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Velhinhos Viciados tratados com Dignidade. Na Holanda.

O Lar dos Velhinhos Viciados

Velhos Viciados Encontram Refugio em Instalação de Saúde Holandesa

Por Bernhard Albrecht

Marcus Koppen / DER SPIEGEL

Velhos viciados em drogas são mantidos fora das ruas em uma nova casa holandesa para viciados.

Os viciados da década de 70 estão ficando mais velhos e muitos ainda não se livraram do hábito. Uma casa experimental na Holanda oferece a eles um lugar seguro para viver – e consumir drogas. Muitos provavelmente ficarão lá pelo resto de suas vidas.

Com Haia ainda escura, às 5:30 da manhã, a noite terminou em Woodstock. Os primeiros moradores da casa caminham até o saguão, passam pela mesa de sinuca abandonada e pela vitrola: um homem manco, com um rosto emaciado semelhante a um pássaro, um homem cujo rosto está completamente escondido debaixo do capuz de seu moletom; uma mulher com os olhos inchados vestindo um roupão de banho… Movidos por uma força invisível, eles abrem caminho até a rampa para cadeiras de rodas em direção a uma porta chamada “Medicatie”, ou dispensário de medicamentos. Ele abre às 6 horas da manhã

Quando Gerrit, a enfermeira da noite, abre a porta, o pequeno grupo já se transformou em um aglomerado bem maior, mas ainda assim, silencioso. Logo eles estão avidamente engolindo suas rações, algumas vezes de até 15 comprimidos por vez. Gerrit entrega a metadona que substitui a droga e diversos sedativos, bem como os medicamentos que idosos tipicamente precisam: pílulas para taxa altas de açúcar no sangue, problemas cardíacos e hipertensão.

Todos na pousada também usam drogas ilegais. “Mas eles têm que obter as drogas eles mesmos. Nós apenas toleramos o seu uso”, explica o enfermeiro da noite. Ele diz que conhece alguns dos viciados desde que era jovem. “Nós costumávamos ir, todos, às mesmas discotecas e bares. Houve alguns reencontros surpreendentes aqui “, diz ele. Ele aponta para a lista de moradores próxima ao balcão da recepção: 36 nomes, completos, com os números de quarto e datas de nascimento. A maioria nasceu no final dos anos 50. O morador mais jovem, a mulher de roupão, nasceu em 1967.

Para todos eles, Woodstock é o seu último refúgio, o único lar para idosos no mundo onde drogas pesadas não são tabu, um local destinado a pessoas que, com seus 50 anos, parecem tão desgastadas como se estivessem tivessem 70. Os moradores são todos os casos perdidos, pessoas que foram severamente dependentes de drogas por pelo menos 10 anos e falharam repetidamente em responder à terapia.

A Geração Woodstock Envelhecida

Os holandeses são pioneiros. Em uma análise de 2010, o Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência previu um novo desafio se aproximando da sociedade europeia, agora que a geração Woodstock está envelhecendo.

Às 8 horas da manhã, os moradores se reúnem na sala principal para receberem suas tarefas para o dia. John, o terapeuta ocupacional, lê as atribuições – limpar a casa, varrer a rua, plantão na cozinha – e 10 viciados levantam as mãos em sucessão. Uma refeição quente precisa ser preparada para os moradores na hora do almoço, e hoje é também o “Dia de Restaurante,” quando as pessoas do bairro vêm ao albergue para o jantar.

“Três horas de trabalho é o suficiente. Mais que isso é demais para nossos moradores”, diz o terapeuta ocupacional. Cada residente está autorizado a trabalhar três vezes por semana para ganhar um dinheirinho. Seus ganhos, combinados com seus benefícios de aposentadoria são suficientes para a maioria dos moradores gastar cerca de € 300 (R$ 730) por mês em drogas.

O saguão agora está cheio. Quatro homens estão jogando cartas em um canto, e um quinto morador liga a vitrola para tocar uma canção da banda Toto, “Hold the Line”. Ele dança lentamente, suas calças soltas ao redor de seu quadril informe. Uma loira com cabelo pegajoso logo se junta a ele, balançando sua cadeira de rodas para frente e para trás seguindo o ritmo.

O homem com cara de passarinho decidiu fazer a limpeza. Ele estende sua mão ossuda e se apresenta: Aad Akerboom, 53 anos. O cachecol verde-e-amarelo em volta do pescoço é de seu clube de futebol, o ADO Den Haag. Ele era considerado um talento ali 40 anos atrás, ele diz , e ele até mesmo jogou contra a equipe juvenil do Real Madrid. Ele tomou sua primeira dose de heroína aos 14 anos , e tudo foi por água abaixo. Ele se tornou um ladrão e traficante de drogas, e passou um total de cinco anos na prisão. Seu apelido no albergue é Birdman, porque ele cria pombos no galpão do jardim.

Três Regras da Casa

Quando terminar seu trabalho do dia, Akerboom terá ganhado 40 €, o suficiente para um grama de heroína. Ele conhece o melhor traficante de Haia, diz ele. Devido à sua conexão – e porque as pessoas acreditam que ele é honesto – os outros sempre lhe deram dinheiro no passado, diz ele. “Eu negligenciei os pombos. Eu não faço mais isso “, diz ele.

Drogas boas são difíceis de encontrar. A maioria é impura e lhe dá uma dor de cabeça ao invés do barato, diz Akerboom. Mas a sua heroína, acrescenta com entusiasmo, lembra lendária “China White” que você podia comprar nos bastidores de Chinatown em Amsterdã por uns poucos florins na década de 1970.

Akerboom poderia, sem dúvida, ganhar um monte de dinheiro no albergue. Mas o tráfico é proibido em Woodstock. É uma das três regras da casa. As outras duas são: nenhuma prostituição nos quartos, e nenhuma violência. Akerboom sempre obedeceu às regras. “Eu tenho princípios”, diz ele, com um sorriso. Qualquer pessoa que quebrar as regras da casa é expulsa – jogada de volta a vida dos sem-teto que eles deixaram quando vieram para o albergue.

“Quando um viciado consegue uma chave aqui, ele abandona a ideia de um dia ficar limpo novamente”, diz Nils Hollenborg, o diretor médico da instituição. Em um lugar onde a tentação é generalizada, até mesmo o viciado com a maior força de vontade provavelmente desiste.

O tipo de terapia que é geralmente administrado em medicina do vício não acontece em Woodstock. Os objetivos são diferentes ali, diz Hollenborg: estabilizar a saúde dos residentes e fornecer estrutura aos seus dias. Isso, explica ele, reduz significativamente o consumo de droga logo após a admissão, o que tem sido uma das experiências valiosas neste experimento.

Seis dos moradores mudaram para o álcool, por razões de custo. A cerveja é vendida por 15 centavos a lata, e os funcionários gerencia, o abastecimento. Os moradores não estão autorizados a comprar mais que 10 latas por dia.

Heroína versus Álcool

Um dos moradores, René, morreu recentemente. Tudo nele era preto, as calças, a sua camiseta, seu cabelo. Ele tinha as letras “PUNK” tatuadas em seus dedos. Há ainda uma foto dele pendurada na parede de seu quarto. Ela o retrata de pé com seu filho de 10 anos de idade, em frente à sua casa de tijolo vermelho, ao lado de bicicletas esportivas e pipas. Ambos estão sorrindo.

Foi o álcool, não as drogas pesadas, que levou René à beira da morte. Um ano atrás, os médicos lhe deram três meses de vida. A bebida tinha destruído seu fígado e seu cérebro. Tudo o que ele dizia era balbuciação, e suas mãos tremiam. Ele permaneceu vivo tanto tempo, diz Hollenborg, devido ao “programa de heroína.” Ele recebeu heroína de graça em troca da promessa de parar de beber. Ele se tornou mais acessível e sua fala melhorou, mas então então ele começou a beber novamente.

É meio dia e trinta. Johan den Dulk, o fundador de Woodstock está sentado no escritório do chefe da equipe de enfermagem. Woodstock é o projeto de sua vida e ele visita as instalações uma vez por semana. Ele mesmo conseguiu o edifício até nove meses atrás, quando foi promovido a um cargo de gerência superior na Associação de Prestadores de Serviços Psiquiátricos, que é a dona de Woodstock. Os moradores mencionar o seu nome com profundo respeito.

Falta ainda trinta e sete anos

Quinze anos atrás, den Dulk, um trabalhador social apaixonado desenvolveu sua visão de Woodstock. Na época, ele tinha notado que os viciados mais velhos tinham dificuldades crescentes para viver com as centenas de florins de que precisavam todos os dias. As doenças associadas ao seu uso de drogas também estavam cobrando o seu preço: doença pulmonar, lesão hepática, HIV. “Eu falei com políticos e instituições, mas ninguém estava interessado no problema.” Viciados em drogas morrem jovens, diziam.

Den Dulk passou 10 anos chovendo no molhado, mas, então, os Verdes entraram no parlamento da cidade, em Haia, e ele conseguiu convencê-los. Um local foi logo encontrado, bem central, um antigo lar para idosos. Mas os moradores do entorno protestaram, argumentando que o projeto criaria um mercado de drogas ilegais, que os carros não estariam mais seguro estacionados na rua e que os moradores teriam de se preocupar ao sair à noite. Os iniciadores prometeram “desligar a tomada rapidamente” se houvesse algum problema.

Aad Akerboom, um viciado por muitos anos, conhecia den Dulk há muito tempo. Mas só quando ele teve um problema com a perna foi que ele soube que seria o paciente modelo de den Dulk em Woodstock.

Após uma infecção, as bactérias tinham aberto um caminho no fêmur de Akerboom, e ele quase perdeu a perna. O incidente provocou osteoartrite do quadril, e Akerboom vivia em constante dor desde então. Ele tentou tratamento substitutivo repetidamente, inicialmente motivado por seu sonho de se tornar um jogador profissional de futebol e mais tarde pelos apelos de sua mãe e irmãos. Mas ficou claro para den Dulk que Akerboom nunca conseguiria.

Quando Woodstock estava pronta para abrir suas portas em dezembro de 2008, den Dulk fui procurar Akerboom nas ruas de Haia. Ele o encontrou em uma pensão para homens. “Chegou a hora”, disse ele a Akerboom.

Carne e Purê de Batatas

Akerboom empacotou seus poucos pertences. As primeiras semanas foram caóticas. As regras tiveram que ser desenvolvidas para pessoas viverem juntas, pessoas que tinha perdido a capacidade de viver em uma comunidade ao longo das décadas, e que estava acostumadas a consumir, enganar e roubar de seus companheiros seres humanos. Os próprios viciados forneceram contribuições valiosas, e sem o seu apoio ativo o projeto teria fracassado há muito tempo.

“E a melhor coisa é que o crime na área até mesmo diminuiu”, diz den Dulk, orgulho. No interesse dos moradores, a polícia tolera o tráfico de drogas a apenas 200 metros do albergue.

São cinco da tarde, e os moradores do bairro estão chegando para o jantar. Hutspot com carne, um prato nacional baseado em purê de batatas, está no menu. As 12 mesas no restaurante Woodstock estão todas ocupadas. “€ 2,50 para três pratos. Você não pode conseguir isso em qualquer outro lugar “, diz Edgar, um vizinho. Ele assinou a petição para que Woodstock mantivesse suas portas abertas após a fase experimental de três anos terminar.

O psiquiatra Hollenborg não tem dúvida de que o futuro é seguro. “O modelo não está apenas fazendo sucesso na Holanda. Nós também recebemos visitas de delegações de outros países, incluindo a Alemanha. ”

São nove da noite. Akerboom acaba de fumar dois cachimbos de heroína em seu quarto. “Muitas vezes eu nada sinto, exceto que os desejos não são mais tão fortes”, diz ele. Ele precisa agora só de 0,3 gramas, diz ele, em comparação com 4 gramas alguns meses atrás.

Seu quarto, limpo e arrumado, tem uma certa sensibilidade de classe média. Ele está deitado em uma Recamier de cetim vermelho, e há quadros de fotos de família em uma caixa de vidro iluminada na parede. “Este é o meu lar. Eu quero fazer 90 anos aqui “, diz ele.

Faltam ainda 37 anos.

Traduzido do alemão por Christopher Sultan e do inglês por José A. Filardo.

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