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Isaac Newton, o herege – Parte V

Tradução José Antonio de Souza Filardo

PARTE V

‘POR MEDO DOS JUDEUS’: ESTRUTURAS LEGAIS E PERIGO SOCIAL

Newton viveu em uma época em que a heresia era não só um crime religioso, mas também uma ofensa civil e um escândalo social. Quando ele se converteu ao antitrinitarianismo em Cambridge, ele se opôs a uma tríade de estruturas jurídicas: civil, eclesiástica e acadêmica. Estas restrições nunca se apresentaram totalmente como um pano de fundo para ações de Newton, ainda porque os artifícios do Nicodemismo eram em grande medida, respostas a tais restrições, estas estruturas são cruciais para a compreensão de suas estratégias e manobras. Primeiro, durante a maior parte da juventude de Newton, a “Ordenação para a punição de blasfêmias e heresias” de 1648 estava em vigor. Esta lei proibia, inter alia, a negação da Trindade ou de qualquer de suas Pessoas; aqueles que não abjurassem esse erro, ‘sofreriam as dores da morte sem o benefício do Clero’.

A prisão era imposta a crimes menores, incluindo mortalismo e anti-pedobatismo (ambos, como vimos, aparecem na teologia madura de Newton). A Lei de Tolerância de 1689 deu algum alívio aos dissidentes protestantes, mas especificamente excluía os católicos romanos e antitrinitarianos. Novas medidas contra o antitrinitarianismo foram tomadas em 1698 com a ‘Lei para suprimir mais efetivamente a blasfêmia e profanação’. Promulgada na esteira das controvérsias trinitarianas, esta Lei ordenava que qualquer pessoa que ‘por Escritos, Impressos, Ensino, ou conselhos orais, negar que qualquer uma das Pessoas da Santíssima Trindade é Deus’ deve na primeira infração ser privado dos direitos legais e qualquer cargo eclesiástico, civil ou militar. A segunda violação era punida com três anos de prisão. Esta lei só foi revogada em 1813. (99)

Quanto ao padrão ortodoxo dos Trinta e Nove Artigos, Newton negava pelo menos cinco Artigos na íntegra ou em parte, incluindo os Artigos centrais relativos à Trindade (i, ii, v, viii, xxvii) (100). Ele pode ter-se desviado de aspectos de até cinco outros também (xx, xxi, xxviii, xxxvi, xxxvii) (101). Mas os Trinta e Nove Artigos Trinta não eram uma medida totalmente abrangente de heresia na Igreja da Inglaterra. O Mortalismo de Newton, por exemplo, não contradiz explicitamente qualquer Artigo, mesmo assim teria sido visto como perigoso e herético. O mesmo pode ser dito para o seu ponto de vista antitrinitariano da história da Igreja e a rejeição de espíritos malignos. Dos três Credos (Apostólico, Niceno e Atanasiano), Newton desviou-se de partes significativas do segundo (por negar que Cristo era ‘muito Deus’) e de praticamente todo o texto do terceiro (negando a co-igualdade e consubstancialidade das três Pessoas da Santíssima Trindade). O que é mais, o Credo Atanasiano anatematizava e condenava aqueles que negavam suas formulações.

A Universidade de Cambridge estabelecia suas próprias restrições. A fim de aceitar seus graus de BA e MA, Newton subscreveu o Prayerbook e os Trinta e Nove Artigos, em 1665 e 1668. (102) Quando ele se tornou um Fellow menor no Trinity College, em Cambridge, em 1667, fez o juramento imposto pelo Ato da Uniformidade de 1662, pelo qual ele jurou ‘conformar-se à liturgia da Igreja da Inglaterra’. (103) Quando ele se tornou um Fellow importante em 1668, ele jurou ‘abraçar a verdadeira religião de Cristo com toda a sua alma’- isto é, a Igreja Anglicana. (104) Finalmente, quando ele se tornou Professor Lucasiano da Universidade em 1669, ele novamente subscreveu a Lei de 1662, (105) e ao assinar o Estatuto do Magistério Lucasiano, também se comprometeu com uma cláusula de moralidade que exigia virtude (honestas) e ordem (modestia) e proibida crimes graves, incluindo heresia e cisma, juntamente com traição, assassinato, roubo, adultério, fornicação e perjúrio. (106) Além dessas subscrições, o Estatuto xlv (De Concionibus) dos Estatutos Elisabetanos da Universidade de 1570 contém várias cláusulas pertinentes relativas à heresia, e proíbe o ensino público, atos ou a defesa contra a Igreja dentro da Universidade, sob pena de banimento perpétuo da instituição. (107)

Por mais duras que possam parecer estas restrições, há uma disparidade entre a severidade das leis e a indulgência em seu cumprimento. As mais severas delas, a Ordenação de 1648 foi revogada com a Restauração. Mesmo quando em vigor, a única pessoa processada sob ela foi o Unitariano John Biddle, que não foi condenado à morte, mas em primeira instância, exilado por três anos. (108) Quanto à Lei de 1698, ela também foi raramente invocada. Existe apenas uma única acusação conhecida (em 1726), e mesmo assim o caso foi arquivado por motivos técnicos e o acusado, que tinha escrito um panfleto antitrinitariano, nunca foi indiciado novamente, embora ele não tenha se retratado, nem escondido seus pontos de vista. (109)

Newton pode ter sido mais preocupado com processos reais. Sabemos agora, em retrospecto, que eles foram os últimos antitrinitarianos a serem queimados na fogueira, mas os casos de Bartolomeu Legate e Edward Wightman, que morreram em 1612 em Smithfield e Lichfield, eram notórios. Apesar de um indulto ter sido obtido, o Sociniano inglês Paul Best foi condenado à forca em 1646. Ex-acadêmico de Oxford, Biddle morreu na prisão em 1662, enquanto Newton ainda era um estudante. Outros Não conformistas também sofreram. Em 1663, um Fellow de Clare Hall (hoje Clare College) foi acusado depois de pregar em particular em Cambridge e ‘condenado a abjurar o reino dentro de três meses ou sofrer a morte como um criminoso’. Apesar de um indulto ter sido obtido, ele permaneceu no Castelo de Cambridge até 1672. Quando retomou à pregação depois de sua libertação, ele foi mais uma vez detido sob custódia, onde cumpriu pena na prisão Fleet. (110) Em 1668, Daniel Scargill foi expulso de Cambridge por ‘afirmar dogmas ímpios e ateus’ e foi reconduzido somente após uma retratação pública na Great St. Mary’s Church’. (111) O Evangelho Nu de Arthur Bury (1690) trouxe ao autor uma multa de £ 500, queima pública do livro e excomunhão. Brief and Clear Confutation of the Doctrine of the Trinity de William Freke (1693) trouxe-lhe uma multa, queima pública do livro e uma retratação forçada. O infame enforcamento de Thomas Aikenhead em 1697 na Escócia por diversas blasfêmias, incluindo a negação da Trindade, lembrou os dissidentes radicais de sua situação precária. (112) Em Dublin, Thomas Emlyn foi multado em £ 1000 e preso em 1703 por antitrinitarianismo. (113)

Os exemplos dos discípulos de Newton, Whiston e Clarke no início da década de 1710s teria atingido um alvo mais próximo. A proclamação de Whiston de antitrinitarianismo lhe custou a cadeira de professor e qualquer esperança de um cargo público. A heterodoxa Escritura-Doutrina da Trindade de Clarke (1712) trouxe-lhe a compulsão de fazer as pazes com a Igreja e impediu promoções eclesiásticas. Ainda assim, nenhum homem foi preso ou multado – e muito menos perdeu a batina. Whiston prosseguiu e obteve patrocínio da nobreza, enquanto Clarke conservava sua reitoria do St James, em Londres. E eles nem ficaram sem o apoio de Whigs e do baixo-clero da Igreja. No entanto, estes resultados não eram previsíveis e para o resto de suas vidas os dois enfrentaram um fluxo constante de insinuações, acusações de heresia e folhetos polêmicos. (114)

Esta pesquisa revela uma série de questões diacrônicas e práticas. Primeiro, no início do século XVIII, o fogo de Smithfield há muito já havia se extinguido. Não houve condenações, durante as duas últimas décadas da vida de Newton, e por algum tempo antes disso tinha sido reservada apenas para os casos mais extremos. A intenção principal das leis de heresia era disciplinar a religião na esfera pública, e como tal elas eram aplicáveis ​​apenas quando hereges divulgavam seus pontos de vista. Meros rumores e acusações não valiam para a lei. Newton e outros hereges Nicodemitas podiam evitar processos confinando suas atividades ao domínio privado. Ser um herege em seu coração era uma coisa; gritar blasfêmias aos quatro ventos era outra questão muito diferente. Até o período de Londres de Newton as repercussões sociais e as implicações da carreira de heresia pública pareciam maiores do que o punho de ferro da lei. No entanto, embora socialmente o epíteto confirmado de ‘herege’ poderia ter pendurado como uma pedra de moinho no pescoço de Newton, ele também era protegido pelo status e aliados poderosos. Pela altura do seu período em Londres havia simplesmente demasiado investido em Newton. Sua exposição certamente teria criado um escândalo – mas teria sido uma agonia. O Presidente da Royal Society e seu Principia eram ferramentas de propaganda internacional de valor inestimável. Whiston era descartável; o estabelecimento não poderia dar-se o luxo de sacrificar Sir Isaac. No entanto, Newton nunca lhes deu motivo para refletir sobre o dilema de sua heresia.

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NOTAS

(99) Robert Florida, `British law and Socinianism in the 17th and 18th centuries’, in Socinianism and its Role in the Culture of XVI-th to XVIII-th centuries (ed. L. Szczucki), Warsaw, 1983, 206-10.

(100) Articles on the Trinity, the Son, the Holy Spirit, the three Creeds and baptism. On the theological intent of the Thirty-nine Articles, see E. J. Bicknell, A Theological Introduction to the Thirty-Nine Articles of the Church of England, London, 1955.

(101) Articles on the authority of the Church, the authority of Councils, the Eucharist, ordination and civil magistrates.

(102) CUL Subscriptiones ii, ff. 163, 243; Subscr. Add. 3.

(103) CUL Subscr. Add. 2, f. 16.

(104) Westfall, op. cit. (1), 331.

(105) CUL Subscr. Add. 2, f. 25.

(106) CUL O.XIV.254.

(107) Statuta Academiñ Cantabrigiensis, Cambridge, 1785, 254-5. Foi ao abrigo desta cláusula que Whiston foi acusado e expulso em 1710, enquanto era Professor Lucasiano. W. Whiston, An Account of Mr. Whiston’s Prosecution at, and Banishment from, the University of Cambridge, London, 1718, 26.

(108) Florida, op. cit. (99), 201.

(109) Florida, op. cit. (99), 202.

(110) C. H. Cooper, Annals of Cambridge, 4 vols., Cambridge, 1842-52, iii, 512.

(111) Cooper, op. cit. (110), iii, 532; James L. Axtell, `The mechanics of opposition: Restoration Cambridge v. Daniel Scargill’, Bulletin of the Institute of Historical Research (1965), 38, 102-11.

(112) Michael Hunter, ‘Aikenhead o ateu’: o contexto e as consequências da irreligião articulada no final do século XVII”, em Ciência e Forma da Ortodoxia: Intellectual Change in Late Seventeenth- Century Britain (ed. M. Hunter), Woodbridge, 1995, 308-32; Champion, op. cit. (61), 107.

(113) A multa, no entanto, acabou por ser reduzida e ele foi libertado em 1705; ao voltar para a Inglaterra, Emlyn publicou outros trabalhos antitrinitarianos sem problemas legais. Florida, op. cit. (99), 202.

(114) James Force, William Whiston: Honest Newtonian, Cambridge, 1985 and J. P. Ferguson, An Eighteenth- Century Heretic: Dr. Samuel Clarke, Kineton, 1976.

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