Bibliot3ca FERNANDO PESSOA

E-Mail: revista.bibliot3ca@gmail.com – Bibliotecário- J. Filardo

Tenho um corpo ou sou um corpo?

 

Tradução J. Filardo

 

Por Henri Pena-Ruiz

Lição de Anatomia – Rembrant

 

Orígenes, um teólogo cristão do terceiro século, conta em seu livro voltado contra Celse, filósofo pagão hostil ao cristianismo, uma história famosa sobre Epicteto (nascido em Hierópolis, em 50, e que morreu em Nicópolis, por volta do ano 130). Escravo e filósofo estoico cujo nome significa “homem comprado, escravo”, Epicteto teve um dia que sofrer de seu mestre Epafrodita, uma espécie de tortura que consistia em obrigá-lo a colocar uma perna em uma morsa. Enquanto este mestre estúpido gradualmente apertava a morsa, o filósofo o advertia calmamente: “Você vai quebrar minha perna”. Epafrodita continuou e quebrou a perna. O filósofo se limita a dizer friamente: “Eu avisei: você a quebrou”. “Sofra e abstenha-se”: a famosa máxima do estoicismo evocada por Alfred de Vigny em A morte do lobo atesta a resistência ao mal. Isso requer um distanciamento suficiente em relação à dor física para controlar as reações que ela provoca. Nada de choro, nada de lágrimas. O ideal de sabedoria é a ausência de preocupação (ataraxia) que resulta de uma disciplina interior adequada. 

A serenidade repousa aqui em um esforço da razão e da vontade. As coisas que acontecem ao nosso corpo não estão em nosso poder. Mas as nossas reações estão. É ainda mais notável que sendo materialistas, os estoicos explicam a atividade mental pelo corpo e não por uma realidade espiritual que lhe seria externa. Eu tenho um corpo ou sou um corpo? Tal questão põe em jogo a concepção do homem. O que o pronome pessoal “eu” cobre no seio da alternativa formulada? Ou o sujeito individual parece considerar seu corpo como uma realidade distinta. Ou ele se declara uma parte interessada de sua existência dispondo de um poder de controle sobre o que acontece ali. Isso merece reflexão.

Desafio

Como pensar o lugar do corpo na condução controlada da vida humana? A questão envolve as ciências e a filosofia. As ciências tornam conhecido o conjunto de funções vitais do corpo, e encontraram remédios que tratam para curar. A filosofia, ou simplesmente o esforço da sabedoria, baseia-se no que ilumina a condição humana para definir uma disciplina da vida e uma arte de vida. Assim, certos filósofos gregos praticavam uma ginástica concebida como manutenção do corpo em prol da saúde, ela própria uma condição para um pensamento lúcido. Daí a máxima de Juvenal: “mens sana in corpore sano” … um espírito são em um corpo são (1). Quanto à arte de viver, eles a formavam cultivando a temperança e a sobriedade para restringir os impulsos do corpo. Assim faziam os epicuristas e os estoicos. Tal projeto está enraizado na meditação sobre as primeiras experiências sensíveis coletadas pelos cinco sentidos, que asseguram uma mediação contínua com o mundo. Sentimos prazer, mas também sofrimento, a alegria de medir nosso poder de agir e a tristeza de testemunhar seu declínio gradual. A excelência própria do ser humano é o pensamento, que dá ao corpo sua autoconsciência, mas também pode ser perturbado pelo que lhe acontece. Não como se ela fosse externa a ele, mas apenas porque as repercussões psíquicas da experiência podem privar o ser humano de seu controle.

Essa observação explica a tentação de pensar sobre a relação do pensamento com o corpo de duas maneiras, que podem ser encontradas em particular na história da filosofia. O debate se deu entre os monistas e os dualistas. Os monistas afirmam a unidade do corpo e do espírito, inscrevendo-o em um único princípio explicativo: a matéria em sua forma orgânica. Não há necessidade de multiplicar os princípios para dar conta da diversidade do comportamento humano: basta conceber o assunto de maneira suficientemente diferenciada em seus níveis de organização e complexidade. Os dualistas, por sua vez, distinguem claramente dois princípios explanatórios de essência diferente, sendo o espírito (também chamado de alma) supostamente imaterial, enquanto o corpo é material. A oposição entre dualismo e monismo é frequentemente associada à oposição entre espiritualismo e materialismo, e até mesmo entre visão religiosa e conhecimento científico. E o debate resultante pode ser resumido na alternativa entre duas definições do sujeito humano. Assim, o “eu” que incorpora a função do sujeito não é outro senão o corpo pensante de essência material, ou uma instância relacionada ao corpo sem lhe ser consubstancial. Platão apoia essa teoria. Outros desenvolveram diferentes abordagens. Aristóteles já parece hesitar entre o dualismo e o monismo. Epicuro, com seu discípulo Lucrécio é francamente monista, assim como Spinoza, Diderot e mais perto de nós Jean Pierre Changeux, notável autor do Homem Neuronal, uma combinação de ciência (neurobiologia) e filosofia. Descartes reintroduzirá o dualismo, ao mesmo tempo em que admite seu embaraço ao pensar de forma clara e distinta.

É necessário evocar essas duas grandes concepções, não para as colocar no mesmo nível, mas para captar o significado de sua oposição. A ciência, particularmente a neurobiologia e o estudo fisiológico do cérebro, deixaram claro que qualquer comprometimento grave do cérebro, por exemplo, devido a um choque físico violento, resulta em funções mentais prejudicadas, tais como perda de memória, perturbação mais ou menos pronunciada das habilidades cognitivas. Sem dúvida, então, que a sede do pensamento não é separável do corpo humano e mais precisamente do cérebro, parte do corpo da qual depende o pensamento. Mas o dualismo é desqualificado ou expressa apenas a preocupação de garantir a originalidade de um pensamento independente das emoções e paixões do corpo? Uma definição aprofundada do corpo é necessária aqui.

O que é o corpo?

De um modo geral, definimos o corpo como a realidade física individual de cada ser vivo. Uma realidade material, organizada em sua complexidade para garantir as grandes funções da vida. Estamos falando dos corpos de animais e seres humanos, mas não dos corpos de árvores ou flores, nem dos corpos de minerais. Nós também falamos sobre o corpo de uma pessoa morta, então sobre um cadáver. A vida não o habita mais, ele é inanimado (literalmente desprovido de sua alma). Morrer é expirar, dar o último suspiro, entregar a alma. A vida é entendida como a animação do corpo, princípio orgânico, que manifesta um hálito quente exalado pela boca. A etimologia, como sempre, é instrutiva, especialmente quando as palavras são onomatopeias sugestivas: psychè em grego, spiritus ou anima em latim, designam primeiro esse movimento de ar que atesta a respiração vital. Diz-se da pessoa que morre que ela está dando seu último suspiro.

Mas agora a decomposição do cadáver faz com que o corpo orgânico retorne à realidade mineral na qual ele será gradualmente absorvido. Em breve falaremos dos restos do corpo, elementos que se espalharão, desarticulados. No nível da natureza total, os três reinos (mineral, vegetal, animal) são ao mesmo tempo distintos e envolvidos em uma dialética cíclica. A roda gira. Pó você era, e ao pó você retornará, diz o texto religioso (2). Muitas cosmovisões enfatizam essa dimensão cíclica da qual o reino animal-humano faz parte. E elas tentam dar significado em várias direções, que devemos tentar re-entender o sentido. Toda representação humana, independentemente de julgamento de sua verdade ou de sua falsidade, transmite algo essencial.

O primeiro passo é encontrar uma forma de sobrevivência dos seres humanos, até mesmo dos animais, pela reencarnação, transmigração em uma sucessão de vidas diferentes. Essa metempsicose (literalmente, a passagem da alma de um corpo para outro) torna possível viver a morte, se se pode assim dizer, como uma passagem e não como um simples retorno ao nada. Em Platão, assumindo a religião órfica por si só, ela conforta a visão de uma alma pensante irredutível ao corpo e capaz de se libertar das capturas que a vida do corpo desperta.

A segunda visão, peculiar ao cristianismo, confere ao ser humano outro tipo de vida situada em um além, inclusive uma felicidade eterna, libertada dos tormentos deste mundo. À carne, e nela a alma é então prometida uma ressurreição. “Toda a carne verá a salvação de Deus”: para Lucas (4), a carne engloba a totalidade do ser humano, em sua condição original de realidade físico-espiritual. O corpo (sôma, em grego) é parte da carne e, portanto, conhecerá a salvação da ressurreição. Paulo de Tarso escreve: “nascido primeiro como corpo animado (sôma psychikon), ele ressuscitará corpo espiritual (sôma pneumatikon)” (5). Outra formulação confirma essa ideia: “Vós não sabeis que vosso corpo é o templo do Espírito Santo? ’ (6). Em paralelo, a teologia da encarnação de Deus e sua palavra em Cristo torna-se uma espécie de exemplo ideal de tal ressurreição: “O verbo se tornou carne” (7). Certamente a carne pode ser também pecadora, pois ela cede à tentação do desejo de gozo de que Agostinho fala nas Confissões (a libido). Acessível ao desejo físico e especialmente sexual, ela consagra a iminência do pecado para qualquer pessoa assim desviada da espiritualidade religiosa. O pecado é então desfrutar do corpo que somente deve ser usado, enquanto que apenas os prazeres espirituais são admitidos (cf. São Francisco de Salles).

Os dois dualismos

As filosofias e religiões abordam a questão do corpo em prol do poder racional da consciência humana ou da atenção prestada à moralidade da ação humana. Algumas observações. Primeiro, é claro que o pensamento, como atividade reflexiva, é distinto da emoção como realidade afetiva. Nesse aspecto, pode-se falar em dualismo funcional de registros mentais. Mas esse dualismo não implica somente um dualismo substancial, que distinguiria dois tipos de substâncias radicalmente diferentes, contrastando a realidade corporal e a realidade espiritual. Como um bom discípulo de Epicuro, Lucrécio, por exemplo, apoia uma doutrina materialista, que considera vários níveis e várias maneiras de organizar a matéria e os átomos (em grego, partículas indivisíveis) que a constituem. Se ele reúne todas as coisas na singularidade da matéria assim diferenciada, ele admite como essencial a distinção entre sentimento e reflexão. Não há necessidade de passar do dualismo funcional para o dualismo substancial. A matéria orgânica da qual o corpo é constituído pode diversificar sua organização a ponto de possibilitar a atividade pensante e sua afirmação diferencial em relação à percepção, emoção e sentimento. Diderot e depois Nietzsche dirão cada um à sua maneira. Em suma, o materialismo monista pode muito bem refletir uma pluralidade de funções. Portanto, é errado afirmar que esse materialismo reduz o superior ao inferior. Ele coloca níveis de organização da matéria e, uma vez constituído cada nível, ela tem sua especificidade, irredutível ao nível inferior. Daí a possibilidade de inscrever os reinos mineral, vegetal, animal e humano em uma hierarquia em que cada escalão repousa sobre o escalão inferior sem se reduzir a ele. Ainda assim, para dar conta da originalidade do pensamento, reconhecido como a propriedade original da humanidade, muitos filósofos se sentiram obrigados a desenvolver um conceito dualista, como por exemplo Platão.

Por que separar o pensamento do corpo? Tentativa de interpretação de Platão

Platão desenvolve em Fédon a ideia de um antagonismo entre o corpo e a alma, porque segundo ele o corpo, ou o fascínio que ele exerce, que dificultaria a descoberta da verdade: “… enquanto tivermos o corpo associado à razão em nossa busca e que nossa alma estiver contaminada por tal mal, nunca alcançaremos completamente o que desejamos e diremos que o objeto de nossos desejos é a verdade … o corpo nos enche de amores, desejos, medos, quimeras de todos os tipos, inumeráveis ​​tolices, de modo que, como se diz, realmente nos tira qualquer possibilidade de pensar … ele nos torna incapazes de discernir a verdade. Na sequência de tal ideia, o Theaetetus questiona a identificação da ciência e da sensação. A sensação e a impressão, comuns ao homem e ao animal, proporcionam à reflexão humana uma oportunidade de libertar-se do registro sensível, analisando-o retrospectivamente: “Há certas coisas, portanto, que, desde o nascimento, homens e animais são naturalmente capazes de sentir: estas são as impressões que conquistam a alma passando pelo corpo. Ao contrário, o raciocínio que se faz sobre essas impressões, em relação à sua essência e utilidade, vem apenas com dificuldade e no longo prazo … Não é, portanto, nas impressões que reside a ciência, mas no raciocínio sobre as impressões, porque é assim que se pode alcançar a essência e a verdade.”

Platão, em Fédon, apoia um paradoxo. Ele vê na morte uma separação radical do corpo e da alma, daí uma condição ótima de pensamento. É preciso, sem dúvida, interpretar essa ideia no segundo grau, como um caso limite, porque com a morte não há mais nada a viver, portanto, a pensar. O tema da reencarnação compensa esse paradoxo, sugerindo que nenhuma vida é sem futuro. No mito de Er que conta Platão (8), Ulisses escolhe sua nova vida levando em conta os tormentos da anterior, mas algumas almas fazem escolhas catastróficas, como Archelaos, o tirano que é seduzido pelo desejo de poder e riqueza.

Um famoso episódio de Fédon, ainda de Platão, coloca em cena Sócrates no momento em que lhe retiram suas correntes. Uma oportunidade para ele relativizar as afeições corporais. Vamos ler: “Sócrates, em seguida, endireitou-se para se sentar em sua cama, cruzou as pernas, começou a esfregá-la por um longo tempo com a mão e, enquanto a esfregava, pronunciou estas palavras: “Que coisa desconcertante, meus amigos, parece ser o que os homens chamam de agradável, e que relação surpreendente sua natureza tem com o que é considerado seu oposto, o doloroso: no homem, nenhum deles consente em coexistir com o outro, mas se alguém persegue um e o captura, quase se pode dizer que se é obrigado a capturar também o outro … na minha perna, por causa da corrente, havia o doloroso e, agora, é o agradável que parece vir depois. » (9) Este é o esforço para distanciar-se das garras do corpo, a fim de entregar-se ao curso do pensamento.

Tal distanciamento é tanto mais necessário quanto a violência das dores ou do prazer tende a pregar a alma à vida do corpo. Essa alma “é levada a reter o que causa o mais intenso afeto pelo que tem mais evidência e verdadeira realidade, quando não é nada (…) Todo prazer, toda tristeza é como se tivessem um prego com o qual pregam a alma ao corpo, fixam-na nele e lhe dão uma forma que é a do corpo, já que é válida para tudo o que o corpo declara ser tal.»(10)

Platão defende um exercício da morte para designar o ascetismo que torna o espírito ele mesmo. O espírito só pode nascer de si mesmo estando ausente dos tormentos do corpo e das afeições que ali sucedem. A sabedoria cultiva a ausência de excitação e problemas, para transformar a vida no que a eleva acima dela mesma. Outra maneira de se realizar se revela então, que pode consolar a devastação do tempo. Se Sócrates entrega o pensamento do ciclo de sofrimentos e prazeres, é para fazer ser capaz de dar uma vida capaz de dar a si mesmo as próprias alegrias. Portanto, não é o próprio corpo que ofusca diretamente a alma como órgão do pensamento. É o fascínio que nasce de múltiplas afeições das quais ele é a sede e a fonte. Feitiço mais do que captura física real, a dialética dos prazeres e tristezas provoca uma avaliação à sua medida. Ela esquece a verdade e suas demandas. Assim se transforma a ideia de que o próprio corpo seria impuro: a impureza não depende de uma substância material que é o que ela é, e cujos movimentos têm sua própria necessidade. Ela se define, antes, por uma espécie de complacência, de confusão, que faz do pensamento uma repetição inútil de afetos, uma simples repetição das avaliações espontâneas em que se concentram as pretensões da experiência. Platão rejeita tanto o estado de privação quanto o estado de deboche. A ambos marcam um desequilíbrio prejudicial à saúde mental.

Eu estou no meu corpo como um piloto em seu navio?

A vida é o princípio do movimento, ou a faculdade motriz. Mas uma clara diferenciação dos seres vivos aparece. Uma coisa é alimentar-se e crescer (a chamada função vegetativa), outra coisa é sentir e desejar (função sensorial), e ainda outra coisa é pensar racionalmente (função intelectiva). A planta, o animal e o homem incorporam especificamente cada uma dessas funções. Aristóteles atribui todas essas funções à alma, concebida como princípio de vida, e imediatamente pergunta se elas são separáveis ​​do corpo. Ele responde negativamente para as funções vegetativas e sensoriais, das quais observa que a distinção lógica não implica somente uma separação real, mas a questão lhe parece difícil e crucial para a função intelectual. De fato, o pensamento é a fonte da ação deliberada e a expressão própria do homem. Como entender o status da alma pensante? A atenção dada à originalidade da função intelectual, e à sua necessária autonomia, pode levar a lhe atribuir um suporte adequado, um tipo de ser diferente do que aquele que sustenta as outras funções. Imanente ao corpo pela vida que cresce e deseja, a alma seria separada como intelecto pensante. O pensamento só poderia repousar sobre “uma espécie de alma bastante diferente”, da qual Aristóteles considera que “só ele pode ser separado do corpo, como o eterno, do corruptível”. Mas esta é uma simples hipótese. Aristóteles duvida que se possa dizer sem reservas que a alma é para o corpo o que o piloto é para o navio (3). Tal analogia implicaria uma clara separação das duas realidades, e não apenas sua distinção: um piloto pode trocar de navio, e um navio pode ser conduzido por outro piloto. O piloto segura o leme, isto é, o pedaço de madeira que impele a direção do navio e traça o seu rastro. O sábio governa a si mesmo: ele segura a barra.

Esta mesma imagem é retomada por Descartes. Outras funções vitais que não o pensamento pertencem ao corpo e sua organização interna quase mecânica. Que é, então o pensamento? Irredutível à sua dimensão propriamente intelectual, ele abrange toda a atividade mental, da vida interior da consciência. Às impressões sensíveis, às solicitações emocionais que são a dor e o prazer, correspondem a reações específicas da alma. É a alma que sente, sofre, percebe e julga. O que ressoa nela não vem do corpo como de uma realidade externa, mas a afeta intimamente: o intelecto, logicamente distinto pela função que ele cumpre, origina-se de uma substância igualmente distinta, como aquela do piloto em relação ao navio? Descartes retoma a comparação de Aristóteles: “A natureza me ensina também por esses sentimentos de dor, fome, sede, etc., que não só estou alojado em meu corpo, assim como um piloto em seu navio, mas além disso, que estou muito estreitamente e tão confuso e misturado, que eu componho como um só todo com ele. Pois se não fosse assim, quando meu corpo estivesse ferido, eu não sentiria dor por isso, eu que sou apenas um ser que pensa, mas eu perceberia essa ferida pela mera compreensão, como um piloto percebe pela visão se algo quebra em seu navio. ”

O piloto não se confunde com o navio, que ele apreende como um objeto “externo”, mesmo que ele forme um todo funcional com ele. Na analogia proposta, o corpo é representado como um lugar onde o “eu” está localizado, implicitamente identificado com a alma: é uma relação de externalidade que é primeiro sugerida. Mas a inseparabilidade dos dois termos introduz uma diferença: um piloto não é um homem de qualquer tipo, mas um homem caracterizado por sua função (dirigir um navio). É bem o piloto que comanda o navio, acionando o leme. A analogia, portanto, lembra uma hierarquia, habitual na concepção dualista de alma e corpo. A formulação “eu tenho um corpo” opõe-se aqui à formulação “eu sou um corpo”. Mas esse corpo não é também o meu corpo? Não me limito a constatar que meu braço está quebrado, quando sofro tal ferimento, como o piloto notaria que o mastro do navio está quebrado. A experiência da dor revela que a alma não está simplesmente associada a um corpo ao qual permaneceria alheia. Forma com ele “um todo único” cujas partes são indissociáveis.

A cabeça e as mãos. Antropologia

O corpo humano, como uma totalidade organizada, envolve os membros, os órgãos e o órgão da atividade mental que é o cérebro. Aristóteles aponta a solidariedade entre a inteligência e a originalidade da mão humana, uma ferramenta versátil: “Não é porque tem mãos que o homem é o mais inteligente dos seres, mas porque ele é o mais inteligente dos seres que ele tem mãos. De fato, o ser mais inteligente é aquele que é capaz de usar a maioria das ferramentas: a mão parece não ser uma ferramenta, mas várias. Porque ela é, por assim dizer, uma ferramenta que toma o lugar de outras. É, portanto, ao ser capaz de adquirir o maior número de técnicas que a natureza deu, de longe, a ferramenta mais útil, a mão. A mão é a ferramenta por excelência, aquela que toma o lugar de todas as outras: “organon pro organon”: um instrumento para instrumentos, um instrumento para implementar instrumentos ou um instrumento que vale vários instrumentos.

Com a antropologia científica, a tese de Aristóteles fará parte de uma teoria da evolução que levou ao homo sapiens. Um artigo de André Leroi-Gourhan intitulado “Libertação da mão” o testemunha em 1956. Ele conecta mutações simultâneas que provocam a configuração corporal do homo sapiens, simplesmente homo faber (fabricante de ferramentas), homo loquax (falante) e homo politicus (membro de uma cidade): “A oposição entre a mão constantemente disponível do homem e a mão locomotora do quadrúpede tem sido, sob os mais variados ângulos, objeto de reflexão por filósofos, anatomistas e paleontólogos. Apanágio do homo faber, instrumento do cérebro mais bem organizado de todas as séries zoológicas, a mão, livre de suas restrições pedestres, é o símbolo da evolução do homem (…) os primatas são consequentemente impulsionados em uma direção evolutiva em que a colocação do corpo em posição sentada, o uso técnico da mão, a regressão da massa facial e o desenvolvimento do cérebro estão em um estado de interação favorável. (11).

Completando o estudo de André Leroy-Gourhan no registro da neurociência, Jean Pierre Changeux destaca a organização neuronal do cérebro. Ele distingue um nível básico, sensório-motor e um nível superior que garante “as bases neuro-anatômicas do espaço de trabalho consciente”. Fazendo um balanço, o autor conclui: “O leitor terá percebido que o cérebro humano é composto de bilhões de neurônios ligados por uma imensa rede de cabos e conexões, que nesses “fios” circulam impulsos elétricos ou químicos totalmente descritíveis em termos moleculares ou físico-químicos, e que todo comportamento é explicado pela mobilização interna de um conjunto de células nervosas definidas topologicamente (…) A identificação de eventos mentais com eventos físicos, portanto, não são de maneira alguma uma tomada de posição ideológica, mas simplesmente como a hipótese de trabalho mais razoável e sobretudo a mais proveitosa. » (12)

Espinosa e o poder do corpo feliz

À luz das lembranças precedentes relativas à iluminação científica da relação entre o corpo e a atividade mental, medimos a modernidade de Spinoza, saudada pelo próprio Changeux. O autor de Ética afirma que o espírito (em latim, mens) e o corpo pertencem a uma realidade única: “o espírito e o corpo são uma e a mesma coisa, concebidos às vezes sob o atributo do Pensamento, às vezes sob o atributo da Extensão (…) Consequentemente a ordem das ações e paixões de nosso corpo vai, por natureza, junto com a ordem das ações e as paixões do espírito. ” (13). Neste contexto, a virtude é a busca do útil, e tudo o que contribui para o verdadeiro desenvolvimento do corpo, uma condição do desenvolvimento do espírito. Libertado das garras da imaginação, tal virtude estimula o esforço para entender, cujo princípio é a razão. Sob a orientação da razão (ex ductu rationis), a lucidez existencial valoriza a alegria de compreender tanto para si quanto para a ação que ela ilumina. Ela não exige privação e é repugnante apenas o excesso. Epicurismo. Nossas próprias afeições são estimadas em proporção ao conhecimento adequado que elas permitem, e ao poder de afirmação de nossa natureza. Prazeres e conveniências da existência são o resultado de tal apreciação, que exclui a superstição da abstinência: “Certamente apenas uma superstição feroz e triste proíbe o prazer. (…) Nenhuma divindade, ninguém menos que uma invejosa, sente prazer com meu desamparo e dor, ninguém mais toma por virtude nossas lágrimas, nossos soluços, nosso medo e outras marcas de impotência interior; pelo contrário, quanto maior a Alegria que nos afeta, tanto maior a perfeição a que passamos, mais é necessário que participemos da natureza divina. » (14)

Daí uma ode epicurista ao cuidado com o corpo e seu alcance libertador. O desafio de tal reabilitação dos bens desse mundo é crucial: a riqueza de uma experiência existencial diversificada, implantada em todos os seus registros de realização, é a própria condição de uma razão de sucesso, carregando a inteligência do que está no seu melhor. Deixemos a última palavra a Spinoza:

“Portanto, cabe a um homem sábio usar as coisas e aproveitar o máximo que puder (sem chegar ao ponto de desgosto, que é não mais sentir prazer). Cabe a um homem sábio, eu digo, fazer uso para a sua reparação e da reparação de suas forças de comida e bebidas agradáveis ​​tomadas em quantidade moderada, bem como os perfumes, a aprovação de plantas verdejantes o adorno, a música, os jogos que exercitam o Corpo, os espetáculos e outras coisas do mesmo tipo que todos podem usar sem nenhum dano para os outros. De fato, o corpo humano é composto de muitas partes de natureza diferente que continuamente exigem uma dieta nova e variada, para que o corpo todo seja igualmente capaz de qualquer coisa que possa seguir de sua natureza e que a Alma também seja capaz de compreender várias coisas ao mesmo tempo. Esse modo de ordenar a vida está, portanto, em perfeita harmonia com nossos princípios e práticas; nenhuma regra de vida, portanto, é melhor e mais aconselhável em todos os aspectos, e não há necessidade de tratar aqui este ponto de maneira mais clara ou mais completa.”

 

Notas:

1: Sátiras, 10, 346, escritas em torno de 116

2: Velho Testamento, Gênesis III, 19

3: Da alma, II, 413a

4: Evangelho 3, 6

5: Epístola aos Coríntios 15, 44

6: Aos Coríntios 6, 19

7: O Evangelho Segundo João 1, 14

8: Livro X de a República

9: Fédon, 60 b e c, tradução M. Dixsaut, Editora Garnier Flammarion, Paris 1991, páginas 205 e 206.

9: Fédon, 83 cd, tradução M. Dixsaut, Editora Garnier Flammarion, Paris 1991, páginas 241 e 250.

11: Publicado na revista Problemas da Associação de estudantes de medicina da Universidade de Paris, No. 32, p. 9/6

12: Extrato de “O homem neuronal”, 1983, reedição. Hachette, col. “Plural”, 1998.

13: Ética, III, 2, Escolie

14: Ética IV, Proposição 45 Escola 2. Garnier Flammarion página 263.

 

 

Publicado em FM-FRanc-Maçonnerie Revue