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Grau 17 – Cavaleiro do Oriente e do Ocidente (REAA)

Publicado em FREEMASON.PT

Por João Anatalino Rodrigues

Avental do Grau 17 - Cavaleiro do Oriente e do Ocidente
Avental do Grau 17 – Cavaleiro do Oriente e do Ocidente

Núcleo histórico

O Grau 17, chamado Cavaleiro do Oriente e do Ocidente, não obstante o Ritual fazer referências aos essénios, aos temas do Apocalipse e outras tradições gnósticas e herméticas, é, na verdade, um grau que tem ligações  muito forte com os cavaleiros cruzados, especialmente os templários. O próprio título assim o sugere, uma vez que os cruzados eram, efectivamente, cavaleiros que vieram do Ocidente para estabelecer um reino cristão no Oriente. Este reino, com a sua capital em Jerusalém, durou quase dois séculos, desde a tomada de Jerusalém em 1099 pelos cruzados, até 1187, quando a cidade foi retomada pelos muçulmanos comandados por Saladino, sultão do Egipto. Neste período de domínio cristão na Terra Santa foram fundadas diversas ordens de cavalaria, sendo as três mais importantes, as Ordens dos Templários, dos Hospitalários e dos Cavaleiros Teutónicos. Cada uma destas Ordens legou importantes tradições à Maçonaria contemporânea, todas elas reproduzidas, de forma simbólica, nos ritos praticados actualmente.

A lenda cultivada no grau 17 do Rito Escocês Antigo e Aceito, embora apresente alguns absurdos históricos, não obstante, desenvolve alguns ensinamentos bastante interessantes. Diz esta lenda que após a tomada de Jerusalém pelos romanos, facto esse ocorrido no ano 70 da era cristã, alguns judeus fugiram para o deserto, dando origem à seita dos essénios. Trata-se, evidentemente de um grosseiro erro histórico, uma vez que os essénios já existiam antes mesmo de os romanos chegarem à Palestina, já que a origem dessa seita se situa no século II antes de Cristo, época em que Roma ainda estava lutando contra os cartagineses pelo controle do Mediterrâneo.

A lenda sugere que muitos dos símbolos e ensinamentos que fundamentam a ritualística e as tradições cultivadas nos graus filosóficos são inspirados nos costumes desta seita fundamentalista que, segundo crêem alguns historiadores, teria sido a inspiradora da doutrina ensinada por Jesus. Esta alusão aos essénios como uma importante fonte de influência da Maçonaria é correcta e já foi referida por nós noutros trabalhos já publicados neste site.

A lenda do grau diz também que a Ordem dos Templários foi fundada após o regresso dos cruzados da Terra Santa. Este também é outro equívoco, pois é facto sabido que esta Ordem foi fundada durante o período de domínio cristão na Terra Santa, e tinha a sua sede na própria cidade de Jerusalém, nas ruínas do antigo Templo de Jerusalém, razão pela qual ela adoptou o nome de “Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo do Rei Salomão”. É possível que, neste caso, o ritual do grau se esteja referindo ás Lojas de Companheiros, nascidas da interacção entre cavaleiros templários e maçons operativos, que depois que os cruzados deixaram a Terra Santa, se multiplicaram pela Europa, dando origem às Lojas maçónicas modernas, como, porém o ritual omite este pormenor, não temos como avalizar a sua historicidade;

O Apocalipse

O ritual também se refere constantemente ao Livro do Apocalipse, e utiliza vários dos seus simbolismos para veicular os ensinamentos do grau.

O Apocalipse é um livro essencialmente gnóstico e foi escrito por um filósofo que possuía profundos conhecimentos das doutrinas desses cultores do cristianismo místico. Possivelmente era um essénio, conhecedor dos métodos cabalísticos de interpretação da Bíblia, o qual, tendo conseguido escapar do massacre perpetrado pelos romanos aos membros daquela seita, adoptou a crença cristã e passou a emprestar à nova religião todos os seus conhecimentos [1].

O autor, que presumivelmente era um preso político confinado na ilha de Patmos, relata as suas visões a respeito do futuro da igreja que naquele momento se estava formando no mundo romano, decorrente das pregações dos cristãos, e sobre o destino do Império Romano e da própria humanidade. Escrito á maneira dos essénios, com larga utilização de símbolos, metáforas, analogias e metonímias, ele criou uma obra criptográfica digna dos mais competentes autores herméticos.

Esta forma de escrita era muito comum na época pois destinava-se a veicular teses, opiniões e mensagens políticas e religiosas combatidas pelo poder secular.

O Apocalipse é, na verdade, um libelo crítico e propagandístico. Veicula críticas contundentes ao Império Romano e as suas autoridades, ao mesmo tempo que procura demonstrar a superioridade do cristianismo sobre as demais crenças religiosas da época. Objectiva também demonstrar que Jesus Cristo era, realmente o Filho de Deus, e somente á ele cabia a missão salvadora da humanidade.

As teses desenvolvidas pelo autor do Apocalipse demonstram claramente que ele era adepto da filosofia gnóstica. A sua concepção acerca do “Cordeiro de Deus”, que tira o pecado do mundo, é uma alegoria que já tinha sido utilizada antes pelos essénios e outros pensadores gnósticos. Outra pista das influências gnósticas e cabalísticas do autor é a sua fixação em temas místicos, como os números sete e doze, que têm larga utilização na tradição cabalística e na própria simbologia da Bíblia.

É sabido que estes dois números, para místicos gnósticos e cabalistas eram números sagrados por natureza. O sete simbolizava a vitória do espírito sobre a matéria e a predominância do bem sobre o mal, e o doze era o símbolo da organização universal. Por isso sete são as igrejas para as quais ele escreve, sete os anjos que as identificam, sete são os castiçais que iluminam o Filho do Homem, sete são as estrelas na sua mão direita, sete selos no Livro do Cordeiro, etc. [2].

Da mesma forma, doze sãos as portas da Jerusalém Celeste, doze os discípulos do Cordeiro, doze as tribos de Israel, etc. [3].

A lenda do grau

A lenda do grau é desenvolvida com fulcro na alegoria dos Quatro Cavaleiros do Apocalipse. Esta passagem consta do capítulo 6 desse estranho livro. Fala de um cavalo branco montado por um cavaleiro vitorioso que submetia todas as nações da terra. Este simbolismo referia-se ao exército romano, então invencível. Depois vinha um cavalo vermelho, conduzindo um soldado com uma espada tinta de sangue. Este cavaleiro simbolizava o próprio Império Romano, cujas conquistas eram geralmente sangrentas. Em seguida um cavalo preto vem conduzindo um cavaleiro com uma balança nas mãos, simbolizando a justiça romana, que dava mais valor aos tributos pagos pelos povos subjugados do que á vida dos seus cidadãos; por fim, um cavalo amarelo trazia no seu dorso um cavaleiro esquelético que simbolizava a Morte. Este cavaleiro dizimava uma quarta parte da população terrestre.

Esta visão não deixava de ter uma certa confirmação com a realidade vivida nos dias do autor. Com efeito, vivia-se a época de Domiciano, um dos mais cruéis imperadores que Roma teve. A sua época ficou conhecida como “Era dos Mártires”, graças á terrível e sangrenta repressão praticada contra os cristãos. Morte, fome, guerra, peste eram ocorrência constantes naquela época, razão pela qual esse é um tema recorrente no Apocalipse. Por ser um tempo de terríveis aflições para os cristãos, o poder imperial de Roma é pintado como sendo a “besta dos dez cornos e quatro cabeças, que usa dez coroas e tem sobre elas títulos blasfemos” [4].

A própria Roma, na visão do autor é governada por uma “besta”, cujo número é 666. Este número corresponde, na Cabala, ao nome do Imperador romano Nero, o primeiro monarca romano a promover uma sistemática perseguição aos cristãos. Estigmatizando este imperador através deste número maligno, o autor estava, não só denunciando-o como um dos mais terríveis inimigos de Cristo, como também lançando sobre ele um sortilégio ruim, pois a sequência de seis, representava, na arte da Aritmosofia, uma série maligna [5].  É que, cerca das suas décadas antes de ser escrito o Apocalipse, as tropas romanas tinham invadido a Judeia e massacrado a maior parte dos seus habitantes. Destruíram também Jerusalém e botaram abaixo o Templo. Depois expulsaram os judeus da Palestina, dando nascimento ao episódio que na história ficou conhecido como Diáspora [6].

O autor do Apocalipse evoca estes acontecimentos e faz da sua obra um libelo acusatório contra Roma e lança uma profecia de esperança de ressurgimento do povo e do estado judeu, desta vez sob a égide da crença cristã, e governado pelos seguidores do Messias.

O Ensinamento iniciático do grau 17

A esperança messiânica foi o gancho no qual os organizadores do ritual do grau 17 ligaram as tradições judaicas referidas no Apocalipse, com os temas da Cavalaria cruzada, que aparentemente nenhuma conexão, a não ser o local onde elas nasceram, têm entre si. Todavia, como veremos nos graus superiores, especialmente os graus 28 a 32, existe uma identidade simbólica entre esses temas, que torna o catecismo maçónico um conjunto temático bastante uniforme entre si.

Desta forma, o ensinamento iniciático do grau 17 procura passar ao iniciado a ideia de que os templários, antecessores dos maçons, na verdade, são os herdeiros espirituais da tradição israelita que faz daquele povo um “grupo eleito” entre os povos da terra para guardar esta tradição. Esta tradição seria encampada pelos cruzados e defendida com unhas e dentes pelas Ordens de Cavalaria que eles fundaram para apoiar as suas pretensões. Esta ideia reflecte-se principalmente na saga dos cavaleiros templários, que se tornaram uma potência política, económica e religiosa, cujo poder desafiou a própria Igreja e por isso mesmo acabou sendo suprimida violentamente.

Desta tradição originaram-se as várias concepções que colocam os templários como herdeiros espirituais dos primeiros cristãos e detentores dos seus verdadeiros ensinamentos e segredos. Eles seriam, por emulação deste conceito, os portadores da Nova Aliança, os habitantes da Nova Jerusalém citada pelo autor do Apocalipse. Por isso encontraremos, praticamente em quase todos os graus filosóficos, referências a este tema [7].

Assim, o simbolismo do grau 17 efectua a transição entre as tradições do Velho Testamento, expresso na Lenda de Hiram, a reconstrução de Jerusalém, a filosofia das seitas judaicas, e o Novo Testamento com as doutrinas pregadas por Jesus; e a partir dessa transição integra a filosofia gnóstica e hermética, adoptada pelos cavaleiros templários na Terra Santa e repassada aos novos “cavaleiros”, que são os maçons.


Notas

[1] O Apocalipse é atribuído a São João Evangelista, o mesmo autor do Evangelho que leva o seu nome. Dificilmente porém, este autor seria o chamado “discípulo amado”, que fez parte do grupo dos doze que acompanhou Jesus no seu magistério. A diferença entre os seus escritos e os chamados “sinópticos”, evangelhos que tratam mais dos feitos de Jesus do que da sua doutrina, são patentes. O Evangelho de João e o Apocalipse são livros de clara inspiração gnóstica.

[2] Sete também são as letras que aparecem estampadas em cada um dos selos que lacram o Livro do Cordeiro. Estas letras são B,D,S,P,H,G,F. São as iniciais dos nomes dos sete querubins que guardam os sete céus da tradição gnóstica. Estes nomes e esta tradição também é referida nos ensinamentos dos graus filosóficos do Rito Escocês.

[3] Por isso a “nova tribo” que será salva depois do Juízo Final será composta de 144.000 convertidos. Este número nada mais é que o número  12 multiplicado por 12.000, inspiração tipicamente cabalística, extraída da matriz israelita dos 12 filhos de Jacob, núcleos das 12 tribos de Israel. Significa que cada tribo de Israel contribuirá com 12.000 pessoas para a Jerusalém Celeste.

[4] Dez eram as divisões territoriais que o Império Romano adoptava como províncias; quatro eram os poderes imperiais, representado pelo Imperador, o Senado, o Exército e o Corpo Judiciário; os nomes “blasfemos” eram os títulos de deuses que as autoridades supremas de Roma adoptavam  para si mesmas.

[5] Veja-se a este respeito Hugh Schonfield – A Bíblia Estava Certa – ED. Ibrasa, 1986

[6] Os judeus seriam autorizados a voltar à Palestina no começo do século II. Jerusalém foi reconstruída pelos romanos em 144 da era cristã, com o nome de Aélia Capitolina. O estado judeu, entretanto, só seria reconstituído em  1948.

[7] Especialmente a reconstrução de Jerusalém, a Jerusalém Celeste, bem como as referências á várias tradições cultivadas pelos templários, como a lenda de Bafhomet, a Escada Mística, Os Cavaleiros Teutónicos, etc.


Do livro “Conhecendo a Arte Real” – João Anatalino – Madras, 2007

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