Bibliot3ca FERNANDO PESSOA

E-Mail: revista.bibliot3ca@gmail.com – Bibliotecário- J. Filardo

Isaac Newton, o herege – Parte III

Tradução José Antonio de Souza Filardo

PARTE III

NEWTON CONTRA MUNDUM: FÉ MINORITÁRIA E A CLASSE REMANESCENTE

Como um crente em minoria, Newton precisava justificar sua rejeição da fé da maioria. Uma confirmação veio através de sua história eclesiástica alternativa, descrita acima. Newton inverteu o epigrama Atanásio contra mundum; no mundo reverso que ele construiu, era Newton contra o mundo. O Irenismo de Newton forneceu outro apoio. Como a distinção Erasmiana entre fundamenta e adiaphora, mas com base mais imediatamente em Hebreus 5, Newton acreditava que apenas o “leite” da simples verdade era necessário para batismo e comunhão, e que somente os maduros podiam atingir as “carnes fortes” das coisas mais profundas na teologia: (65) “carnes fortes”, escreveu Newton, “não são para bebês” (66). Essas carnes “fortes” para os idosos incluíam assuntos tais como disputas sobre dogma trinitário. (67) Newton acreditava que “se os fortes impõem suas opiniões como as condições de comunhão, eles pregam outro evangelho e se tornam cismáticos”. (68) Então, Newton não perturbava a Igreja com suas “carnes fortes”, revelando-as apenas a um grupo seleto de “homens fortes”. Além disso, Newton também afirmava que “se alguém lutar por qualquer outro tipo de culto que ele não possa provar ter sido praticado nos dias dos Apóstolos, ele pode usá-lo em seu armário sem incomodar as Igrejas com seus sentimentos particulares”. (69) Newton sabia que muitas de suas crenças eram contenciosas e em disputa, por isso parece provável que a sua posição irênica também ajudava a limitar sua teologia à esfera privada.

Os escritos de Newton também exibem expressões poderosas de teologia remanescente. Ele acreditava que, embora Deus revelasse a verdade através de profecias, estas, no entanto, não se destinavam “a converter-vos todos à vossa verdade”. (70) Em vez disso, o desígnio da profecia “é experimentar os homens & converter os melhores”. (71) “É suficiente” Newton acreditava, que a profecia “fosse capaz de mover o assentimento daqueles que ele escolheu; e para o resto que são tão incrédulos, é justo que lhes deva ser permitido morrer em pecado”. O que Newton reivindicava para a profecia, ele também afirmava para toda a Bíblia, escrevendo que Deus “moldou as Escrituras de modo a diferenciar entre o bem e o mal, mas eles devem ser demonstração para uns e loucura para outros”. A natureza da teologia remanescente de Newton é explicitada algumas frases mais tarde, quando ele fala das “grandes probabilidades” de “estar no lado certo”. (72) No cálculo da doutrina de Newton, quanto maior o número de concordantes, maior a probabilidade de erro.

Assim, ele alertava contra depender de julgamento de multidão, “porque assim tu certamente serás enganado. Mas busca as escrituras tu mesmo”. Newton, que conheceu em primeira mão a dinâmica psicológica de deixar a fé dos pais, aponta que embora existam “tantas religiões”, apenas uma pode ser verdadeira, e argumenta que pode ser “nenhuma daquelas com que tu estás familiarizado”. (74) Ele também adverte que “eles vão chamar-te, pode ser, de uma pessoa de cabeça quente, um intolerante, um Fanático, um Herético”. Um membro da classe remanescente deve desconsiderar tais rótulos e lembrar-se que “o mundo gosta de ser enganado” e “são totalmente levados por preconceito, interesse, os elogios dos homens, e a autoridade da Igreja em que eles vivem: como é normal porque todas as partes mantêm-se perto da Religião em que eles foram educados”. (75) Para Newton, o caminho era estreito e só uns poucos preciosos iria encontrá-lo. (76)

Mais que isso, Newton acreditava que os ortodoxos seriam teimosamente não receptivos a serem expostos como hereges. Em uma passagem abordando o poder perseguidor dos Trinitários do quarto século – provavelmente também um brilho em sua época – ele escreveu:

Mas eu sei que eles que são aqui acusados ainda afirmam que são a Igreja Ortodoxa & os Bárbaros hereges. Convencer a esses homens de suas heresias seria uma tentativa vã, sendo a natureza dos hereges ser imprudente e, portanto, confiantes e obstinados. (77)

Aqui devemos lembrar que, para Newton ortodoxia é heresia e heresia a verdade. Ele não acreditava que “todos os que se dizem cristãos” entenderiam, mas que apenas “um remanescente, umas poucas pessoas dispersas que Deus escolheu, conforme disse Daniel, os sábios entenderão, (78) então ele disse também que nenhum dos ímpios entenderá”. Pregação aberta seria inútil. (79)

Finalmente, é manifesto que Newton não gostava de disputas. Isto é verdade no caso de sua filosofia natural. E nem é particularmente surpreendente: a maior parte de suas publicações significativas desde seu trabalho de 1672 sobre cores até o pirateado Abrege de 1725 provocou controvérsia. Assim, Newton disse a William Derham que ele abominava “todos os Conflitos, considerando a Paz um bem substancial”. E por esta razão, ou seja, para evitar ser atormentado por insignificantes diletantes em Matemática ele construiu propositalmente seu Principia de maneira difícil de entender, mas ainda assim, para ser entendido por matemáticos competentes. (80) Dinâmica semelhante foi aplicada à sua teologia. (81) John Craig afirmou que Newton não publicaria seus escritos religiosos “em seu próprio tempo, porque eles mostravam que seus pensamentos eram algumas vezes diferentes daqueles que são comumente aceitos, o que o envolveria em disputas, e isso era uma coisa que ele evitava tanto quanto possível”. (82) Ao restringir sua teologia a si mesmo e a um grupo interno, ele manteve o controle sobre a mesma e evitou disputas. Conforme veremos, sua teologia só foi apresentada em público depois de ter-se tornado obscura. Aqui a noção filosófica do adepto se mistura à teologia do remanescente. (83) Newton não estava disposto a lançar suas pérolas aos porcos, pois eles a destroem sob os pés e volta-se para retalhá-lo.

Continua em  https://bibliot3ca.wordpress.com/isaac-newton-o-herege-parte-iv/

NOTAS

(65) Keynes MS 3, pp. 1, 3, 11, 31, 32, 34, 39, 41, 43, 44, 51; Bodmer MS 3, f. 2r.

(66) Keynes MS 3, p. 3.

(67) Keynes MS 3, p. 51.

(68) Keynes MS 3, p. 44.

(69) Keynes MS 3, p. 1 (ver também pp 13, 31, 32 (bis)). Comparar com a diretiva semelhante que Newton registrou sobre a prática da alquimia: “Isso pode ser feito em sua câmara, de forma tão privada quanto você queira, e é um grande segredo.” Keynes MS 33, f. 6r.

(70) Yahuda MS 1.1a, f. 17r.

(71) Yahuda MS 1.1a, f. 18r.

(72) Yahuda MS 1.1a, f. 19r.

(73) Yahuda MS 1.1a, ff. 1r-2r.

(74) Yahuda MS 1.1a, f. 3r.

(75) Yahuda MS 1.1a, f. 5r.

(76) A concepção de Newton do remanescente provavelmente deve algo não só para certos textos prescritivos bíblicos e sua racionalização de sua fé de minoria, mas também à noção do adepto de alquimia na posse de verdades perdidas e privilegiadas. Ver Mary S. Churchill, ‘Os sete capítulos, com notas explicativas, Chymia (1967), 12, 38-9; Mandelbrote, op. cit. (8), 299. Sobre as associações entre a teologia herética de Newton e seu interesse em alquimia, ver Betty Jo Teeter Dobbs, The Faces of Genius Janus: The Role of Alchemy in Newton’s Thought, Cambridge, 1991.

(77) Yahuda MS 1.4, ff. 67r-68r.

(78) Yahuda MS 1.1a, f. 1r.

(79) Ver a discussão de Lawrence Principe da aversão de Newon à publicidade em suas atividades alquímicas: L. Principe, `The alchemies of Robert Boyle and Isaac Newton: alternative approaches and divergent deployments’, in Rethinking the Scientific Revolution (ed. M. J. Osler), Cambridge, 2000, 201-220.

(80) Keynes MS 133, p. 10. Rob Iliffe lida com a ofuscação de Newton dos Principia em seu “Por isso, e por aquilo”: entendendo e autoria dos Principia, trabalho datilografado inédito, 1997.

(81) Cf. Keynes MS 3, pp. 3, 13.

(82) Keynes MS 132, f. 2r.

(83) Sobre a convicção de Newton de que ele era um membro privilegiado dos prisca theologi na posse da prisca sapientia perdida (que incluía teologia e a filosofia natural) ver J E McGuire e P M Rattansi, `Newton e a flauta de Pan”, Notas e Registros do Royal Society of London (1966), 21, 108-43.

Deixe um comentário