Bibliot3ca FERNANDO PESSOA

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Sobre a “Construção” de Conhecimento e o Conhecimento de “Construção”

Traduzido por J. Filardo
Por Daniel Jacobi  (Universidade Goethe de Frankfurt)

Desde sua chegada às Relações Internacionais (RI), cerca de 20 anos atrás, a ideia de ”construção social da realidade” estabeleceu-se firmemente na disciplina. Apesar de reconhecer que nem tudo foi construído socialmente, ”incluindo, por exemplo, o sabor do mel e o planeta Marte ” (Hacking, 1999:25), a noção erudita de que o ”social” está no cerne da (re) produção da ordem tomou o centro da cena. Com isso, inúmeros conceitos inovadores, tais como normas, ideias e identidades entraram oficialmente em nosso vocabulário, junto com a promessa de permitir um melhor estudo do “político”. No entanto, infelizmente, ao invés de embarcar em novos caminhos teóricos ou empíricos, muitos estudiosos apenas “derramaram os padrões emergentes de pensamento no antigo molde” (Wight 2002: 40) e pararam qualquer dimensão processual inerente ao novo vocabulário.

O conceito de conhecimento tem estado repetidamente na ponta receptora deste dilema. Muito frequentemente emprestado de sociólogos fenomenologicamente preparados e dos suspeitos costumeiros para a legitimação do desvio construtivista, Peter Berger e Thomas Luckmann, o conceito de conhecimento aparece com destaque como um ponto de acesso ao estudo da dimensão social da política internacional. Para ter certeza, o lado positivo da virada com relação a este conceito foi o fim definitivo de quaisquer ilusões racionalistas sobre o “verdadeiro conhecimento”.  Em vez disso, hoje, o conhecimento pode ser entendido de uma maneira não dogmática ”como a certeza de que os fenômenos são reais e que eles possuem características específicas ” (Berger e Luckmann, 1966:1). Na verdade, um ponto de vantagem minimalista abre caminho para a questão bastante fundamental de “Quem acredita que qual conhecimento é   verdadeiro?” Conhecimento torna-se, assim, dependente de reivindicações de verdade. Nossa atenção é deslocada para o caráter social e, portanto, a determinação social do conhecimento. Podemos então entender o conhecimento como socialmente relevante, objetivo e significado distribuído.  Em outras palavras, o que é real é definido nas comunidades que constituem a sociedade (mundial) e a forma desta definição é o que é considerado conhecimento válido (ibid: 17). Consequentemente, assumindo que as lutas pelo reconhecimento das definições de realidade se encontram no coração do “político”, nós na verdade precisamos entender como o conhecimento e a ação social caminham juntos na formação e distribuição do conhecimento como um fenômeno que vincula indivíduos e comunidade na (re) produção da ordem política.

Muito poucas abordagens na recente teoria de IR enfocaram a conceituação dessa relação. Com suas distinções de conhecimento privado/compartilhado ou implícito / explícito, bem como os seus focos na interação, práticas e discursos, elas, sem dúvida, oferecem um vocabulário inventivo para a descrição do “social” (por exemplo, Adler 2005; Pouliot 2010). No entanto, olhando para essas abordagens com um olhar fenomenológico e seu interesse particular na relação das formas de raciocínio com seu conteúdo (p.ex., Husserl 1975) – tem-se que admitir que muitas dessas tentativas falham em dar conta da sociabilidade real do conhecimento. Embora seu vocabulário inegavelmente siga a semântica do processo, suas conceituações concretas tendem a excluir essa última. Isso é devido ao fato de que muitos deles enveredam pela mente / mundo ou o dualismo sujeito / objeto já descrito por Kessler e Michel acima. As conceituações de conhecimento em muitas abordagens de IR são ou de uma natureza individualista ou coletivista à medida que o conhecimento está exclusivamente localizado tanto nas mentes individuais quanto em discursos e práticas. Mesmo onde o acima mencionado “vocabulário processual” sugere algum tipo de dinâmica entre os tipos de conhecimento, podemos em geral encontrar uma hierarquia ontologizada implícita ou explicita entre eles pela qual eles são eventualmente reificados. Assume-se que o conhecimento existe dentro ou fora dos atores e assume as qualidades de tipo objeto de uma entidade substantiva. Ele subsiste além de qualquer relação social.

Posteriormente, a força analítica desses conceitos é profundamente reduzida à medida que eles estão equipados com uma camada préssocializada que, por sua vez, inevitavelmente transforma qualquer conhecimento ou ação em apenas mais um instante da prática ou discurso analisado (Knoblauch 2005: 344). Pior ainda, ela esconde quaisquer elementos de contenção na análise do “político”, o espaço referido da “construção social” da ordem política. Estas abordagens simplesmente não podem capturar o “campo de força” do indivíduo e da comunidade, porque, conceitualmente, eles não têm “espaço reservado”‘ para as ideias divergentes injetadas no processo da “construção” de sentido e, portanto, de conhecimento. Consequentemente, a “construção social” não deve ser entendida como a realização de uma (sub) consciência individual ou coletiva. Ela nunca é um objetivo intencional, mas sim o resultado de ação social contínua. Qualquer outra concepção convida a uma situação descrita por Clifford Geertz, “A sociologia do conhecimento … não é uma questão de combinar variedades de consciência a tipos de organização social e, em seguida, executar setas causais de algum lugar nos recessos do segundo na direção geral dos primeiros – racionalistas usando chapéus quadrados sentados em salas quadradas pensando pensamentos quadrados; eles deviam tentar usar sombreiros”. (Geertz, 1983: 153).

Que tipo de sombreiro devemos usar então?  Bem, eu acho que é um marcado “ação comunicativa”. Ainda assim, não deve ser confundido com conceitos Habermasianos ou suas operacionalizações bastante funcionalistas em RI. O conceito, tal como é entendido aqui, repousa na crença simples de que nenhuma das perspectivas isoladas acima sobre discurso, prática ou pensamento pode por si mesma ser responsável por uma teoria da sociabilidade do conhecimento e, portanto, da ideia de “construção social”. Longe disso, eles precisam ser entendidos como aspectos co-iguais de comunicação e só podem ser separados para fins heurísticos. Presume-se, assim que conhecimento e ação vão juntos em ação comunicativa.

Na verdade, “comunicação”‘ não é estranha às RIs, ainda assim “o conceito de ‘comunicação’ marca notoriamente um espaço em branco na maioria das teorias contemporâneas de relações internacionais” (Albert, Kessler e Stetter 2008:43). Em vez disso, ele é muito frequentemente e de forma intercambiável usado com termos tais como linguagem, intersubjetividade ou diálogo. Uma cartilha inicial de uma sociologia de conhecimento orientada fenomenologicamente pode, assim, nos ajudar a compreender melhor as estruturas comunicativas do mundo da vida em que o conhecimento é (re) produzido.

Em primeiro lugar, a comunicação é sempre relacional:  Quando tentamos modelar sua estrutura básica (Bühl 2002: 267-270), precisamos evitar retornar a um modelo emissor-receptor ultrapassado que retrata a comunicação como a simples transmissão de uma mensagem. Mesmo que superemos seu intencionalismo monológico inerente por uma compreensão mais não-representacional de intencionalidade – incluindo efeitos de feedback ou admitindo que a transmissão está sempre ameaçada por interferência de “ruído branco” – a mensagem, mesmo assim, permanecerá sempre ontologicamente anterior ao receptor. Seu conteúdo é assim tomado por seu valor de face, porque qualquer reflexividade é conceitualmente excluída. Consequentemente, se entendermos o conhecimento como emergente da ação comunicativa, a constelação comunicativa básica precisa ser pensada em um vocabulário orientado contextualmente e preencher o vácuo social deixado pelo modelo acima.

Em segundo lugar, a comunicação é sempre multifacetada:  A falta de comunicação emergente do conhecimento é resultado de várias camadas de significado que podem complementar-se ou contradizer-se (Rombach 1977: 27ff). A comunicação, portanto, não passa através de um único canal segundo o modelo emissor-receptor, mas efetivamente só existe devido à sua natureza multifacetada. O conhecimento só pode emergir em contraste ou referência a outro conhecimento. Por isso, também não existe nenhuma “comunicação em metanível” porque se os diferentes níveis dependem igualmente uns dos outros, eles não podem ser hierarquizados ou fundidos uns nos outros. Na verdade, é devido a essa ambiguidade e caráter multifacetado da comunicação que diferentes atores podem sempre encontrar pontos de entrada em comunicação: “A ambiguidade da comunicação não é, portanto, uma ausência, mas um excedente de verdade”. (Bühl 2002: 281-282, tradução do autor). Por conseguinte, não é a mensagem que está sendo comunicada, mas o contexto (ibid.:272).

Em terceiro lugar, a comunicação é sempre contextual:  O acima torna a comunicação num esforço comum por excelência.  Ela já não pode ser entendida como um mero intercâmbio entre dois indivíduos isolados. Mesmo a comunicação face a face é sempre permeada de sociabilidade: “Não há entendimento sem situação, nenhuma ação sem sentido, nenhum ser sem valores …. Qualquer tentativa de conceituar o conhecimento e a ação de forma ahistórica está fadado ao fracasso, vez que a condição básica desses fenômenos é [a dinâmica de sua] contextualidade”. (Rombach 1977: 41-42; tradução do autor). Por um lado, nenhuma relação comunicativa pode existir sem orientação para algum objeto contextual adicional de referência – um tema, um tópico, etc..; um fato que já esteja implícito em nosso sistema de pronomes. Simplesmente, não existem pontos puramente privados de referência na comunicação pois eles nunca existem sem ser influenciados pela orientação de outros. Ao relacionar reflexivamente e definir comumente objetos contextuais de referência, tempo e espaço entram em comunicação, localizando ainda mais e o situando. No entanto, não devemos incluir apenas objetos referência como contexto, mas também o contexto dos próprios objetos. Qualquer objeto de referência somente definido por dois atores faria com que o conceito deslizasse de volta ao nível do modelo emissor-receptor. Se objetos referentes não existem sem a influência do “outro”, precisamos nos lembrar de que “o outro” sempre representa somente muitos outros. É através dessa relação assimétrica aos objetos de referência contextualmente situados que o mundo se torna inevitavelmente parte de qualquer constelação comunicativa; mais uma vez, um fato já implícito nas raízes latinas de communicare, “compartilhar” ou “tornar comum”. A comunicação não é a simples troca de signos e símbolos prefixados, mas os sinais e símbolos que usamos têm um caráter de apresentação (Schütz e Luckmann1989: 131-147). Eles já estão sempre incorporados em um horizonte de sentido, tornando a comunicação um processo contínuo de (re) contextualização, ao invés de uma sequência solta de interações oportunas (ad hoc).

Em quarto lugar, a comunicação é mais do que uma linguagem: Talvez seja devido à sua correlação pragmática com a experiência imediata e, assim, a autenticidade de interações face a face que a linguagem de fato pareça ser o meio para a (re) produção e distribuição de conhecimento. Mesmo assim, particularmente, a comunicação que é socialmente relevante na política internacional precisa transcender esse contexto imediato e encontrar outros meios de conhecimento. Embora a linguagem falada em interações face a face já seja, pelo menos, acompanhada de expressões corporais, ela precisa ser complementada ou mesmo substituída por outros sistemas de significação, uma vez que o conhecimento vai além de tais interações imediatas para contextos mais intermediários e, portanto, societais – , mas também mais transcendentes. Aqui, entre outros sistemas de significação visualmente mais orientados ganham relevância (por exemplo, emblemas, bandeiras, rituais) e, portanto, também precisam ser social e teoricamente considerados.

Em conclusão, o conhecimento não deve ser conceituado como uma espécie de “conector” relacional misterioso entre indivíduos e a comunidade, mas como algo que é cooriginal com eles e suas interações comunicativas – um processo de “construção social” de ordem e identidades em que são perpetuamente triangulados e diferenciados. Uma “construção social: fenomenologicamente preparada deve, portanto, ser entendida como a “construção comunicativa da realidade” (Luckmann 2002: 201.210). Se quisermos observar a formação e a distribuição do conhecimento, bem como sua relação com as estruturas sociais, devemos nos voltar para a comunicação. É somente lá que o conhecimento se revela empiricamente.

Referências

Adler, Emanuel. (2005) Communitarian International Relations. London: Routledge.

Albert, Mathias, Oliver Kessler et Stephan Stetter. (2008) On Order and Conflict: International Relations and the ‘Communicative Turn’. Review of International Studies 34 (S1): 43–67.

Berger, Peter et Thomas Luckmann. (1966) The Social Construction of Reality. New York: Anchor Books.

Bühl, Walter. (2002) Phänomenologische Soziologie. Konstanz: UVK.

Geertz, Clifford. (1983) Local Knowledge. New York: Basic Books.

Hacking, Ian. (1999) The Social Construction of What? London: Harvard University Press.

Husserl, Edmund. (1975) Experience and Judgment. Evanston, IL: Northwestern University Press.

Knoblauch, Hubert. (2005) Wissenssoziologie. Konstanz: UVK.

Luck Mann, Thomas. (2002) Wissen und Gesellschaft. Konstanz: UVK.

Pouliot, Vincent. (2010) International Security in Practice

. Cambridge: Cambridge University Press.

Rombach, Heinrich. (1977) Die Grundstruktur der menschlichen Kommunikation. In Phänomenologische Forschungen 4, Edita Boy Wolfgang Orth. Freiburg: Alber.

Schütz, Alfred, e Thomas Luckmann. (1989) Structures of the Life World, Vol. II. Evanston, IL: Northwestern University Press.

Wight, Colin. (2002) Philosophy of Social Science and International Relations. In Handbook of International Relations, edited by Walter Carlines et al. London: Sage.

3 comentários em “Sobre a “Construção” de Conhecimento e o Conhecimento de “Construção”

  1. Penso que a análise está correta e poderia ser mais completa caso considerasse que tanto na produção do conhecimento, quanto na interpretação do mundo e das circunstâncias, entram também elementos estruturais decorrentes do fato de vivermos em um mesmo cosmos. Esse cosmo constitui uma realidade dotada de modo próprio de ser, dentro do qual mentes inteligentes tentam compreender e se comunicar. Naturalmente essas mentes possuem circunstâncias próprias que certamente condicionam essa comunicação, mas caso elas desconsiderem o cosmos – e as leis que o possibilitam -, e apenas se valerem das circunstâncias, o conhecimento produzido terá validade limitada a tais circunstâncias que, sabidamente, vivem mudando.

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