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Grau 19 – Grande Pontífice ou Sublime Escocês (REAA)

Por João Anatalino Rodrigues

Grau 19 - Grande Pontífice ou Sublime Escocês (REAA)

As alegorias do grau

O Grande Pontífice ou Sublime Escocês é o título do Maçom que é elevado ao grau 19. A evocação de que “o último combate da luz contra as trevas, do bem contra o mal e o da verdade contra o erro está travado” e que a “Pedra Cúbica se transmuta em Rosa Mística e a Palavra Perdida foi recuperada”, significam que o iniciado terminou a sua escalada pelos graus da Perfeição e Inefáveis e está agora apto a começar uma nova jornada pelos graus filosóficos [1].

Além da alegoria dos Doze Trabalhos de Hércules, já comentados no capítulo anterior, o Irmão irá também entrar na Jerusalém Celeste, onde lhe serão reveladas as fórmulas mágicas da Arquitectura maçónica, consubstanciadas nas doze virtudes simbolizadas pelos doze bairros da cidade sagrada.

Nela o Irmão encontrará também a Árvore da Vida, símbolo do fluxo energético que dá vida ao Cosmos.

Catábase e Anábase

Os Doze Trabalhos de Hércules são a porta de entrada nos mistérios dos graus filosóficos da Maçonaria Escocesa, da mesma forma que o eram nos Mistérios Gregos. A simbologia do mito de Hércules, como já se disse, encerra um grande conteúdo filosófico. Em primeiro lugar releva-se o facto de que o herói se precisa iniciar nos Mistérios de Elêusis para aprender “a entrar e sair do mundo dos mortos”. Nesta prática está resumida a mais profunda lição do ensinamento iniciático que é a catábase, (a morte simbólica, a descida ao túmulo, à volta ao estado inicial de matéria amorfa, o mergulho no subconsciente), e a anábase, que é a subida, a ascensão, o voo para a luz, a ressurreição, a aquisição de um estado superior de consciência, o autoconhecimento, conforme expresso no Oráculo de Delfos, e que se constitui na máxima que resume toda a arte da filosofia: “conhece-te a ti mesmo” [2].

Por isto, a tarefa hercúlea, representada pela descida do herói aos infernos, para ali recuperar os seus amigos, ainda vivos, é bastante significativa. Este é, efectivamente, o trabalho do iniciado, a tarefa daquele que, através da iniciação nos Mistérios, encontrou o autoconhecimento e aprendeu a entrar e sair do mundo da inconsciência, onde medram todos os monstros, fantasmas e demónios, que constantemente sobem à superfície para nos desviar dos nossos caminhos. Esta também foi à missão de Jesus, por isso ele entrou e saiu do mundo dos mortos para dar ao homem uma esperança de redenção. Este é profundo significado desenvolvido em todas as tradições religiosas que possuem os seus Mistérios [3].

Dante também desceu aos infernos ainda vivo e de lá retornou com a Gnose da vida e da morte. Neste sentido, a Divina Comédia é um fantástico poema iniciático, no qual se transmite não só a escatologia desenvolvida pela Igreja Católica na sua doutrina, como também recupera e promove a interacção do Cristianismo com a mitologia grega, a sabedoria árabe, tradições gnósticas e mitos herméticos. O esoterismo de Dante já foi muitas vezes associado à Maçonaria. Nós o temos como um dos precursores do grupo rosa-cruciano que deu à Maçonaria especulativa muito material para o desenvolvimento da filosofia dos graus aeropagitas.

Neste sentido, o genial poema de Dante é um verdadeiro tratado escatológico que tem como fim “iniciar” o leitor nos mistérios da vida e da morte, doutrinando-o sobre a forma ideal de viver, bem como mostrar-lhe a verdadeira crença, que na opinião do poeta, era o catolicismo romano. A Divina Comédia é um poema gnóstico da mais alta envergadura, da mesma forma que os Doze Trabalhos de Hércules, e por isso eles são dois momentos singulares dentro do ensinamento maçónico [4].

É para isso que serve a prática iniciática, e esta é também a função da verdadeira fé. Os iniciados devem estar dispostos a arrostar mesmo os perigos do inferno quando se tratar de socorrer, de resgatar os seus irmãos que estiverem lá acorrentados e que pelas suas próprias forças não se conseguem libertar. E não pode temer os monstros que encontrará, ou os perigos que terá que enfrentar, nem as dificuldades que terá que superar. E como o herói da lenda, muitas vezes terá que conviver com a decepção de ter que devolver aos infernos os troféus que de lá resgatou. É que o destino das pessoas e o controle dos acontecimentos não estão, na verdade, nas mãos dos homens, mas pertence unicamente ao Grande Arquitecto do Universo. Mas, ainda assim, o herói, como o Maçom, jamais poderá furtar-se de cumprir a sua missão, pois para essa tarefa foi escolhido, para isso foi submetido a uma iniciação.

Mas os Doze Trabalhos de Hércules têm outros significados que é preciso destacar. Na simbologia do grau 19 eles representam as 12 estrelas que ornam o céu maçónico representado na Loja, que é o Templo da Razão. Estas estrelas, que representam o Zodíaco intelectual também simbolizam virtudes éticas, intelectuais e morais. São elas a Humildade, a Persistência, a Religiosidade, a Espiritualidade, a Racionalidade, a Flexibilidade, a Tolerância, a Adaptabilidade, a Legalidade, a Unicidade (das leis), a Honestidade e a Organização. Estas são, no ensinamento do Grau, as virtudes que conduzem uma sociedade ao apogeu da civilização. Por isso, a meta do ensinamento dos graus filosóficos é proporcionar aos Irmãos a aquisição dessas virtudes [5].

Um grande erro que algumas Lojas maçónicas têm cometido, na nossa opinião, é o facto de que para atender a objectivos simplesmente profanos, como o são os interesses políticos e pessoais dos seus membros, essas Lojas têm admitido nos seus quadros pessoas não qualificadas para perseguirem os objectivos da Ordem.

Estas pessoas entram para a Maçonaria, mas jamais alcançam, ainda que subindo todos os graus da Escada de Jacob, os verdadeiros objectivos da Irmandade. É que a Verdade da Maçonaria não está nos rituais, mas nos símbolos e nas alegorias das quais eles se utilizam para veicular os seus ensinamentos. Desde que Anderson e o seu grupo empreenderam a tarefa de transformação da antiga Maçonaria especulativa, simbólica e iniciática, numa sociedade formal, com o objectivo, a nosso ver, exotérico, de integrar os mistérios das antigas religiões com a filosofia iluminista e a sua ideia de progresso, a poderosa corrente de pensamento que fluía dos seus quadros começou a ser conspurcada por objectivos meramente profanos e ideológicos. A Maçonaria deixou as Lojas de Companheiros, onde congregava “obreiros úteis e dedicados”, para ganhar os salões luxuosos da nobreza, onde a cortesia e a sensibilidade dos “homens de espírito esclarecido, costumes morigerados e humor agradável”, foi confundido com a galanteria concupiscente dos cortesãos. É a esta “Maçonaria de salão” que a Rainha Maria Antonieta, e também Napoleão Bonaparte, se referiram nos seus desdenhosos comentários [6].

Nos tempos actuais a situação não parece diferente. O próprio pedido que é feito ao Grande Arquitecto do Universo para que “enriqueça as colunas” da Ordem com obreiros úteis e dedicados não tem sido atendido devidamente pelos próprios membros da Confraria, que cooptam pessoas mais por amizade pessoal, interesse social, financeiro ou político, fazendo de algumas Lojas mais um clube de lazer, ou um partido político, do que propriamente uma sociedade de pensamento, destinada a promover a construção moral do individuo e o aprimoramento ético da sociedade.

Não é demais lembrar que clubes de serviço, tais como os Lions e Rotarys foram fundados no seio da Maçonaria, para servirem de “braços sociais” da Ordem nos seus objectivos filantrópicos. Desta forma não vemos por que a Maçonaria, enquanto sociedade de carácter iniciático, deveria praticar filantropia. Aos maçons que propugnam por uma maior actividade dos irmãos nesse sentido, sugerimos que entrem para um desses clubes de serviço, cuja competência nesse sector já foi sobejamente demonstrada. A nós se afigura que a Maçonaria deveria voltar às suas velhas origens, actuando como sociedade de pensamento, pesquisando todas as tendências do espírito moderno e ofertando à sociedade uma crítica judiciosa, ponderada e isenta de qualquer preconceito. Neste sentido as Lojas actuariam como verdadeiros“filtros” onde o pensamento seria purificado dos males que o vício, a intolerância, a cupidez, a ambição desmedida e a imoralidade acarretam aos nossos espíritos.

É uma pena que isso esteja acontecendo, pois assim se perde uma ideia que tem sido desenvolvida ao longo dos séculos e pelas quais muitas vidas e consciências já foram sacrificadas. É preciso pensar em melhorar a qualidade dos Obreiros da Arte Real e não simplesmente aumentar o seu número. Nisso, como em toda prática iniciática, é de bom alvitre relembrar a velha lição: o verdadeiro conhecimento, quando é compartilhado com pessoas indignas dele, se abastarda e se corrompe. Sendo facto histórico torna-se mito sem conteúdo; se filosofia ou ciência, torna-se rito vazio e sem propósito, praticado apenas como uma grosseira imitação da verdade.

Aos maçons de espírito esclarecido cabe observar esst facto. Embora não exista hoje, qualquer mistério na Maçonaria oficial, e mesmo que a antiga tradição tenha sido enfraquecida pela inclusão, nos rituais, de diversos temas mais apropriados às salas de aula de uma universidade qualquer, é ainda nas Lojas maçónicas que poderemos encontrar o velho espírito das sociedades secretas e a sua aura de misticismo, que ainda funciona como um poderoso emulador para os espíritos mais sensíveis. É preciso que este clima não se perca com disputas mesquinhas e proposituras mais apropriadas aos objectivos de agremiações políticas de baixa envergadura e escusos objectivos, mas não à Maçonaria propriamente dita.

O Apocalipse

A influência gnóstica existente neste grau pode ser percebida já de início, pelo facto de o grau se utilizar da simbologia do Apocalipse. Aqui estamos diante de uma iniciação nos mistérios do Livro das Revelações, mistérios esses que foram revelados ao Apóstolo João, quando ele esteve exilado na ilha de Patmos. O Apocalipse é um livro de clara inspiração gnóstica, que reflecte também profundas influências cabalísticas, demonstrando que o autor, se não era um rabino, pelo menos tinha profundo conhecimento do pensamento esotérico judeu que se tornou fonte da Cabala [7].

Mas não somente com tradições esotéricas e ensinamentos gnósticos e cabalísticos foi composto este fantástico livro. Ele é também uma crónica rigorosamente exacta da sociedade e dos acontecimentos da época, pois reflecte o conflito entre os primeiros cristãos e as autoridades romanas, especialmente nos tempos dos imperadores Nero e Domiciano, épocas em que as perseguições contra os cristãos foram mais violentas [8].

A autoria do Apocalipse é atribuída ao Evangelista São João. Dificilmente, porém, seria o mesmo João, o apóstolo amado de Jesus, que segundo uma tradição desenvolvida a partir de uma enigmática conversa entre ele e os seus apóstolos, continuaria vivo até que ele voltasse. O verdadeiro autor do Apocalipse, provavelmente, é um filósofo gnóstico que adoptou este nome justamente para fugir à perseguição que sem dúvida atrairia sobre si e as pessoas a quem destinava esse trabalho [9].

O Apocalipse foi escrito como sendo uma revelação obtida através de uma visão que o autor teve quando esteve confinado na ilha de Patmos. Já por essa informação se infere que se tratava de um prisioneiro, provavelmente condenado em razão das suas crenças religiosas. Foi escrito em forma de uma mensagem dirigida às sete igrejas do continente, a saber, Éfeso, Esmirma, Pérgamo, Tiatira, Sardis, Filadélfia e Laodicéia. Estas eram cidades da Palestina, Itália e Ásia Menor, onde os evangelistas, principalmente Paulo de Tarso, tinham fundado colónias cristãs que se encontravam em franco desenvolvimento. Eram cidades chaves no mundo romano, pois se tratava de sedes administrativas ou capitais de províncias do Império Romano.

O Apocalipse é uma obra, que da mesma forma que defende a primazia do Cristianismo e do Cristo sobre as demais religiões e deuses do Império Romano, também evoca um sentimento de vingança contra Roma pela derrubada do Templo de Jerusalém, a destruição do estado judeu e a dispersão do seu povo pelos territórios do Império [10].

A esperança descrita neste trabalho revela, ao mesmo tempo, uma face esotérica, representada pela vitória do Cristianismo e o triunfo do Messias, e uma face política, marcada pela ressurreição do reino de Israel a partir das suas bases cristãs.

Neste sentido, o que o autor faz é recompor, de uma forma dramática, simbólica e com um profundo sentimento místico, o “reino da justiça, da ordem, e da harmonia”, que os ímpios romanos destruíram, com a extinção da pátria judaica e a execução do Messias cristão. Este reino, representado pela Nova Jerusalém é, a um só tempo, material e espiritual. Não foi, portanto, sem razão, que este livro exerceu tamanho fascínio nos estudantes da filosofia oculta nos anos que antecederam o desenvolvimento da Maçonaria moderna, o que justifica o largo uso que dele se faz na composição do catecismo maçónico dos graus filosóficos.

A Jerusalém Celeste

A decoração do Templo, no grau 19, inclui uma tela de formato quadrado, representando uma cidade. Esta cidade simboliza a Jerusalém Celeste com três portas de cada lado, tendo no centro a Árvore da Vida, que produz doze frutos diferentes. A Jerusalém Celeste é a cidade que parece baixar do céu, mostrada no painel do grau. Ela é também o Templo da Verdade ou o Templo da Razão. A sabedoria buscada neste grau é o apostolado da razão. Por isso, a pergunta básica do grau: “Que seria dele (o homem), apesar da consciência e da inteligência, sem a Razão? Viveria perpetuamente no erro e só a casualidade lhe proporcionaria algum progresso.”

A Jerusalém Celestial tinha “um muro alto e grande com doze portas; e nas portas doze anjos, e uns nomes inscritos, que são os nomes das doze tribos de Israel”.

Também no painel da Loja do Aprendiz há uma escada (arcano-alquímica) elevatória, que representa o símbolo da auto-perfeição. Ela é a Escada de Jacob, que sobe do piso da Loja e serpenteia elipticamente pelos doze signos zodiacais. Entre as alegorias que sedimentam os ensinamentos do grau 19, parece-nos que a de maior importância é a Árvore da Vida, razão pela qual esse símbolo será discutido em capítulo próprio.

No ritual do grau 19, a Jerusalém Celeste é o símbolo correspondente ao Éden bíblico e ao Reino de Deus pregado por Jesus. Neste reino mítico, só entrarão os “eleitos”, ou seja, não os espíritos que foram julgados puros no Juízo Final, mas sim, aqueles que serão os representantes, perante Deus, da nova humanidade. O Apocalipse diz que serão 144.000 mil “eleitos” [11].

Neste sentido, a Jerusalém Celeste também é uma utopia, a utopia dos cristãos. Daí o facto das suas “portas” e “caminhos”, serem tratadas como alegorias de fundo ético-moral, conotativas de virtudes e qualidades que um Maçom deve adquirir para fazer parte deste grupo de “eleitos”.

Do livro “Mestres do Universo” – Biblioteca 24×7 – 2010

Notas

[1] Os graus da Loja de Perfeição vão do 4º ao 14º. De 15º ao 18º temos a Loja Capitular. Nestes três últimos graus, e principalmente no 18º, as alegorias trabalhadas são essencialmente ligadas à prática alquímica e à tradição rosa-cruz. Por isso é que ao ser elevado ao grau 19º, o iniciado é “alguém que contemplou a Rosa Mística e encontrou a Palavra Perdida”, pois estas lhe são apresentadas no grau 18º.

[2] Veja-se no capítulo anterior, o décimo primeiro trabalho de Hércules.

[3] Em toda a saga heróica está presente o combate contra “monstros e gigantes”, que significa a luta do iniciado contra os vícios que dominam o espírito humano. Nas iniciações antigas sempre eram simulados combates do iniciado contra instrutores disfarçados de monstros e animais.

[4] Escatologia é a doutrina que trata da consumação do tempo e da história, especulando sobre os fins últimos da vida do homem sobre a terra. Para maiores referências e a conexão da Divina Comédia com a Maçonaria, veja-se o capítulo XV.

[5] Estas doze virtudes também simbolizam os doze apóstolos de Cristo, no sentido de que a doutrina cristã, tem neles as suas colunas mestras.

[6] Maria Antonieta, segundo diz Ambelain, teria comentado com a sua mãe, a Imperatriz da Áustria, que na França todo mundo era Maçom, denotando, com isso, que a Arte Real, nos anos que antecederam a Revolução Francesa, tinha sido popularizada de tal forma que não poderia ser levada a sério. Por isso mesmo é que Napoleão, conforme diz Jean Palou, também se referira aos maçons como “pessoas que gostam de brincar” de cavaleiros.

[7] Não se descartam também as influências herméticas que aparecem ao longo do texto do Apocalipse, referentes a pedras e outras alegorias ligadas ao simbolismo alquímico. Todavia, considerando que a alquimia só se desenvolveu no Ocidente a partir do século XII, é mais provável que o Apocalipse tenha influenciado a linguagem alquímica e não o contrário.

[8] Nero, que governou Roma de 54 a 68 A.C. foi o primeiro imperador a perseguir sistematicamente os cristãos. Diz-se que ele incendiou os bairros pobres de Roma e culpou os cristãos por isso, dando justificativa para os decretos que expediu contra eles. Já a era de Domiciano (81-96), ficou conhecida como a “Era dos Mártires”, pela grande quantidade de cristãos que foram chacinados no seu governo.

[9] Acreditamos que João, o autor do Apocalipse seja, na verdade, um rabino convertido ao Cristianismo, ou um essénio que escapou da chacina promovida pelos romanos na guerra judaico-romana de 66-70. A inspiração gnóstica é evidente em todo o transcorrer do trabalho e é visível também o conhecimento que o autor demonstra ter da Cabala. Ressalte-se que na mesma época em que o Apocalipse estava sendo escrito, o rabino Simão Ben Iohai estava começando o seu trabalho de compilação e explicação dos textos cabalísticos.

[10] Esta dispersão aconteceu no ano 70 da era cristã, com a invasão de Jerusalém pelas tropas romanas e ficou conhecida como Diáspora.

[11] Ou seja, 12.000 x12, número cabalístico por excelência.

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