Tradução José Filardo (Revisão Sergio Jerez)
por Henri Pena-Ruiz
“Quando em dúvida, abstenha-se”. Uma máxima de sabedoria prática, bem como teórica, que pode ser atribuída à filosofia cética, mas também a todos aqueles ciosos de sua lucidez. Skeptikos, em grego, é aquele que observa e reflete e, portanto, se abstém de julgar ou agir precipitadamente. À sua disposição, inicialmente como uma ferramenta mental simples e, em seguida, como o primeiro parecer, a suspensão do julgamento (em grego epokhè), uma verdadeira parada no turbilhão das primeiras opiniões. Um exemplo corrente. Diz-se muitas vezes de quem recebe uma notícia muito surpreendente e pelo menos inesperada: “Ele recebeu a notícia com algum ceticismo.” Reserva tanto emocional quanto mental, a atitude cética discutida aqui mostra uma preocupação de prudência. Uma notícia recebida como questionável exige confirmação ou invalidação antes de possamos nos alegrar ou lamentar. Portanto, dois aspectos: o cuidado intelectual e o controle de todo impulso emocional. Estamos no caminho do ceticismo filosófico.
A incredulidade de princípio adotada pelos céticos retira qualquer modalidade não distanciada de consciência humana: crença ingênua, reação impulsiva, adesão espontânea ou rejeição imediata. A suspensão cética se traduz numa neutralidade de princípio, uma indiferença voluntária adotada como pré-requisito para uma análise mais aprofundada. Na verdade, ela consiste em manter sob rédeas a emoção espontânea, a fim de saber mais antes de reagir. Levar algum tempo antes de afirmar ou negar. O afastamento, a recusa em se apressar, aqui é essencial para empregar o olhar, e dar-se o direito à investigação crítica. Deve acontecer sem prejulgar o resultado: negar, afirmar ou suspender todo julgamento sobre o objeto da dúvida, ao considerar que não se pode decidir. Um exercício de dúvida destinado a tornar-se um método, uma espécie de princípio de precaução com as coisas do pensamento, e também da ação.
Do Ceticismo ao Agnosticismo
Assim, depois da reflexão, o cético, tendo observado e ponderado, declara não poder resolver e querer se abster de qualquer juízo relativo às coisas consideradas. Este diagnóstico é de alcance variável, pois pode simplesmente ser pontual, e se referir a um domínio estritamente delimitado, como no caso de suspender qualquer julgamento que afirmasse a existência de Deus ou, ao contrário, sua não-existência. Ele pode ser também universal, sem distinção de domínios, ao invalidar radicalmente qualquer julgamento. Um termo menos utilizado merece análise: o do agnosticismo. Chamamos de agnosticismo o fato de se declarar incapaz de saber. A etimologia grega aqui é muito clara: o termo a-gnôstos (ignorante) abrange a privação da gnose, ou seja, do conhecimento. A palavra “agnóstico” foi cunhada por Thomas Henry Huxley em 1869 em oposição à “gnosis” religiosa que é predominante entre teólogos da Igreja em sua pretensão de provar as coisas que por natureza são indemonstráveis e inacessíveis ao conhecimento humano: Deus, a vida após a morte, os milagres afirmados pela religião com relação a uma alegada “revelação” que dispensa qualquer prova e se origina unicamente da crença.
O Agnosticismo pode estar relacionado também com questões metafísicas, que Kant chamou de indecidíveis, uma vez que dizem respeito a objetos de reflexão que excedem os limites de qualquer experiência possível. Uma oportunidade para que ele reservasse para a crença as coisas indecidíveis racionalmente, tais como a afirmação da existência de Deus, da imortalidade da alma e da vida após a morte, mas também os ideais que dependem de liberdade humana, tais como a paz perpétua e o surgimento de um mundo totalmente moral. O Agnosticismo pode se estender a todos os domínios e prenunciar a incapacidade geral de julgar qualquer outra coisa, adotando um perspectivismo que consiste em dizer que qualquer julgamento, principalmente ético ou político, não passa de um ponto de vista particular que não pode pretender ter objetividade ou universalidade. Esta postura radical é um agnosticismo absoluto, um caso limite de ceticismo que suspende julgamento sobre qualquer objeto de reflexão. É justamente esta versão radical de ceticismo que tende a alimentar a opinião geral sobre os céticos. Estes são, então, condenados globalmente como obscurantistas, uma vez que invalidariam qualquer abordagem de investigação e esforço de produção de conhecimento. E, assim, são considerados também indiferentes, privados de qualquer possibilidade de se envolver, insensíveis, e, finalmente, distantes de qualquer moral. Em suma, é um diagnóstico esmagador. Mas é falso. Vamos, portanto, dar trégua aos preconceitos.
O sentido da restrição cética é, em primeiro lugar, metódico. Somente sua versão radical, que representa o agnosticismo sem limites, pode ser comparada a um relativismo que destrói todos os pontos de referência. Na verdade, ela generaliza todos os tipos de ceticismo levando em conta apenas uma versão considerada excessiva e exagerada por David Hume, um dos grandes filósofos céticos, mas partidário do que ele chama muito significativamente de “ceticismo medido”. O que nos leva ao coração da reflexão. Lugar do ceticismo como escola de lucidez.
A dúvida e seus limites: os diferentes ceticismos
Desde Sócrates, a dúvida é essencial para a filosofia como forma de liberdade de pensamento. Mas podemos duvidar de tudo, e suspender indefinidamente seu julgamento? Nada é mais incerto, mesmo que apenas devido à urgência da ação. Assim, como praticar a dúvida? Como um método preventivo para afastar o risco de erro? Ou como a desconfiança sistemática em relação à própria ideia de verdade? Esta alternativa é personificada por Descartes quando ele opõe a dúvida cética como método e a doutrina cética como generalização da recusa de formular julgamentos.
A vontade de se preservar das falsas-aparências e dos preconceitos, quando cultivada em excesso, pode efetivamente levar à invalidação das qualquer busca intelectual ou constituir-se em uma postura de indiferença absoluta, na fronteira do obscurantismo. Isso, com consequências morais equivalentes a uma espécie de egoísmo que faz com que alguém se feche em si mesmo, trancado em um solipsismo, isto é numa solidão mental que afasta a pessoa do mundo. Não se deve confundir esse fechamento com a incredulidade radical, ou seja, a propensão para não se acreditar em nada, que pode ser adotada pela abordagem racionalista. Por outro lado, se, sob o pretexto de se recusar a crer, invalida-se qualquer contribuição do mundo exterior, corremos o risco de um confinamento egocêntrico que drena a diversidade de elementos de reflexão oferecida à consciência pela aventura existencial.
O racionalista incrédulo evita crer porque a crença é para ele um modo passivo da consciência, mas decide julgar quando a razão avalia que pode fazê-lo com conhecimento de causa, tendo por base uma evidência racional ou argumentos conclusivos. Na falta de tais fundamentos, a lucidez racional consiste em traçar uma linha de demarcação clara entre aquilo em que ele acredita e aquilo que se sabe. O obscurantismo, assim, não é mais tanto o fato de se crer quanto o fato de se confundir uma crença com um saber demonstrado. Esta confusão pode ser grave na medida que tende a reduzir a ação a uma mera probabilidade, em vez de guiá-la com a máxima certeza. Se eu tomo o avião, ouso esperar que, para o piloto, a navegação aérea não se baseia apenas na crença, mas está baseada em um conhecimento autêntico. Um ceticismo exagerado, neste caso, seria gerador de ansiedade. Não há, portanto, um só ceticismo, mas diferentes ceticismos, dependendo da extensão da recusa em julgar e do domínio de aplicação do julgamento humano. Cético sobre as questões metafísicas e teológicas, um filósofo pode muito bem não adotar essa mesma postura sobre o significado da ciência e sobre as questões éticas e políticas. Além disso, ver no ceticismo um espírito de crítica negativa sistemática, às vezes acompanhado de propensão a uma zombaria escarnecedora, é inadmissível. A abordagem cética é essencialmente um processo de pesquisa, mais que de afirmação. Por acaso a realidade em si não está em constante movimento e é, em alguns aspectos, ilusória devido à sua imprevisibilidade? Trata-se, portanto, de seguir Sócrates e Platão, e se livrar das falsas aparências do viver para tentar julgar, depois de abster-se de fazê-lo por parecer que é impossível.
O método cético, prática racional da dúvida, é uma coisa. As diferentes teorias céticas são outra. Pirro, Aenesidemus (escola filosófica da Nova Academia, que sucede a de Platão), Cícero, Montaigne e David Hume, para citar apenas alguns, incorporam diferentes versões de ceticismo, indo desde a negação pura e simples de qualquer possibilidade de conhecimento, até negações sobre a teologia e a metafísica, ou seja, sobre qualquer área de pesquisa que escapasse às tentativas de explicação racional.
A contenção[1] cética: um princípio de precaução para o pensamento
O cético não é absolutamente o ser sem fé que não acredita em nenhum valor e não respeita nenhum princípio ético, mas aquele que, tendo se enganado por diferentes razões, ou experimentado a dificuldade de julgar bem, quer se proteger contra o erro e suas consequências. Na ideia que faz de suas habilidades, uma fraqueza e uma força então se conjugam. O ponto fraco é a incapacidade de atingir o objeto em si pelos únicos meios disponíveis para o homem entender o mundo: os sentidos e emoções afetivas, que refletem mais nossa situação e nosso estado do que a realidade objetiva. A desconfiança em relação à aparência é, portanto, essencial: nós percebemos os fenômenos, e não a realidade em si, independente de nós. O Sol parece girar em torno da Terra. Mas é este o caso? Suspender o julgamento é, assim, uma questão de prudência, de precaução na organização do pensamento, e também da ação que dele pode resultar.
Tanto é que certas representações relacionadas ao lugar e ao momento, aos diferentes preconceitos sociais, tendem a se impor à consciência e desviá-la das preocupações com a lucidez. A crença é a maneira espontânea de compreender o mundo, e ela habita instantaneamente a consciência, conforme se vê na credulidade infantil. O ramo mergulhado na água parece quebrado. A criança acreditará nisso até que outra aparição corrija sua impressão, por exemplo, quando o ramo sair gradualmente da água, totalmente reto. Mas ainda será preciso que um ato de julgamento de sua mente lhe indique qual é a aparência que corresponde ao estado real do ramo. Sem isso, uma percepção sensível não pode corrigir outra.
A abordagem filosófica do cético é, antes de tudo, a que cultiva o distanciamento, a recusa a qualquer precipitação. A decisão de suspender seu julgamento pode resultar na consciência de uma contradição ou de uma inverossimilhança. Com duas possíveis saídas: a aquisição de uma certeza que permita resolvê-la ou a recusa de julgar sem certeza. Trata-se, neste caso, de tornar viva a consciência de que uma crença não passa de uma crença, e que não podemos dizer nada com absoluta certeza sobre o objeto a que ela se refere. O julgamento que resulta de uma crença não é confiável, porque não tem fundamento em nenhuma evidência objetiva. Como se vê, o ceticismo tem, antes de tudo, o objetivo de libertar de opiniões que só exercem sua ascendência quando admitidas sem exame prévio, de prejulgamentos promovidos por tradições não questionadas, de ideias construídas sem base em algo tangível. Vários pensadores céticos se agarram a este poder suspensivo. Recusam-se a afirmar que não se pode jamais julgar, o que seria um julgamento dogmático por sua generalidade peremptória. Então, temperam o ceticismo radical ao admitir, depois de uma reflexão, que entre os diferentes tipos de afirmações, algumas são provavelmente mais verdadeiras que outras, sobretudo quando a experiência comum e a prática diária lhes dão mais crédito. Aceitar a noção de probabilidade, categoria intermediária entre o verdadeiro e o falso, é, então, um passo para o que se poderia chamar “ceticismo comedido”, nas palavras de Hume. No campo da ação, tal nuance pode ser útil, especialmente quando se admite que nem sempre se tem certeza. A parcela de risco é, assim, inevitável, mas o fato de conhecê-la não deve fazer com que se renuncie a qualquer ação.
A vida prática torna efetivamente impossível e insustentável uma suspensão de julgamento por tempo indeterminado. Um exemplo. O médico deve curar, ou tentar fazê-lo, de imediato, sem demora. Porque ele não está tratando do homem em geral, dizia Aristóteles, mas de Callias ou Sócrates. A atenção ao caso particular entra em cena na arte da cura, mas ela se coloca mais do lado do provável do que do certo. Sócrates, sofrendo da mesma doença que Callias, reagirá talvez melhor do que ele a certo medicamento. Esta é uma hipótese induzida pelo que se conhece da pessoa em particular, mas sem certeza absoluta. A arte médica envolve tantos parâmetros que seus resultados nem sempre são controláveis. O mesmo vale para muitas ações localizadas no cruzamento de múltiplas séries causais, das quais o livre-arbítrio humano pode fazer parte, impedindo qualquer previsão certeira. Tal constatação não impede de conceber graus relativos de certeza, e de colocá-los em uma escala que terá valor normativo, de acordo com uma modulação bem compreensível. Não se baseia uma ação no fato de que a verdade da convicção a ela associada tem um alto grau de probabilidade ou não. Assim, as urgências da vida prática destroem as formas radicais da dúvida. Existem, neste caso, probabilidades que dão à crença um peso mais ou menos importante. A teoria da moral provisória, que Descartes defende em nome da urgência da ação, é formulada não como uma limitação à dúvida radical, mas como delimitação de domínios concretos de relevância. Por um lado, a pesquisa teórica deve assumir sem transigir com todas as exigências da verdade. Por outro lado, a prática existencial comum pode ser esclarecida por algumas regras simples, enquanto aguarda a construção completa do edifício filosófico da sabedoria. Na falta das chaves para agir com certeza, essas regras fazem com que as chances de se enganar fique dentro de limites.
Apreender lucidamente cada área de estudo
Uma verdade lógica difere do conhecimento de um objeto real, que é em si diferente de uma hipótese mais ou menos provável. Para estabelecer uma verdade lógica, o espírito humano não tem necessidade de sair de si mesmo. Por exemplo, é evidente que duas quantidades iguais a uma terceira são iguais entre si. Para uma verdade física como a lei da queda dos corpos, no entanto, precisamos da prova do valor objetivo de uma hipótese anterior. A experimentação pode dá-la, atestando que a realidade exterior é regida por uma lei que enuncia uma relação constante entre as coisas. Assim, na queda livre de um corpo, a distância percorrida é proporcional ao quadrado do tempo. Para a realidade humana, o estabelecimento de uma lei objetiva não é óbvio, de modo que o determinismo se combina com a liberdade de se fazer isso ou aquilo, o que torna uma previsão, no mínimo, aleatória. Aristóteles fala sobre esse objeto de contingência, ou seja, a falta de necessidade. Surge daí uma previsão sem certeza, mas orientada por uma busca do mais provável. Podemos prever um evento humano, como, por exemplo, o resultado de uma batalha ou de um acontecimento esportivo, como se faz para uma reação física ou para a trajetória de uma estrela. O estudo comparativo das forças envolvidas pode indicar o provável vencedor, mas sem certeza. Da mesma forma, pode-se sonhar com a paz perpétua entre os homens, mas sem garantir que ela acontecerá. Tal paz certamente é possível, mas ela supõe uma combinação de causas mais ou menos prováveis.
Restam os objetos de pensamento que ultrapassam os limites de toda experiência possível, e sobre os quais qualquer conhecimento definitivo é impossível. A existência de Deus e sua providência, a imortalidade da alma, a existência de vida após a morte são meras hipóteses que nada permite afirmar como verdadeiras ou mesmo prováveis. Puros objetos de crença, elas não poderão prevalecer como verdades, e o fanatismo religioso que afirma o contrário surge do obscurantismo. O mesmo ocorre com os milagres que chocam a concepção comum de causalidade, fundada, por sua vez, em uma certa regularidade. Um exemplo. Normalmente, é impossível para um homem caminhar sobre a água. Mas o filho de um deus, tendo essência divina, anda sobre a água na narrativa religiosa que estabelece, com isso, a onipotência divina como capacidade de superar as limitações humanas e até mesmo as leis da natureza que Deus criou. Quem pode acreditar nessas coisas, se não por fideísmo incondicional que leva a aceitar tal exceção como uma verdade revelada? Só aqueles que creem nessa “verdade”. Credo quia absurdum[2]: este é o ato de fé incondicional, segundo Agostinho, que renuncia ao mesmo tempo ao exercício da razão, considerada inválida como faculdade proporcionada às limitações do humano, caído e prisioneiro de uma finitude insuperável. Neste caso, o discurso cético pode ser usado como contra-argumento para desacreditar a razão na sua pretensão de conhecer, enquanto que antes ele insistia no espírito crítico necessário com relação a qualquer afirmação dogmática, principalmente da teologia. Esta é a estratégia usada por Agostinho para exaltar um ato de fé que postula uma revelação que nenhuma abordagem racional permite provar. A vontade de Deus funciona então como asilo da ignorância, de acordo com uma fórmula terrível de Spinoza.
Desconstruir a fabulação religiosa e metafísica
A atitude cética implementa, assim, uma abordagem crítica no sentido grego de discernimento que distingue aquilo que deve ser. Trata-se de produzir distinções decisivas para garantir a lucidez. E relativizar a dimensão normativa das crenças, ainda mais problemáticas por não poderem ser baseadas, por definição, em qualquer certeza. O que é, de fato, crer, se não admitir a existência de realidades, mesmo que não tenhamos qualquer prova objetiva de que elas existem? O ceticismo, por praticar a suspeita em relação a qualquer julgamento, tende efetivamente a alinhar, sob o regime da crença ou da mera opinião, qualquer afirmação sobre a essência das coisas. A dúvida que o faz, por isso, ponderar sobre a possibilidade de conhecer, não invalida qualquer ideia de ciência, mas coloca bem alto o nível de exigência a satisfazer para que se conceda o status de verdade científica a uma afirmação humana. Sob este ponto de vista, como vimos, é essencial distinguir entre uma verdade objetiva da lógica, uma verdade objetiva da física, uma eventual verdade relativa ao mundo humano e o caráter problemático de qualquer afirmação sobre o que excede nossa experiência. Daí as relações complicadas, até mesmo paradoxais, entre o ceticismo que coloca a suspeita sobre qualquer julgamento e o empirismo que faz da experiência (em grego, empereïa) uma pedra de toque da veracidade possível. Se é preciso desconfiar da experiência como fonte de ilusões sensíveis, os limites da experiência são, por outro lado, boas medidas de segurança contra os delírios da imaginação religiosa ou da especulação metafísica. Encontraremos algo dessa dualidade em Kant, que afirmava que, ainda que todo o conhecimento comece com a experiência, ele não deriva inteiramente dela. Na verdade, a razão humana é constituída de tal forma que, antes de qualquer experiência, ela organiza a exploração da realidade com as ferramentas intelectuais que lhe são próprias, tais como quadros lógicos para ordenar as percepções. Estas percepções em si só são possíveis se a sensibilidade humana as puder acomodar, organizando-as. O tempo nos faz perceber a sucessão de fenômenos e o espaço nos permite apreendê-los de acordo como estão dispostos em um dado momento. Mas o ceticismo não permite admitir essa concepção kantiana, que coloca como existente a priori no sujeito humano o que, no empirismo cético, resulta da experiência.
Resta dizer que, ao atribuir limites às construções imaginárias de especulação metafísica e teológica, o ceticismo e o empirismo forjam um acordo paradoxal, pois a experiência, que é reconhecida como duvidosa, é, ao mesmo tempo, consagrada como pedra de toque incontornável.
O ceticismo antigo, ética da serenidade
É preciso lembrar que a finalidade dos grandes céticos gregos é ética, no sentido de que é um modo de ser (ethos) que resulta da contenção cética: a ausência de perturbação (ataraxia). A lição da sabedoria ética é clara: trata-se de evitar os tormentos das opiniões incertas ou, ao contrário, das crenças dogmáticas, e as atitudes fechadas que os revelam.. No contexto helenístico da agitação das cidades gregas, após a morte de Alexandre (323 a.C.), um clima político deletério se instala, produzindo uma confusão e mutação gradual dos objetivos filosóficos. As referências tradicionais são subvertidas, quebrando a confiança em um destino coletivo. Uma ética de salvação individual está na ordem do dia. De várias maneiras, três grandes filosofias helenísticas dão vazão a essa expectativa. O epicurismo exalta a busca racional do prazer, o estoicismo enfatiza o autocontrole que permite a disciplina do julgamento e do desejo, e ceticismo incita, ao contrário, a suspensão do julgamento como uma importante rota em direção à ausência de perturbações. Um ponto comum: a serenidade como propósito essencial.
Pirro (360-275 a.C.) encarna um ceticismo radical com relação ao conhecimento, juntamente com uma preocupação com a serenidade individual. Ele começa por se perguntar se é possível saber qualquer coisa. “A filosofia de Pirro introduz a ideia de que não podemos conhecer nenhuma verdade, e que devemos suspender seu julgamento.»(i). Ao mesmo tempo seu discípulo e doxógrafo, Sexto Empírico, nos Esboços pirronianos, define a via cética radical de Pirro como uma arte de conduzir seu pensamento pelo espírito da busca, da suspensão do julgamento e da descoberta de contradições insolúveis. Ele faz um inventário dos obstáculos à possibilidade de conhecer: entre outros, as ilusões dos sentidos e o nevoeiro dos sentimentos, a inacessibilidade de determinados domínios e a contradição recorrente das opiniões. Rejeitando o dogmatismo, Pirro enfatiza a relatividade dos fenômenos devido à percepção humana: “Pela sua própria natureza, as coisas não são realmente como são em aparência. Elas apenas nos parecem assim (…)” A razão, de acordo com Pirro, não é outra coisa senão uma indicação dada sobre as aparências. Um exemplo marcante: “A mesma torre parecia redonda de longe e quadrada de perto. “(ii) Quanto à doçura do mel, ela é mais reveladora da subjetividade daquele que saboreia, do que de seu caráter objetivo. É a observação cuidadosa e a abordagem comparativa dos fenômenos que muitas vezes traz à tona uma contradição que implica na suspensão do julgamento. Não se deve entender mal o sentido desse ceticismo radical. O cético não é, absolutamente, o ser iníquo que não acredita em nada, mas aquele que, tendo se confundido por diferentes razões, não quer mais se enganar. Sua desconfiança é uma prudência, uma vigilância própria para evitar o erro. Especialmente considerando que algumas representações, tendenciosas, tendem a se impor à consciência e a enganá-la de forma duradoura, como aquelas que correspondem a interesses particulares incutidos em um determinado lugar e num determinado momento. O forte considera boa a força, enquanto o fraco a considera ruim. E ninguém parece capaz de se libertar de opiniões que lhe parecem justas, unicamente porque elas lhe convêm. Uma crença não passa de uma crença, e não podemos dizer absolutamente nada, com segurança, sobre o objeto ao qual ela se refere.
O ceticismo não é indiferença nem indecisão. Haverá uma atitude mediada da consciência e de seu compromisso interior que se posicione entre a indiferença total a qualquer opinião e a certeza inabalável? A questão merece ser colocada para dar sentido a uma crença que não seja fanatismo, e a um distanciamento reflexivo que não seja um exílio incapaz de escolhas pessoais. Em sua versão cética, a abordagem crítica, no sentido grego de discernimento diferencial, produz distinções decisivas para a lucidez interior e também para a ponderação, de maneira racional, do peso da crença nos diferentes campos da conduta humana. A emancipação da moral com relação à religião, entre outros, é um dos desafios de tal abordagem, assim como a distinção necessária entre crença e conhecimento. Ao dogmatismo religioso pode, portanto, opor-se um “ceticismo medido” segundo uma expressão cara a Hume. O desafio deste ceticismo é compreender, tanto genealógica quanto criticamente, o uso descontrolado das faculdades humanas, e não, portanto, lamentar sua suposta debilidade. Salutar, o distanciamento dos preconceitos comuns, de seu poder sobre a consciência e de sua sistematização teológica, emancipa a lucidez humana.
Fé incondicional e dúvida cética: uma oposição decisiva
Entre a razão filosófica e a religião fidelista, Pascal tenta um armistício. Ele formula o paradoxo de uma razão humana questionando-se sobre seu poder de conhecimento e avaliando a dificuldade daquilo que precisa provar. “Temos uma impotência em provar, invencível a todo dogmatismo. Temos uma ideia da verdade, invencível a todo o pirronismo (ou seja, a todo ceticismo).” Esta reflexão tirada dos Pensamentos é típica da posição de Pascal com relação ao poder de conhecimento próprio do homem. A referência ao ceticismo radical de Pirro é aqui utilizada para relativizar a razão, a fim de manter sua legitimidade nos campos onde ela é capaz de produzir conhecimento. Segundo ele, estes campos são a matemática e a física, incluindo a astronomia entre os conhecimentos das leis da natureza. Daí a possibilidade de conhecer a existência da pressão atmosférica e do vácuo, como mostra a experiência de Puy de Dôme, comentada no Prefácio do Tratado sobre o vácuo. Daí também a vaidade da condenação religiosa da Galileu, que demonstrava o movimento da Terra. Mas, nos outros domínios, nenhum conhecimento racional é possível. A história e o direito têm origem na narrativa empírica. A teologia se origina da fé incondicional, pois segundo Agostinho “os propósitos de Deus são inescrutáveis”. Portanto, não há alternativa ao ceticismo radicalizado sob a forma de agnosticismo, além da fé religiosa em uma suposta “revelação”. Compreendemos a proposta de Pascal, ao mesmo tempo cientista e místico: “Dois excessos: excluir a razão, admitir somente a razão”. (iii)
Agostinho inaugurou uma estranha aliança teórica entre o ceticismo, no qual quer ver uma humilhação da razão, e o misticismo da revelação, que propõe a onisciência e onipotência divinas. Em suma, podemos suspender o juízo sobre as coisas deste mundo, mas não sobre a transcendência divina, afirmada sem outra forma de argumento.
Descartes, por sua vez, tinha salvado a dúvida cética como método, instrumento maior da crítica filosófica, mas rejeitou o ceticismo radical, que se define pela invalidação de qualquer possibilidade de saber. Tal invalidação pode ainda ser desviada pela crítica religiosa da razão, considerada inválida devido ao pecado original. No Discurso do Método, Descartes estabelece um primeiro preceito que define uma verdadeira disciplina interior diante de qualquer julgamento: “O primeiro era de nunca aceitar como verdade qualquer coisa que eu não soubesse ser evidentemente verdadeira; isto é, evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção; e nada mais abranger em meus julgamentos além do que se apresenta clara e distintamente ao meu espírito, que eu não tenha tido nenhuma oportunidade de colocar em dúvida“.
Tal decisão teórica não está muito longe da dúvida cética como suspensão de julgamento, rejeição de qualquer precipitação e prevenção que descarte prematuramente o distanciamento reflexivo, verdadeiro princípio da precaução. Descartes justifica aqui a necessidade de se evocar a infância e sua vulnerabilidade aos condicionamentos que instalam preconceitos no espírito antes que a idade da razão permita o exame crítico: “Da mesma forma que fomos crianças antes de nos tornarmos adultos e julgamos, às vezes bem e às vezes mal, coisas que se apresentaram aos nossos sentidos quando ainda não fazíamos pleno uso de nossa razão, muitos julgamentos assim precipitados nos impedem de chegar ao conhecimento da verdade e nos tolhem de tal modo que parece que não poderemos nos livrar deles caso não pretendamos duvidar uma vez em nossa vida de todas as coisas em que encontramos o menor indício de incerteza.“(iv) Ao contrário da dúvida cética, a dúvida metódica é um meio para um fim: a certeza. Descartes duvida para não mais duvidar agora que uma certa versão de ceticismo leva à instalação de uma dúvida geral que invalida qualquer possibilidade de julgar e conhecer a verdade, não porque esta última não exista, mas porque seria inacessível aos seres humanos.
Ceticismo e Liberdade: O exemplo de Cícero
Um pouco de política para encerrar.
Protágoras enfatizava que, sobre uma mesma questão, pode-se sustentar dois pontos de vista opostos. Ele queria aqui, como prova, o debate que a democracia exige. Na sua esteira, Cícero (106-43 a.C.) aprova à distância o princípio de ceticismo da Nova Academia no que diz respeito ao dogmatismo estoico. De modo mais geral, ele insiste na liberdade de consciência em relação a qualquer tipo de crença. Em Os Acadêmicos (Livro II), Cícero se dirige a Lúculo nestes termos: “As teorias que os estoicos e você defendem não me parecem mesmo comprováveis. A adivinhação você admite, eu a julgo inexistente; mesmo o destino, que, segundo você, mantém o universo em suas garras, eu o desprezo. Não penso mais que a edificação de nosso mundo seja devida a um plano divino…” Ele ressalta o medo que pode suscitar a hipótese teológica: “Quem, de fato, poderia crer que um deus se ocupa dele, sem tremer de pavor dia e noite diante da ideia do poder divino e sem temer, caso lhe aconteça uma desgraça – e a quem isso não acontece! – tê-la merecido? ”
i : Diogène Laërce, Vies et Doctrines des philosophes illustres
ii : Esquisses pyrrhoniennes, L.I. 118
iii : Pensées Ed Brunschvicg 253
iv : Principes de la philosophie, I
Publicado 31 de agosto de 2016 em:
http://www.fm-mag.fr/article/philosophie/le-sceticisme-une-ecole-de-lucidite-1294
[1] No sentido de autocontrole. N.T.
[2] Creio porque é absurdo. N.T.