Bibliot3ca FERNANDO PESSOA

E-Mail: revista.bibliot3ca@gmail.com – Bibliotecário- J. Filardo

ANAIS do COLÉGIO INVISÍVEL – V

JOSCELYN GODWIN

 Tradução: S.K.Jerez

A Teologia Negativa

A Idade Média não conheceu nenhuma escola iniciática pública como aquelas que haviam florescido na Antiguidade. As irmandades pitagóricas e órficas, a Academia Platônica, os cultos mistéricos Herméticos e o Mitraico – todos haviam desaparecido de Europa junto com o Império Romano. Sua visão do homem como um microcosmos, refletindo em miniatura todo o universo e sua origem, e sua proposta de um caminho por meio do qual ele podia fazer-se divino, estavam quase perdidas. A nova religião oficial da Cristandade apenas podia tolerar semelhantes ideias, ainda entre sua própria elite intelectual. O poder da Igreja repousava na divindade de um só homem, Jesus Cristo, e em um caminho de salvação para o resto: o da obediência.

Apesar disso, às vezes ainda podemos vislumbrar, como uma corrente de ouro meio enterrada, o legado de uma tradição teosófica cristã muito diferente da corrente principal. Sua energia parece ter-se derivado da experiência mística, considerada e interpretada à luz da filosofia neoplatônica. O que caracteriza essa tradição é que não afirma nada sobre Deus, e, inclusive, nega a possibilidade da afirmação. É a antítese do tipo de asserção que começa com: “Assim diz o Senhor”. Resultou muito naturalmente do neoplatonismo, quando um escritor grego não identificado, conhecido como Dionísio, o Areopagita, reinterpretou os voos mais altos do misticismo pagão à luz da nova religião.

Dionísio estava bem consciente dos perigos do monoteísmo exotérico. Deplorava aqueles “que descreviam a Causa Primeira transcendental de tudo pelas características derivadas da mais baixa ordem de seres.” Seus melhores esforços para descrevê-la adequadamente tomam a forma de paradoxos, ou de enunciados do que não é (“a teologia negativa”). Fala disso como aquilo que eclipsa todo brilhantismo com a intensidade de sua Escuridão; como aquilo que inclui todos os atributos do universo, pois é a Causa Universal de tudo, mas não possui nenhum, já que transcende a todos.

As palavras dos teólogos tendem a ser secas, mas aqui brotam de uma experiência direta que é, paradoxalmente, a não-experiência, porque não há um si mesmo separado que o possa experimentar. Dionísio diz em outro paradoxo, expressando-se igual a Plotino: “Através da inatividade de todos seus poderes de raciocínio, o místico se une, mediante sua mais alta faculdade, àquilo que é totalmente incognoscível; assim, conhecendo nada, ele conhece Aquilo que está além de seu conhecimento.”

Estas coisas, diz Dionísio, não devem ser reveladas aos não iniciados. De fato foram divulgadas e serviram de inspiração para toda a tradição mística cristã.

Além de sua Teologia Mística, de onde foram tiradas estas citações, Dionísio escreveu um tratado Sobre as Hierarquias Celestes que é o fundamento de toda a ciência angelical cristã.

Sua conquista foi fazer com que os princípios da teologia neoplatônica fossem aceitáveis para o monoteísmo. Reclassificou as hierarquias dos deuses e daimones, como as nove ordens Angelicais, e as fez concordar com a tradição judaica e com a Bíblia. Assim, a hierarquia dos poderes secundários que governam o cosmos foi salva de extinguir-se no imaginário da Idade Média.

O duplo sucesso de Dionísio o faz pai do esoterismo cristão. Primeiro, ele ensina que o Absoluto é indescritível e totalmente transcendente, mas de alguma maneira acessível e presente no homem. Essa é a justificativa máxima para todo esforço espiritual. Logo completa o resto da hierarquia cósmica, povoando os céus e as esferas com seres invisíveis. Estes se tornam a base da magia cerimonial, da filosofia astrológica, de uma reavivada cosmologia Hermética e, portanto, das ciências ocultas na Europa.

Dionísio era desconhecido no mundo ocidental até o século nove quando o monge irlandês, João Escoto Erígena traduziu suas obras para o latim. Erígena desenvolveu logo os princípios do teósofo anônimo em uma concepção grandiosa do universo e do destino humano. Platônico por natureza, não viu nenhuma diferença entre a verdadeira religião e a verdadeira filosofia, já que a totalidade concebível do universo – objeto da especulação filosófica – é inseparável de Deus. O que se poderia chamar “teologia positiva” de Erígena concerne à Natureza, vista como Deus em processo de revelação. Graças a isso, os humanos também são capazes de se converter em Deus ou Filhos de Deus. Mais ainda: ao final, todos eles serão redimidos, em conjunto com todos os animais e mesmo os diabos. Esta doutrina bondosa de Erígena estava em total contraste com o eterno Inferno, preferido, ou temido, por crentes ortodoxos.

O outro aspecto de Deus é o negativo ou indescritível, mas, para Erígena, ele também é, paradoxalmente, acessível, pelo simples fato de que todos somos divinos em nossa natureza íntima. Em sua Homilia ao prólogo do Evangelho de São João, ele diz: “João, portanto, não era um ser humano; era mais que um ser humano quando voou por cima de si mesmo e de todas as coisas que são. Transportado pelo poder inefável da Sabedoria e da mais pura bondade, entrou naquilo que está além de todas as coisas… ele não tivesse sido capaz de ascender a Deus se primeiro não houvesse se convertido em Deus” (capítulo 5).

O terceiro grande expositor da teologia negativa é Meister Eckhart, outro voraz leitor de Dionísio. Eckhart não era um ermitão, mas sim um capaz administrador monástico na Boêmia e na Alemanha. Longe de reservar seus ensinamentos a poucos esoteristas, as proclamou ao mundo. Não pregava seus sermões em latim culto, mas nos poderosos e terrestres monossílabos de sua nativa Terra do Reno.

O tema principal de Eckhart era a potencialidade do homem para conhecer, e de alguma maneira ser Deus. Disse a seus ouvintes que quando um homem permanece em Deus, “não há diferença entre ele e Deus; são um só.” Eis aqui uma de suas explicações de por que isto é assim: “Quando Deus criou o homem, o guardou contra todo mal; a corrente dourada do destino, vindo da Trindade para o poderes mais altos da alma e também continuando através de seus poderes mais baixos, os submete aos mais altos para que nenhuma desordem possa atacar nem o corpo nem a alma, a menos que transgrida esta lei.” (Meister Eckhart, ed. Inglesa 1924, I, 291).

Aqui, Meister Eckhart sugere uma análise tripla do ser humano, constituído por espírito, alma e corpo, com o Espírito (Geist, em alemão – como o Espírito Santo em velhos textos ingleses) à cabeça da hierarquia. Tal disposição estava presente no platonismo, mas não era parte da doutrina regular cristã, que concede ao homem só uma alma e um corpo. O termo spiritus, em latim, é utilizado para denominar o Espírito Santo, mas também é aplicável a uma ordem muito mais inferior de seres e substâncias invisíveis (novamente, comparar os usos da palavra “espírito”). Quando lemos teorias esotéricas sobre a constituição do homem, é importante saber como é que o autor está usando a palavra “espírito”: como algo mais divino que a alma, ou simplesmente como o vínculo sutil entre alma e corpo.

O conceito de Eckhart do homem composto de maneira tripla é também o fundamento da alquimia espiritual, no qual o enxofre e o mercúrio simbolizam, respectivamente, o espírito, no sentido mais alto, e a alma. Sua conjunção ou “casamento químico”, então, representa a união da alma inteira com seu mais alto princípio espiritual, ou seja, com a divindade no interior de si, que é indistinguível do Deus que só pode ser descrito por negações.

Destes três teólogos, Dionísio estava a salvo da censura oficial porque se acreditava que era companheiro de São Paulo, assim como santo padroeiro da França. Os escritos de Erígena foram condenados por vários concílios da igreja, principalmente devido ao panteísmo (fazer um Deus do universo). Meister Eckhart foi excomungado em 1329, pouco depois de sua morte, quando já não podia responder às acusações feitas contra si: elas incluíam a divulgação dos segredos da igreja ao público. E, na realidade, ele o havia feito, sabiamente ou não, compartilhando as certezas internas de alguém “a quem Deus não ocultava nada.”

O cristianismo sempre teve problemas com seus místicos e teósofos, porque estes não podem evitar desviar-se da senda disposta para a grande massa dos fiéis. Com muito raras exceções, das quais Sócrates é a mais famosa, este problema não surgiu nas culturas politeístas. É um sintoma da contradição que jaz no coração das religiões monoteístas. Pode-se argumentar que o monoteísmo, frequentemente louvado como um grande avanço na história das ideias religiosas, foi realmente um passo para atrás em quase todos os aspectos. Isso ilustra como uma verdade, quando é transposta para um nível equivocado, pode gerar um sem-número de falsos conceitos na mente exotérica.

A inteligência sutil dos filósofos hindus, egípcios e gregos facilmente captou a verdade do monoteísmo: que só pode haver uma origem única para todas as coisas. Mas o devoto comum, em qualquer religião, não se conforta com a metafísica, mas sim com a fé, e tira seu sustento espiritual de uma relação pessoal com um deus ou deusa. Uma cultura politeísta como a da antiga Roma ou da Índia moderna reconhece que em tal devoção há muitas coisas respeitáveis e permite que cada um escolha sua divindade. Seus filósofos guardam sua compreensão para si próprios, e não interferem nos costumes religiosos das pessoas dizendo: “Vocês deveriam derrubar os ídolos de Júpiter (Shiva, Ísis, etc.) e adorar o Uno inefável.”

Os monoteístas não. As escrituras do judaísmo, da cristandade e do islamismo, insistem que há um só Deus, e em certo sentido têm razão. Mas talvez o que alguns chamam Deus, já não seja mais o Uno dos filósofos. É uma entidade masculina com atributos de uma ordem muito mais inferior, como o desejo de amor, a resposta a orações, as dádivas que oferece e a intervenção em assuntos humanos. Não é melhor que os deuses do Olimpo, não obstante se suponha que devesse ser a origem de tudo. E, da mesma forma que atua com encarniçada inimizade para com os devotos de outros deuses, seus seguidores também o fazem – como se o Uno se importasse!

A meio caminho de nosso estudo chegamos à linha divisória da história europeia. O panorama até agora foi pagão e daqui em diante é cristão. Daí para a frente se estende um milênio e meio de caça a hereges, cismas, perseguições, inquisições e guerras civis combatidas em nome de Cristo. Não posso culpá-lo ou culpar à escola esotérica que deu origem à mitologia cristã. Só posso culpar à mentalidade “unidirecional”, que resulta na rigidez, no dogmatismo, e na convicção de que se tem um monopólio da verdade. Eu culpo este zelo exclusivista, respaldado por uma antologia de escritos hebreus e gregos ainda considerados por muitas pessoas como a Palavra de Deus. Quando a causa destes terrores não tinha uma razão política ou econômica, provinha de alguém que estava convencido de possuir alguma verdade sobre Deus, a qual era disputada ou negada por seus opositores. Poucas coisas são mais perigosas nos assuntos humanos, ou têm consequências tão dolorosas, como a convicção de um homem religioso sobre a sua própria convicção. (as mulheres são muito menos censuráveis neste sentido).

A convicção de Dionísio, Erígena, Eckhart e outros como eles era de uma ordem inteiramente diferente. Mas, uma vez que desceram das alturas da contemplação metafísica, eles também não puderam evitar o uso das imagens, e eventualmente dos dogmas, que a Igreja e a Bíblia lhes haviam inculcado. Dionísio, por exemplo, escreveu um volume que acompanhou sua Hierarquia Celestial, onde defendia a hierarquia eclesiástica dos bispos, sacerdotes e diáconos dizendo que refletia a ordem dos anjos. Erígena, apesar de sua visão unitária de Deus e da Natureza, se sentiu obrigado a atacar a heresia ariana que sustenta que o Filho não é igual ao Pai, assim como as teologias dos judeus e pagãos. Eckhart procurou extrair significados ocultos de cada frase da Bíblia, com comovedora confiança de que seus autores estavam mais divinamente inspirados que ele.

A mesma relação com os escritos revelados existiu em outros monoteísmos. No mundo medieval islâmico houve místicos de não menos distinção que os cristãos, para os quais tudo, aparte do Deus incognoscível, aparecia nas categorias teológicas do Corão, que tem horror a que se diga que Deus procriaria um Filho. E os mestres iluminados da Kaballah, que se sentiam autorizados para falar de Ain – a plenitude indescritível da Nada – não acreditavam que houvessem chegado a isso através da graça de Jesus Cristo.

Como podemos abordar estas chamativas diferenças no nível mais fundamental da fé, que tocam a pura essência da teologia e que dividem estas três religiões abraâmicas entre si? Só em uma era pós-religiosa podemos começar a contemplar uma resposta, e a resposta que proponho não vai ser aceitável para muitos. Eu sugiro que as experiências indescritíveis destes místicos sejam tomadas como a melhor evidência que temos da verdade central do monoteísmo: que há uma realidade atrás e além de todas as coisas, à qual o ser humano está misteriosamente conectado. Mas os livros sagrados e revelados, as teologias contenciosas, as leis, o clero, e as imagens idôneas de Deus me parecem evidência positiva da verdade central do politeísmo: que há muitos seres superiores a nós no universo, alguns dos quais entram em contato com a humanidade. Deuses ou deusas, anjos e demônios, espíritos, egrégoras, ou extraterrestres – classifiquem-nos como vocês quiserem. O assunto é provavelmente muito complexo e além de nossas categorias de pensamento. Mas são estes seres, suspeito, os responsáveis por dar à humanidade suas religiões e pelo mútuo intercâmbio de energia que as mantêm vivas.

http://www.symbolos.com/s19godwin_teologia_negativa.htm

 

 

Um comentário em “ANAIS do COLÉGIO INVISÍVEL – V

Deixe um comentário