada com excomunhão automática a inserção na Maçonaria – argumentavam -, segue-se que é licito ao católico inscrever-se nela” (Hortal, 2002, pp. 67-68). Como estas interpretações aparecem por toda parte e havia muitos católicos esperando a entrada em vigor do novo Código de Direito Canónico para se inscreverem na Maçonaria, a Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, agora sob a direcção do cardeal Ratzinger, viu-se obrigada a intervir outra vez no assunto. Em 26 de Novembro de 1983, na véspera da entrada em vigor do novo Código, publicou uma Declaração sobre as associações maçónicas, com o seguinte teor:

Foi perguntado se mudou o parecer da Igreja a respeito da Maçonaria, pelo facto de que no novo Código de Direito Canónico ela não vem expressamente mencionada como no Código anterior.
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Esta Sagrada Congregação quer responder que tal circunstância é devida a um critério redaccional seguido também quanto às outras associações igualmente não mencionadas, uma vez que estão compreendidas em categorias mais amplas.
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Permanece, portanto, imutável o parecer negativo da Igreja a respeito das associações maçónicas, pois os seus princípios foram sempre considerados inconciliáveis com a doutrina da Igreja e por isso permanece proibida a inscrição nelas. Os fiéis que pertencem às associações maçónicas estão em estado de pecado grave e não podem aproximar-se da Sagrada Comunhão. Não corresponde às autoridades eclesiásticas locais pronunciarem-se sobre a natureza das associações maçónicas com um juízo que implique derrogação do quanto acima estabelecido e isto segundo a mente da declaração desta Sagrada Congregação, de 17 de Fevereiro de 1981. O Sumo Pontífice João Paulo II, durante a audiência concedida ao subscritor Cardeal Prefeito, aprovou a presente Declaração, e ordenou a sua publicação. (Hortal, 2002, pp. 68-69)

Esta Declaração, emitida pela mais alta autoridade em questão doutrinária, a Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, com a anuência do Santo Padre, declara a incompatibilidade entre os princípios da Maçonaria e a doutrina da Igreja Católica. Além disso, a partir dela as Conferências ficavam proibidas de se pronunciarem com um juízo que implique derrogação das normas dadas. “Ficava também claro que não se poderia defender uma suposta compatibilidade entre Igreja católica e Maçonaria, com base na omissão da pena de excomunhão no novo Código” (Hortal, 2002, p. 69-70).

Considerações Finais

O centro da discussão consiste em perguntar se face ao novo Código de Direito Canónico, os católicos continuam impedidos de ingressarem na Maçonaria ou estão impedidos tão só de se inscreverem na Maçonaria que “maquina” contra a Igreja Católica. A razão básica da última condenação, datada de 26/11/1983, continua a ser a mesma: a inconciliabilidade entre a afirmação sincera e plena da fé católica e o relativismo que parece ocultar-se atrás do universo simbólico maçónico.

Ao que parece os católicos permanecem impedidos de dar o nome à Maçonaria, independentemente dela conspirar ou não contra os princípios defendidos pela Igreja. Pelo teor da declaração de 1983, a Santa Sé parece ainda não estar disposta a reconciliar-se com os maçons, não obstante o abrandamento trazido pelo novo diploma legal.

Há que considerar, no entanto, que a Maçonaria condenada por Clemente XII, por Bento XIV e por outras autoridades eclesiásticas, não é a mesma existente nos dias actuais. Nem mesmo a Igreja parece defender literalmente os mesmos princípios.

De qualquer forma, já vai longe o tempo em que as duas instituições trocavam ofensas públicas e se envolviam em arrastadas disputas. O que se vê na actualidade é um grande numero de maçons que professam ao mesmo tempo a fé católica, esperançosos em ver num futuro breve as duas instituições definitivamente reconciliadas.


Referências bibliográficas

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