Bibliot3ca FERNANDO PESSOA

E-Mail: revista.bibliot3ca@gmail.com – Bibliotecário- J. Filardo

Obsessão

J. Filardo

 

Deve ter sido por volta de 1973. Assisti uma palestra, se não me falha a memória, do Professor Viziolli, sobre James Joyce.J

Nascido em 1882  na Irlanda, Joyce era poeta, contista, professor, novelista. Ele revolucionou a literatura com sua grande obra Ulysses que rompia completamente com os paradigmas de criação literária da virada do século XX.

Dublin no final do século XIX era uma cidade provinciana, dominada pela Igreja, cheia de fofocas e com vida cultural bastante limitada.  Joyce, depois de terminar a Universidade foi para Paris com a intenção de estudar medicina, mas isso não deu certo por diversos motivos, principalmente financeiros. De volta a Dublin tentou sobreviver revisando livros, lecionando e cantando – era um bom tenor e até ganhou uma medalha de bronze no festival de música Feis Ceoil em 1904.

Mas a cidade lhe parecia sufocante em seu provincianismo e falta de perspectivas e vida cultural e ele, assim, no dia 16 de junho de 1904,  conheceu Nora Barnacle uma garota simples que trabalhava como camareira de hotel, por quem se apaixonou e decidiu deixar Dublin e se exilar no continente, jurando nunca mais retornar.

Com Nora, Joyce mudou-se para Zurich onde deu aulas na escola Berlitz. Dali foi dar aulas em Pola, perto de Trieste, onde ficou até o ano seguinte quando todos os estrangeiros foram expulsos dali. Passou a morar em Trieste onde continuou a lecionar.

No final de 1906 mudou-se para Roma onde foi trabalhar em um banco, mas não gostou de Roma e voltou para Trieste. Joyce tinha problemas nos olhos, tendo sofrido inúmeras cirurgias.

Ele começou a escrever Ulysses em Trieste e terminou a obra em Paris, onde uma bolsa concedida por Harriet Shaw Weaver lhe permitiu dedicar-se integralmente ao livro.

O livro foi publicado em fascículos graças a Ezra Pound, mas provocou escândalo ao ser considerado pornográfico e obsceno, tendo sido muitas vezes apreendido pela alfândega americana.

Finalmente foi publicado em Paris  pela Shakespeare and Company de Sylvia Beach, uma livreira de grande visão. E só em 1934, uma juiz americano liberou o livro nos Estados Unidos.

Bem, eu não sei até que ponto eu me identifiquei com Joyce, também vivendo  em uma cidade que era dominada pela fofoca, pela igreja, sem vida cultural, mas o fato é que a obra de Joyce se tornou uma obsessão e passei o resto da vida lendo seus livros.

O livro fora traduzido por Antonio Houaiss em 1975, mas a tradução do mestre, em que pese sua capacidade como filólogo, ficou muito pesada e contribuiu para o mito da dificuldade de leitura da obra.

Como eu estava cursando literatura inglesa, nada mais natural que eu procurasse ler o livro em seu idioma original e, assim, adquiri uma cópia em paperback Penguin que comecei a devorar.

À medida que lia, eu me perguntava por que se dizia que o livro era difícil. Creio que isso se deve ao fato de que depois de Joyce os escritores passaram a usar os recursos introduzidos por ele, e o leitor contemporâneo não sente tanto a diferença em relação ao estilo anterior, o que facilita a leitura. Mas a fama ficou e muita gente nem considera a possibilidade de aproveitar esse livro engraçado e importante.

Assim foi com o episódio Telêmaco, a primeira parte do livro em que estrela Stephen Dedalus. Fácil, sem nenhuma complicação.

Pouco a pouco Joyce introduz novidades no texto que começam a exigir mais atenção e mais perspicácia.  São novidades bem originais tanto em forma quanto conteúdo.

Nessa altura, decidi primeiro conhecer Stephen Dedalus, e interrompi a leitura do Ulysses para ler o “Portrait of the Artist as a Young Man” (Retrato do Artista quando Jovem) onde Joyce começava a desenvolver seu estilo.  O livro também é ótimo e leve. Daí voltei ao Ulysses para prosseguir satisfazendo minha obsessão.

Lendo no original e não sendo um nativo, muita coisa se perde ou é entendida erroneamente na primeira leitura, mas é possível continuar um pouco mais lentamente.

Ao terminar o livro, senti a necessidade de relê-lo para suplementar os gaps com elementos compreendidos no decorrer da leitura. O livro é cheio de ecos, alguns deles somente entendidos à luz de capítulos posteriores à ocorrência em um determinado ponto do livro. Aos poucos esses ecos começam a fazer sentido, ou a “funcionar” remetendo-nos à reminiscência ou evento.

Também existem pontos de sincronização da linha do tempo e narrativas de pontos de vista simultâneos das personagens da narrativa, criando um efeito stereo que se visualizado seria como a técnica cinematográfica de tela dividida. Em um livro isso é mais difícil, mas Joyce sendo um cinéfilo, representou o recurso na literatura.  E acho que com bastante sucesso, quando o leitor tem imaginação e boa memória.

A narrativa de um dia inteiro na vida de Leopoldo Bloom, judeu em uma cidade cheia de preconceitos, maçom em uma sociedade dominada pela igreja católica, corno em uma sociedade machista e Stephen Dedalus um jovem inexperiente que enfrenta seus demônios e busca seu caminho. Essa narrativa cria uma visão tridimensional da cidade de Dublin.

Após a segunda leitura, já me sentia familiarizado com Leopold. Já o compreendia.  Daí encetei a terceira leitura. A essa altura já me sentia em Dublin. Em 2013, quando visitei Dublin no Bloomsday a cidade já me era familiar e, ainda mais que nesse dia as pessoas vestem costumes do início do século e você topa com Leopolds e Mollys and Cunninhans e Lenehans enquanto caminha pela cidade.

Tendo realizado a terceira leitura, obtive o audiobook e a versão online em HTML. Então, eu escutei o livro ao mesmo tempo em que o lia pela quarta vez. Foi outra experiência fantástica. Os sotaques das personagens acrescenta uma dimensão inestimável ao livro.

Daí senti-me preparado para ler a tradução. A versão de Houaiss me provocou sono invencível. Interrompi. Comprei a tradução da Bernardina. Ótima. Preservou o humor refinado contido no livro. É leve e divertida. Recomendo.

Depois de mais de trinta anos lendo Ulysses, decidi enfrentar o terceiro livro de Joyce, Finnegans Wake, o livro críptico que na minha opinião só é realmente aproveitado integralmente por irlandeses. É um livro oral.

Mesmo assim, decidi tentar. Bem, já são dez anos e cheguei à página 10. Considerando que o livro tem mais de 600 páginas, só vou terminá-lo na próxima encarnação. É um livro baseado em uma canção folclórica irlandesa sobre um pedreiro (freimaurer mason) chamado Tim Finnegan que ao subir em uma escada, dela caiu e bateu com a cabeça no chão e foi dado como morto. Daí começou seu velório (wake). Na Irlanda, os velórios são verdadeiras festas onde servem bebidas e comidas aos conhecidos que vierem velar o morto.

Pois bem, os amigos começaram a comer e a beber até que a temperatura subiu e começou um briga. E os convidados começar a atirar coisas uns nos outros e alguém atirou uma garrafa de whiskey que se quebrou na cabeceira da cama onde jazia o defunto.  Quando uma gota do whiskey caiu na boca do finado, este se levantou e reclamou: “Quem é que está desperdiçando esse bom whiskey?”

Em cima desse tema, Joyce reescreve a história do mundo usando símbolos em cima de trocadilhos, tornando o texto um cipoal difícil de ser atravessado, mesmo apoiando-se em Guias de leitura do livro, entre ele o excelente “Skeleton Key to Finnegans Wake” de Joseph Campbell.

Mas qual é a importância disso tudo em um blogue majoritariamente maçônico?

Não há registro de que James Joyce tenha ingressado na Maçonaria, apesar de ter convivido durante muitos anos com Italo Svevo em Trieste, este sim, um maçom importante que pode tê-lo convidado e conduzido à loja.

O que é interessante é que a trilogia de Joyce tem, para nós maçons, um aspecto intrigante. Vejamos:

Livro 1 – A biografia do jovem Stephen Dedalus que aprende a ser adulto.

Livro 2 –  O livro narra um dia inteiro na vida da personagem principal que é um judeu past-master maçom de meia idade. Em diversos pontos do livro, existem indícios de sua condição de maçom, tanto em seu discurso interno quanto em expressões de terceiros sobre ele. E em um dos capítulos (Circe) várias referências maçônicas são inseridas no discurso, incluindo sinais e palavras.  E o mestre maçom, ao final do mesmo capítulo, ajuda e protege Stephen, apelando até para um contato maçônico e o leva para sua casa, o alimenta, com ele conversa e se despede para um novo dia – o Mestre protegendo o Aprendiz.

Livro 3 – História de um pedreiro (freimaurer mason) que subindo uma escada (de Jacó?) dela cai, morre e ressuscita. A única referência maçônica clara que encontrei até onde li (página 10) é a definição “freimaurer mason”, sendo “freimaurer” a tradução alemã da palavra maçom, e “mason” a tradução de pedreiro em inglês.

Digam o que quiserem, mas se isso não é a obra de um maçom, o Papa é protestante.