Bibliot3ca FERNANDO PESSOA

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O mundo pós-pandemia: contextos políticos e tendências internacionais

Por Paulo Roberto de Almeida **

Adivinhos, oráculos e previsões

A primeira observação que poderia ser feita em relação ao mundo pós-pandemia é, talvez, a de que, todos nós, palestrantes e audiência destes programas online, estaremos todos fartos destes programas online, e com razão. O que estamos assistindo, e participando, desde o início da quarentena, é a uma verdadeira inflação de programas como este, um grande dilúvio, de dimensões bíblicas, do qual talvez poucos poderão sobreviver como náufragos. Ou estaremos enfastiados, enjoados, com síndrome de rejeição destes programas online, ou então, ao contrário, teremos nos acostumado de tal forma, que dispensaremos, doravante, encontros presenciais, passagens, diárias, honorários, para fazer aqueles seminários de um dia, que na verdade nos tomavam três dias, entre a viagem de ida, a de volta e a necessária preparação para encontrar o que falar de minimamente inteligente nesses encontros físicos. A segunda observação que eu gostaria de fazer, em toda sinceridade também, é a de que nós não sabemos, de verdade, como será o mundo pós-pandemia. Não somos como aqueles astrólogos que, todo início de ano, anunciam o seu lote de catástrofes, de mortes de pessoas famosas, terminando finalmente por dizer que, independentemente dessas pequenas ou grandes misérias, o ano que se inicia será certamente melhor do que aquele que acaba de se encerrar. Teve uma época, durante toda a duração do lulopetismo, em que eu costumava fazer, não previsões astrológicas, mas previsões imprevidentes, que consistiam, na verdade, em coisas que não tinham a menor chance de acontecer, ainda que tivessem certa dose de plausibilidade. Nisso eu era bastante ajudado pelos companheiros, pois tinha a pretensão de anunciar coisas do tipo: o governo vai se converter ao capitalismo, o MST vai parar de hostilizar o agronegócio, uma América Latina cada vez mais integrada, e outras do gênero. Na última grande crise antes desta, em 2008, eu até tinha tido a pretensão de anunciar que 2009 seria ótimo, pelo menos para os marxistas, que podiam ter mais uma confirmação da débâcle definitiva do capitalismo, ou pelo menos o anúncio de que o fim estava próximo. Mas como apreciador da história econômica, leitor de Charles Kindleberger – e das várias edições de seu famoso livro Manias, Panics, and Crashes, tendo eu mesmo acrescentado mais algumas crises para o caso do Brasil –, eu sempre soube que as crises não acabam, com cisnes negros ou brancos, e que haverá outras, certamente, mas em número muitas vezes menor do que todas aquelas crises previstas pelos economistas catastrofistas, como Nouriel Roubini, por exemplo, também conhecido como Mister Doom.

Mudanças e continuidades, com pandemias que vão e que voltam

Mas, não pretendo reproduzir minhas previsões imprevidentes em relação à atual pandemia, senão adotar uma postura de humildade: não sabemos, realmente, do que será feito o mundo pós-pandemia, supondo-se que haja um, ou seja, de que fiquemos livres, durante mais algumas décadas pelo menos, da próxima pandemia, do próximo vírus mortal, que anda por aí, esperando sua oportunidade. Posso apenas repetir, como já fez o embaixador Rubens Ricupero, em diversas oportunidades nas últimas semanas, que não cabe esperar nenhuma grande transformação radical, mudança estrutural do mundo como ele é hoje, o que tampouco ocorreu com as pandemias anteriores: a vida retorna, retomam-se os velhos hábitos, com algumas alterações inevitáveis. Os que as grandes crises pandêmicas fazem, de certa forma, é acelerar tendências que já se encontravam em curso anteriormente, acelerando mudanças na economia, na produção, na pesquisa científica. Aparentemente, a Peste Negra, do século XIV, apressou o fim do feudalismo, mas o sistema feudal já estava em agonia desde certo tempo antes; e era mais ou menos inevitável que, com o desaparecimento de 25%, ou mais, da população europeia, a produtividade ganhasse novo ritmo, inclusive com inovações que vieram justamente substituir a força de trabalho desaparecida.  A despeito de que a chamada “gripe espanhola”, que na verdade se originou nos Estados Unidos, está bem mais próxima de nós, não temos evidências de quais grandes transformações ela impulsionou, seja no terreno econômico, seja no domínio político. Os grandes impérios europeus continuaram impávidos por mais algumas décadas, a despeito da Grande Depressão e da Segunda Guerra Mundial; as novas forças políticas e culturais, já emergentes desde o final do século XIX e início do XX – trabalhismo, socialismo, fascismo, racismo dito científico, o próprio futurismo e o modernismo, nas artes, na arquitetura, na literatura – se desenvolveram à margem e a despeito da terrível pandemia, que pode ter ceifado algo como 50 milhões de pessoas, talvez até mais. Naquele mesmo momento, e independentemente do pavoroso flagelo, uma feroz guerra civil se desenrola na Rússia, depois do putsch bolchevique, e também como reflexo das nacionalizações e estatizações, uma “epidemia” de fome devastadora colheu mais alguns milhões, ao ponto em que os Estados Unidos, que sequer reconheciam o novo poder soviético, enviaram toneladas de grãos para evitar que dezenas de milhares de crianças e adultas morressem de fome. O futuro presidente Herbert Hoover, depois de liderar uma campanha de ajuda alimentar à Bélgica, durante a Grande Guerra, comandou a American Relief Administration, que atuou no envio de novos carregamentos de alimentos para regiões da Europa central e oriental até 1921.  Depois, o mundo continuou mais ou menos como era antes, e assim entrou em novas crises, guerras civis, invasões e em uma nova guerra global; tudo isso a despeito do Pacto de Paris, firmado de forma totalmente otimista entre o Secretário de Estado americano Frank Kellog e o chanceler francês Aristide Briand, em 1928, destinado a evitar o recurso à guerra na solução de conflitos entre Estados. A Liga das Nações não conseguiu evitar que o Japão invadisse a Manchúria em 1931, que a Itália deslanchasse uma nova guerra contra a Abissínia, antigo nome da Etiópia, em 1936, ou que a Alemanha voltasse a rearmar-se, contra dispositivos do tratado de Versalhes.  Da mesma forma, as recentes epidemias ocorridas desde o início deste século, não alteraram fundamentalmente a marcha da globalização e da expansão das cadeias de valor, concomitantemente ao crescimento ainda mais extraordinário dos intercâmbios globais, no comercio internacional, nos fluxos de capitais, nas viagens transcontinentais, sobretudo no turismo, nas comunicações e nas redes eletrônicas, que cresceram exponencialmente. Um gráfico linear confrontando comércio de bens físicos, de um lado, e transações de dados e outros fluxos de intangíveis, de outro, evidencia um contraste eloquente entre um ritmo simplesmente aritmético no primeiro caso e uma expansão geométrica no segundo.

Contextos nacionais e forças transnacionais

Mas, como diria Galileu, eppur si muove, no entanto, a coisa anda e se modifica. Se falamos de um mundo pós-pandemia, cabe realmente distinguir entre contextos políticos de um lado, e tendências internacionais de outro, mas nem sempre num sentido unívoco, ou sequer homogêneo, para o ambiente político, para o terreno econômico, seja na esfera nacional, ou doméstica, seja no âmbito externo, internacional ou multilateral. O fato é que, como argumentado anteriormente, e já salientado em palestras já feitas pelo embaixador Ricupero, certas tendências já vinham se manifestando, algumas como resultado de certo stress dos mecanismos internacionais – como na fadiga da assistência ao desenvolvimento, por exemplo, ou na paralização das negociações comerciais multilaterais, e mesmo dos impulsos à liberalização comercial plurilateral ou unilateral –, outras como revelado na emergência dos novos nacionalismos, de direita, com seu cortejo de restrições à imigração, de reação contra esforços multilaterais ou comunitários de coordenação econômica ou de implementação de compromissos ambientais.  De longe, a tendência mais forte e mais impactante para o mundo, e totalmente à margem da atual pandemia, consistiu na retração, verdadeiro retrocesso, determinado pelo governo Trump, dos acordos comerciais – começando pelo TPP, passando pela revisão do NAFTA e de outros acordos de livre comércio –, da adesão a organismos internacionais – uma segunda retirada da Unesco, depois daquela registrada na era Reagan –, e até de ameaça às organizações tipicamente americanas, como a OTAN. Um nacionalismo mesquinho se refletiu na rejeição e na expulsão de imigrantes e de ilegais, afetando até aliados submissos como o novo governo brasileiro, que cometeu o despautério de aprovar quaisquer atos do presidente Trump, até os mais ofensivos aos nossos interesses. Algumas dessas tendências à introversão, adotadas por governos da nova direita, já estavam em curso antes da pandemia, como já se salientou, mas é provável que o impacto global do Covid-19 reforce, durante algum tempo, pelo menos, o retrocesso nacionalista já adotado por razões basicamente políticas, ou mais propriamente ideológicas. Infelizmente para nós, sobretudo para a nossa diplomacia, o Brasil é um país que simplesmente desapareceu dos cenários internacionais, dos foros multilaterais, e que está totalmente isolado na própria região, sendo incapaz de continuar participando dos debates que precisam ser engajados em determinadas instâncias mundiais para tratar, justamente, do novo quadro criado pela pandemia. Chegamos ao ponto, em função da irresponsabilidade do presidente, de sermos cerceados nos contatos com os nossos próprios vizinhos, seja para a coordenação de políticas – uma vez que elas são divergentes –, seja para ações conjuntas no combate à pandemia. Ou seja, para todos os efeitos, o Brasil é um país que não existe para uma discussão séria sobre os caminhos do mundo numa fase pós-pandemia. Nenhuma das grandes potências, ou sequer os vizinhos regionais, vão pedir a nossa opinião, ou solicitar que participemos de conversas, se houver, a respeito das novas estruturas de cooperação internacional. Na verdade, nem sabemos se a cooperação internacional vai se exercer nas mesmas formas que prevaleceram nas duas primeiras décadas deste século.

Globalização micro e macro: qual avança, qual recua?

Um dos grandes debates que ocorre no terreno algo enviesado da geopolítica tem a ver com essa alegada competição hegemônica entre as duas grandes potências da atualidade: Estados Unidos, aparentemente sofrendo daquele overstrecht imperial, já anunciado por Paul Kennedy desde o final dos anos 1980 – em seu impactante livro, à época, The Rise and Fall of Great Powers –, a China, numa também aparente irresistível ascensão econômica, militar e tecnológica. De certo modo, essa evolução já vinha ocorrendo desde o início do milênio, e vinha se acelerando nos últimos anos, e não parece suscetível de ser fundamentalmente alterada pela pandemia, a não ser pelo fato de que a retração americana já vinha sendo comandada e operada de dentro, pelas próprias políticas introvertidas – isto é, nacionalistas, protecionistas e mercantilistas – do presidente Trump, o que ainda pode se acentuar no futuro de curto e médio prazo. A pandemia já opera alguns desses movimentos, ao incitar diversos países a renacionalizarem a produção de certos insumos e produtos julgados “estratégicos”.  Como todo analista político, ou sociólogo aprendiz, tem direito à sua cota de “teses”, mesmo estapafúrdias, sobre a economia e a política mundiais, vou aqui, desde já, revelar as minhas teses prospectivas sobre o mundo pós-pandêmico, algumas expostas em trabalhos anteriores, mas aqui eu o farei de forma sucinta. Primeiro sobre a famigerada globalização, nossa velha conhecida desde as últimas décadas, embora ela esteja conosco desde a mais remota antiguidade, como argumenta Nayan Chanda em seu livro Bound Together: How Traders, Preachers, Adventurers, and Warriors Shaped Globalization (New Haven: Yale University Press, 2007), que tem edição brasileira. Depois falarei sobre a vetusta geopolítica, em torno da qual já andei lendo artigos que desenterram velhas teses de mais de um século atrás, de Mackinder, de Haushofer e de outros teóricos da sucessão de hegemonias no mundo. Não ofereço nenhuma garantia sobre a validade de minhas teses, mas como todos têm o direito de especular sobre esse mundo pós-pandêmico que não sabemos de verdade como será, deixo aqui minha contribuição aos debates.

Sou professor de Economia Política num curso de pós-graduação em Direito, o do Centro Universitário de Brasília (Uniceub), e prefiro me ater às grandes lições da Economia Política clássica, e seus prolongamentos contemporâneos, a ter de instruir os alunos, que se concentram todos em teses ou dissertações em Direito, nos meandros dos manuais básicos do tipo Economics 101, ou seja, uma parte de microeconomia, outra de macroeconomia, às quais se acrescentam rudimentos de economia brasileira e suas políticas públicas econômicas. Pois bem, ainda assim, creio que vale aproveitar essa divisão básica dos manuais de economia, que existe apenas depois que o keynesianismo se firmou como uma das mais importantes escolas do pensamento e da política econômicas, depois da velha Economia Política clássica, aposentada pela revolução marginalista, que deu origem à Economics, ou neoclássica, para ser finalmente suplantada pelo keynesianismo, mas só depois que surgiu o famoso manual de Paul Samuelson, no pós-guerra (pois que a Teoria Geral de Keynes, de 1936, não é nem uma teoria, nem geral).

Começo por distinguir, portanto, entre uma globalização micro e uma globalização macro, cada um atuando nas mesmas esferas de que tratam as duas grandes partes dos manuais de economia: produção, preços, equilíbrio de mercados, oferta e demanda, por um lado, e componentes agregados de outro, PIB, investimento, poupança, intervenção estatal e contas nacionais e balanço de pagamentos. Como já disse alguém, a macroeconomia é uma abstração, ou seja, um ajuntamento do que se passa nos fundamentos da vida econômica, que a atividade produtiva nos seus três fatores básicos: terra, capital, trabalho. É da riqueza criada por empresários e trabalhos, em cada uma das unidades produtivas – indivíduos, famílias e empresas (grandes e pequenas), ou seja, agentes econômicos primários – que o Estado retira uma parte dessa riqueza para praticar as suas políticas econômicas, macro e setoriais, no plano interno ou externo.

O que é importante reter, para nossos propósitos, nesse binômio conceitual, é que a globalização que conta, aquela que realmente faz a diferença, tanto quanto na verdadeira criação de riqueza, é a globalização micro, aquela que é realizada pelos agentes econômicos primários, indivíduos ou empresas, que produzem bens e serviços para lança-los em seguida nos mercados, sendo indiferente que estes sejam nacionais ou internacionais. Do ponto de vista do empresário microeconômico é o ajuste de sua oferta, que necessariamente tem de ser competitiva, à demanda dos mercados, nacionais ou não. A outra globalização, a macro, que se desenvolve no nível dos Estados, dos blocos, das organizações intergovernamentais e de outras agências influenciadas ou dominadas pelos governos, ela constitui, na verdade, uma antiglobalização, na medida em que essas entidades pretendem regular, e portanto cercear os fluxos e intercâmbios que deveriam se processar livremente entre os mercados, entre produtores e consumidores, entre ofertantes e demandantes de bens e serviços.

Cabe registrar que, antes mesmo do aparecimento e disseminação da pandemia do Covid-19, a globalização já vinha enfrentando dissabores e recuos, a ponto de vários autores falarem claramente de um processo de “desglobalização”, sob o impacto de novas formas de protecionismo e de regulações nacionais ou “supranacionais”, a pedido da clientela política afetada pelo deslocamento de empregos e de atividades produtivas em diversos setores. Esse movimento de retração, de introversão, de fechamento das fronteiras nacionais, e até mesmo de recusa e de rejeição aos contatos globais, seja no comércio, no intercâmbio de serviços, nos fluxos de pessoas, já estava, portanto, em curso, antes que a pandemia se estabelecesse em nível global. O que a pandemia fez foi, não só aprofundar tais tendências, mas agregar o novo cenário da cessação de intercâmbios, quase ao nível de uma guerra aberta: interrupção de voos, limitação da mobilidade, expulsão ou interdição de imigrantes ou residentes estrangeiros, isolamento e confinamento de quase todos os agentes econômicos, com exceção dos fluxos de capitais. Alimentos e equipamentos médicos passaram a ser não apenas objeto de comércio normal, mas de acirrada disputa, praticamente de pirataria em certos casos. Ou seja, o mundo se tornou mais próximo da velha atomização econômica típica da Idade Média do que da nova mundialização do início deste milênio. A globalização micro, aquela produzida por indivíduos e empresas, continuará a avançar, entre ventos e marés, inclusive porque conseguem superar algumas barreiras físicas, mas ele enfrenta agora um volume bem maior de restrições legais, ainda que temporárias. No que tange a globalização macro, a tendência é que ela seja ainda mais reforçada por novas formas de regulação, cujo objetivo, além e acima das medidas de oportunidade, em função da pandemia, seria reduzir a expansão exacerbada das cadeias de valor, renacionalizando setores considerados estratégicos para a autossuficiência nacional: trata-se, em nova roupagem, de uma reversão às políticas de beggar-thy-neighbor, isto é, empurre a crise para seus vizinhos, tal como registrado na Grande Depressão dos anos 1930. Eventualmente, as consequências econômicas da atual pandemia poderão se revelar ainda mais destruidoras do que aquele precedente histórico, que até aqui passava por “mãe de todas as crises”. Em retrospecto, a pandemia do Covid-19 pode se revelar menos mortífera do que a gripe espanhola de um século atrás, embora seus efeitos econômicos possam ser muito mais devastadores.

Da Guerra Fria geopolítica a Guerra Fria econômica: quem perde, quem ganha?

Esse impacto econômico impressionante, como observado até aqui, se deve, em grande medida, à integração econômica mundial, que aparentemente teria a virtude de obstar às políticas acima descritas de retraimento agressivo contra os parceiros da economia global, uma ilusão que já estava presente no famoso libelo do jornalista Norman Angel, antes da Grande Guerra, para quem um conflito global seria impossível, dada a imbricação econômica e financeira entre as grandes potências: não, não foi impossível, e por duas vezes, embora intermediado por uma enorme depressão – não estou me referindo à “mera” quebra da Bolsa de Nova York, em 1929, mas às quebras bancárias de 1931 e tudo o que se seguiu –, que pode até se converter, retrospectivamente, em “depressão de segunda classe” futuramente.

Pois bem, depois da Segunda Guerra Mundial, a despeito dos esforços de diplomatas das “nações aliadas” (para efeitos da guerra contra o nazifascismo, depois que a União Soviética, aliada da Alemanha hitlerista entre 1939-41, foi atacada pela Wehrmacht), também foi impossível estabelecer uma paz durável entre os antigos parceiros. Isto ficou evidente desde a conferência de Paris de 1946, antecipando ao diagnóstico formulado pouco depois por Raymond Aron, sempre arguto e presciente: “guerra impossível, paz improvável”. Esse diagnóstico se referia, não mais à oposição entre democracias liberais e as potências fascistas, militaristas e expansionistas, mas à cisão fundamental do pós-guerra, simbolizada no famoso discurso de Winston Churchill em Fulton: a “cortina de ferro”, separando as democracias do Ocidente daqueles países que, contrariamente aos acordos de Ialta e Potsdam, passaram a ser brutalmente controlados pelo novo Império stalinista. O nascimento da Guerra Fria está magistralmente bem contado no livro de Daniel Yergin, Shattered Peace (1977), ao passo que a vida sob o tacão comunista na Europa central e oriental foi mais recentemente relatada por Anne Applebaum, em Iron Curtain (2012), ela já autora de um magistral Gulag (2004).

O fato é que a Guerra Fria geopolítica vigorou como oposição radical não apenas entre duas superpotências com pretensões à hegemonia, mas também entre duas concepções frontalmente opostas de organização econômica, política e social, situação que perdurou por aproximadamente quatro décadas, até conhecer um fim patético no famoso “fim da História” de Fukuyama. Registre-se, por importante, que esse artigo basicamente conceitual, do exconsultor do Departamento de Estado em assuntos de União Soviética, tinha um ponto de interrogação ao final do título, tinha sido concebido e escrito bem antes da queda do Muro de Berlim, e não previa o fim da URSS, e sequer do socialismo, apenas dizia que, depois da perestroika e da glasnost, não existia mais alternativa viável às democracias de mercado. Ele estava correto na teoria, embora enganado na prática, o que não impede que a Guerra Fria foi, sim, um formidável embate entre dois gigantes nucleares animados por duas filosofias antagônicas, sendo que a ideologia comunista pretendia, efetivamente, “enterrar o capitalismo”, como antecipado por todos os líderes soviéticos desde Lênin.

A Guerra Fria acabou, pelo menos oficialmente, no momento do famoso discurso de George Bush (pai), em 1992, quando ele anunciou uma “nova ordem internacional”, já com a União Soviética devidamente implodida por sua própria irrelevância econômica e devido ao regime de opressão política, não por qualquer vitória do sistema capitalista ou da hegemonia militar americana. O fim do socialismo, e o da própria URSS, não resultou, portanto, de um grande Bang, mas de um modesto suspiro derradeiro, depois de décadas de declínio estrutural e de contestações cidadãs, tanto pela falta de liberdade, quanto de meias de nylon. Todo mundo respirou aliviado, nos anos 1990, e se preparou para viver à sombra do unilateralismo americano, tão arrogante quanto o antigo poder soviético, mas supostamente capitalista e alegadamente amigo das liberdades democráticas.

No final dessa década, observando de perto a formidável, e aparentemente irresistível, ascensão econômica da China, eu formulei a hipótese de que a Guerra Fria geopolítica, de caráter nuclear, seria substituída, doravante, por uma Guerra Fria Econômica, feita de golpes mais ou menos maliciosos no sistema multilateral de comércio, na contrafação de produtos ocidentais de tecnologia proprietária, na espionagem industrial, nas práticas desleais nos mercados de commodities e de manufaturados, enfim, todas aquelas práticas que já tinham sido fartamente utilizadas pelos Estados Unidos e por outras potências emergentes (Japão, Alemanha), nas conjunturas de consolidação de seus respectivos poderios industriais. Ela não teria enfrentamentos brutais, apenas golpes baixos: dumping, roubo de know-how, uso do poder do Estado para forçar licenciamentos tecnológicos e outras táticas de catching-up.

Mas, como o rabo comercial não pode abanar o cachorro do desenvolvimento, a China não poderia alcançar seus objetivos estratégicos sem dispor de uma mão de obra educada, sem ter uma boa infraestrutura material e de comunicações, sem uma legislação favorável aos negócios, em especial os privados e em associação com o investimento direto estrangeiro, e muitas outras medidas que figuram no famoso relatório do Banco Mundial sobre Doing Business. Ou seja, a China não poderia galgar o íngreme caminho que a levaria ao status de potência econômica sem ser ela mesma capitalista, ou seja, oferecer um ambiente de liberdades econômicas (o que não tem quase nada a ver com a sua autocracia política). Pode até parecer estranho, mas a China é mais capitalista do que o Brasil, ou pelo menos tem mais liberdade econômica do que o capitalismo brasileiro, segundo o mesmo Doing Business.

O confronto – equivocado – com os Estados Unidos só começou, de verdade, quando os paranoicos do Pentágono começaram a ficar preocupados com o formidável investimento chinês em seus próprios meios de defesa, e até em armas ofensivas, garantindo uma projeção exterior, sobretudo naval, compatível com suas ambições comerciais em todos os continentes e mares abertos à concorrência de seus agressivos capitalistas. Os primeiros embates se deram a propósito, justamente, a propósito dessas práticas comerciais e da manipulação cambial, alegadamente praticada pelas autoridades chinesas. O humor dos protecionistas americanos se tornou ainda mais azedo quando os déficits bilaterais – que não têm nenhuma importância econômica, em si – começaram a sair da casa de 100 bilhões de dólares por ano para alcançar 300 ou 400 bilhões (negligenciado o fato de que grande parte das reservas chinesas está investida em Treasury bonds, ou seja, elas financiam a formidável fome de consumo das famílias americanas).

Independentemente dessas minudências da complexa relação econômica e política entre as duas grandes potências da contemporaneidade, eu já tinha concluído, em 2010, que a China sairia vitoriosa dessa Guerra Fria Econômica, por possuir a estratégia correta, assim como os Estados Unidos tinham saído vitoriosos da Guerra Fria Geopolítica, sem disparar um único tiro, sem sequer provocar o formidável adversário dotado de potentes ogivas nucleares. Ainda assim, confesso que fiquei muito entusiasmado com a proposta do historiador Neill Ferguson de formação de uma “Chimerica”, ou seja, uma espécie de osmose entre as duas maiores economias do mundo, em função da absoluta complementaridade entre seus dois sistemas produtivos e seus respectivos sistemas financeiros. Teria tudo para dar certo, e o mundo embarcaria numa trajetória de cooperação capaz de impulsionar enormemente o desenvolvimento do resto do mundo, com base numa atuação complementar em processos de transferência de tecnologia – via investimentos diretos e comércio desimpedido – em direção dos países mais pobres (à condição que os americanos continuassem tolerando, durante certo tempo, pelo menos, a contrafação chinesa, a pirataria tecnológica, a espionagem industrial).

Infelizmente, essa perspectiva utópica de mútua colaboração e certa reciprocidade no trabalho de cooperação internacional não deu certo muito tempo antes que as relações entre as duas megapotências econômicas se visse deteriorada por acusações de parte e outra por diferentes razões, econômicas certamente, mas também, e basicamente, pela ascensão militar da China e suas ações agressivas nos mares Amarelo e do Sul da China. Essa deterioração do relacionamento bilateral atingiu seu clímax, obviamente, com a eleição do pior presidente que os eleitores americanos possam ter escolhido desde a inauguração da República, no final do século XVIII. A ignorância econômica monumental do presidente Trump, suas convicções equivocadas, anacrônicas e até prejudiciais aos interesses das empresas e dos próprios consumidores americanos, destruíram a perspectiva de uma integração ainda maior do que já existe entre as economias dos dois países. Em seu lugar, instalou-se uma insana guerra comercial – também contra outros países, como revelado na recusa do TPP, nas salvaguardas contra produtos importados, na revisão do NAFTA, e outras medidas protecionistas –, que se destinava a eliminar, ou reduzir, o gigantesco déficit comercial bilateral, algo impossível. Na verdade, essa guerra comercial foi também motivada pela competição tecnológica, ao se darem conta, industriais americanos e paranoicos do Pentágono, que estavam ficando para trás em determinados setores das novas tecnologias. Não é o caso de reproduzir aqui todas as facetas desse formidável embate entre os dois elefantes da economia mundial, apenas repetir que a China está, sim, em condições de sair vitoriosa dessa Guerra Fria Econômica, na medida em que tem cometido menos erros do que os estrategistas americanos. A continuar a presidência Trump, os Estados Unidos sairão diminuídos absoluta e relativamente da presente fase de globalização / desglobalização, não apenas no confronto com a China, mas no plano das cadeias globais de valor, da produtividade e até da inovação tecnológica (dados os atuais impulsos protecionistas da equipe no poder, a começar pelo presidente troglodita econômico).

Como será, então, o mundo pós-pandemia: muito diferente do atual?

Para ser sincero, não tenho a menor ideia de como será o mundo pós-pandemia, ou talvez sim, mas só um pouco. Não será muito diferente do mundo atual, talvez um pouco pior, como outros precedentes – epidêmicos, bélicos, políticos – já nos confirmaram: a Grande Guerra, que nos legou os fascismos; as crises de 1929-31, que transformaram esses regimes em potências militares expansionistas e levou a uma nova guerra devastadora; a própria Guerra Fria, responsável por vários golpes militares e ditaduras de direita ao redor do mundo, especialmente na América Latina. Tampouco será muito diferente no plano da infraestrutura material, que continua de pé, e será reaproveitada quando a circulação voltar aos tempos (quase) normais, e talvez um pouco melhor no plano da conectividade tecnológica, pois estamos abandonando os seminários presenciais para substituí-los por esta forma prática de oferecer palestras, aulas, até grandes reuniões do mais alto nível decisório.

A segunda ou terceira geração esquece facilmente as grandes tragédias de seus avós ou bisavós, como já havíamos esquecido os 50 milhões de mortos (ou mais) da injustamente chamada “gripe espanhola”. Talvez esqueçamos esta pandemia, se uma vacina eficaz é encontrada em tempo hábil, e se a destruição econômica não ultrapasse os níveis da Grande Depressão dos anos 1930, que será, portanto, convertida em mais uma das crises “normais” da sucessão de crashes de que falava Charles Kindleberger. Talvez seja mais um cisne negro, a ser alinhado nos eventos inesperados dos livros de Nassim Taleb. De fato, não sabemos como será o mundo pós-pandêmico porque a atual pandemia ainda está em desenvolvimento e porque, por um lado, as configurações atuais e futuras dos “contextos políticos” (que são sempre, por definição, nacionais) e, por outro lado, as “tendências internacionais”, ainda não podem ser definidas, em suas grandes linhas.

Elas não podem ser definidas por razões muito simples. Contextos políticos são basicamente dependentes de fatores contingentes: novos populismos e nacionalismos, crises políticas e econômicas mesmo nos países mais avançados e, supostamente, mais estáveis – como se constatou pelo exemplo do Brexit, uma estupidez monumental do governo britânico Conservador –, desastres naturais que precipitam mudanças políticas e econômicas e um sem-número adicional de elementos imprevisíveis nas conjunturas sempre instáveis dos governos e das sociedades. Tendências internacionais, por sua vez, são mais previsíveis, na sua longa duração, como ensinava Fernand Braudel, e como sempre nos lembra o embaixador Rubens Ricupero, e costumam caracterizar-se mais pela continuidade das “forças profundas” da economia e da preeminência hegemônica dos grandes impérios. Mas, como lembrava o mesmo Renouvin, “inventor” do conceito de “forças profundas”, todo império perecerá, e com ele se alteram as condições de equilíbrio geopolítico, militar e econômico das relações internacionais numa dada conjuntura histórica de transformação.

Esse tipo de mudança das placas tectônicas da economia e da política mundial pode, no entanto, se estender por séculos, por vezes por mais de um milênio, a crer, por exemplo, na análise histórica de Edward Gibbon, em sua monumental História do Declínio e da Queda do Império Romano, que se estende por mais de mil anos, entre seu núcleo europeu e o que restou dele no Oriente Médio. O império chinês teve muitas outras descontinuidades, nas suas duas dúzias de dinastias sucessivas, relativamente homogêneas culturalmente, mas bastante díspares em suas configurações territoriais e mesmo políticas; de resto, pelo menos duas importantes dinastias não foram especificamente Han, e sim mongol e manchu, justamente a última. Outros impérios conheceram destinos semelhantes, e existe uma abundante literatura a respeito. Nessas condições, podemos, efetivamente, estar assistindo ao declínio do império americano – sucessor preferencial do império britânico, segundo os dois grandes livros de Niall Ferguson, Empire e Colossus – e a uma nova ascensão do antigo “despotismo oriental”, tal como estudado por Max Weber e Karl Wittfogel.

A China, justamente, é um grande repositório de epidemias e pandemias, talvez desde a Peste Negra do século XIV, e alguns, os habituais adeptos das teorias conspiratórias, até a acusam de usar da “arma bacteriológica” para assumir o “controle do mundo”. Paranoicos e lunáticos abundam em todas as épocas, como aliás comprovado pelos nossos atuais dirigentes adeptos do fantasma do “globalismo”, a mais recente invenção dos paranoicos de plantão. O debate sobre as origens e etapas da disseminação do Covid-19 deverá ter continuidade muito depois que seus piores efeitos terão se dissipado na imunização natural das populações hoje atingidas, assim como os conspiratórios e paranoicos continuarão a encontrar novos motivos para capturar seu cortejo de crentes ingênuos, os true believers, que se reproduzem em todas as épocas e circunstâncias.

Na modéstia do nosso conhecimento a respeito, não só sobre a pandemia, em si, mas também sobre a futurologia do mundo atual, a partir do final desta que nos aflige agora, nós podemos no máximo determinar duas certezas: nosso destino está inextricavelmente ligado aos progressos da ciência, inclusive porque a evolução darwiniana já deixou de ter algum impacto decisivo sobre nosso futuro enquanto espécie humana, passando a ser substituída pela evolução cultural, ou por aquela que será determinada pela biotecnologia; por outro lado, a melhor garantia de se conhecer uma evolução e um itinerário mais ou menos tranquilo no plano das estruturas políticas e econômicas também está inextricavelmente ligada à boa qualidade das lideranças políticas que uma determinada sociedade possa ter. Estadistas esclarecidos ainda constituem a melhor defesa que uma nação possa ter contra aventureiros políticos desequilibrados – e todos os populistas o são –, contra derrocadas econômicas, contra grandes divisões da sociedade em torno de objetivos opostos. Estadistas são capazes de salvar toda uma nação em momentos difíceis de seu itinerário, seja por convulsões internas, nunca desprezíveis, seja no caso de desafios externos, sempre possíveis. Confirmando que não tenho condições de antecipar qualquer futuro para o mundo pós-pandêmico, posso, no máximo, arriscar minhas modestas previsões para o Brasil atual, no curto e no médio prazo: infelizmente, dada a má qualidade de nossas elites dirigentes, assim como devido à péssima qualidade daqueles que ocupam o poder político no presente momento, esse futuro é o mais incerto possível, oscilando entre o precário e o desastroso, se não se encontrar um término institucional ao itinerário presente de contradições, equívocos e falcatruas condensadas no pior governo conhecido em toda a história do Brasil, desde que aportou na Bahia, D. Tomé de Souza, nosso primeiro governador-geral, no distante ano de 1549. Não consigo detectar governo tão medíocre, tão miserável, tão prejudicial à nação, ao Estado, ao país, quanto o atual desgoverno que teve início em 1º de janeiro de 2019: não sabemos ainda quando terminará…


**Diplomata, Professor

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