Bibliot3ca FERNANDO PESSOA

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Maçonaria sem pré-conceito

Publicada em FREEMASON.PT

Entrevista conduzida por Morgana Gomes – Revista Leituras da História

entrevista, maçonaria

Devido a equívocos histórico-culturais, a Maçonaria sempre esteve cercada pelo misticismo que levou muitos desavisados a taxá-la até como algo satânico.

A Ordem nunca deixou de ser alvo de especulações e preconceitos por parte daqueles que estão fora do círculo de convívio dela. Este facto, por si só, despertou a curiosidade e impulsionou o psicólogo Marcel Henrique Rodrigues a desenvolver uma investigação sobre o tema que, inicialmente, assumiu o carácter de pesquisa de iniciação científica, para depois se transformar numa publicação, fundamentada cientificamente nas áreas de Psicologia, Antropologia e História. A obra Maçonaria e Simbologia: Uma Análise do Preconceito Através da História e da Psicologia fez com que o nosso entrevistado passasse mais de dois anos debruçado sobre o misticismo e esoterismo da Ordem Maçónica, para entender o porquê do preconceito que foi criado em cima da fraternidade.

Durante este tempo, ele esteve em Portugal, onde consultou documentos presentes no Arquivo Nacional, na Torre do Tombo, em Lisboa. No entanto, ele também recorreu a autores consagrados como Joseph Campbell, Carl Jung e Mircea Eliade, além de historiadores e antropólogos contemporâneos, para nos apresentar uma análise da construção dos mitos, símbolos e preconceitos ligados a Maçonaria, que permeiam anos de História. Mas como ele mesmo diz, “de forma alguma, a publicação é uma verdade absoluta”. Pelo contrário, na intenção de ampliá-la, Rodrigues expressa o desejo de receber críticas, sugestões e dicas de leitores. No entanto, é inquestionável como o trabalho dele é capaz de nos apresentar outras facetas da Maçonaria!

Arquivo Nacional – Torre do Tombo, em Lisboa

Leituras da História – Como surgiu o interesse pela simbologia maçónica?

Marcel Henrique Rodrigues – Meu interesse, na verdade, surgiu por meio dos estudos das religiões. Ficou muito evidente para mim que todas elas têm uma linguagem em comum, formada pelos símbolos, metáforas e mitos. Tudo começou com o estudo dos símbolos do Cristianismo. Apesar da minha formação em Psicologia, sempre estive muito ligado ao campo da História, momento em que acabei por entrar em contacto com a Maçonaria e toda a sua complexa e, em certo ponto, controvertida história. Digo controvertida por causa de toda a mitologia, de todo folclore popular que existe em torno da Ordem. Estas controvérsias, somadas à grande participação da Maçonaria na História Moderna do Ocidente, fez com que eu me voltasse para uma pesquisa seria da Ordem. Decidi, então, estudar a sua tradição esotérica, os seus símbolos e diversos significados. Fiz, então, uma união com a história das religiões e este gosto só aumentou, apesar da Maçonaria não ser uma religião.

LH – Qual a sua ligação com a Ordem?

Rodrigues – Não tenho ligação alguma com a Maçonaria e os meus estudos são independentes da Ordem.

LH – Então como conseguiu ter acesso a uma série de informações pertencentes à fraternidade?

Rodrigues – Tenho muitos amigos maçons, que me auxiliaram bastante. Além disso, como o meu estudo era sério, tive o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, a FAPESP, e a Ordem sentiu-se mais segura por não se tratar de uma pesquisa puramente especulativa, sem nenhum senso crítico. A partir daí, tive uma boa receptividade por parte dos membros da Maçonaria, sobretudo em Portugal, país em que fiz um intercâmbio, para fins da consecução da pesquisa. Lá, tive reuniões com maçons e estudiosos da área. Acredito que também é importante lembrar que um estudioso pode fazer toda a sua pesquisa sem conhecer e nem conversar com algum Maçom. Para tanto, basta ter senso crítico, buscar em obras académicas certas e fazer pesquisas, se possível, em arquivos históricos, como realizei em Lisboa, na Torre do Tombo, onde entrei em contacto com obras históricas da época da Inquisição Portuguesa, por exemplo. Portanto, todo o material científico está disponível para qualquer pesquisador, desde que ele se neutralize de preconceitos e apologias, na intenção de fazer a sua pesquisa com bastante seriedade.

LH – Como a sua obra é vista pelos maçons de facto? Já recebeu alguma crítica deles?

Rodrigues – A minha obra foi muito bem recebida e teve muitos elogios. Amigos maçons que souberam da minha pesquisa, além de me auxiliarem e incentivarem para que fosse em frente com a pesquisa, não me deixaram desanimar. Com certeza, o auxílio motivacional foi a maior contribuição que recebi. Quanto a críticas, ainda não recebi nenhuma negativa. Talvez por se tratar de uma singela pesquisa de iniciação científica de um graduando, a minha obra tenha sido lida e, ao mesmo tempo, vista com a óptica de alguém que se esforçou para dar o melhor de si.

LH – De que forma o senhor conseguiu unir aspectos místicos e esotéricos e obter um viés científico para fundamentar a sua obra?

Rodrigues – Nessa etapa, eu não encontrei grandes problemas, apesar de que os temas místicos e esotéricos não serem vistos com bons olhos pela comunidade académica, herança do nosso passado ainda presente na ciência positivista. Como já mencionei, com uma leitura crítica e a busca de autores certos, encontramos bons materiais que se fundamentam na História e na Psicologia das religiões e que fazem um amplo estudo sobre os aspectos místicos e esotéricos em diferentes etapas da História. Gostaria aqui de lembrar que os termos místicos e esotéricos são muito amplos, até mesmo de difícil conceituação. Pelos meus estudos e conclusões, percebi que estes termos tendem a ser, muitas vezes, desconsiderados pela cultura cristã, sobretudo o termo esotérico que, até aonde sei, foi totalmente descartado pelo Cristianismo, devido às doutrinas ditas ocultas, resquícios de um passado pagão, condenável por assim dizer. o próprio termo esotérico é fruto de muitos debates, preconceitos e estranheza para os leigos. No entanto, se bem analisado, todas as religiões têm o seu lado esotérico. Porém, para evitar polémicas é um termo nada utilizado entre as religiões predominantes. Contudo, para fundamentar as minhas observações sobre esoterismo e misticismo, apoiei-me em autores consagrados como Joseph Campbell, Mircea Eliade e Carl Gustav Jung, entre outros que reservaram grande parte das suas obras para o estudo desta importante e, tão controvertida, temática.

LH – Só para posicionar os nossos leitores, quais os principais símbolos maçons que o senhor identificou na sua pesquisa?

Rodrigues – A Minha pesquisa de forma alguma se tornou um dicionário de símbolos, isso não seria nada científico e nem preciso, visto que um símbolo tem diversos significados. O meu livro trata de alguns símbolos sim, mas os mais básicos, como o pentagrama e o esquadro e o compasso. Contudo, ele também não é um dicionário de símbolos. Embora o título evoque para si o termo simbologia, tal termo já supõe que o leitor entenda que a Maçonaria trabalha com simbologia, seja nos seus rituais e preceitos. Acho também válido lembrar que o leitor não se deparará com um livro puramente de cunho psicológico. Apesar da minha formação em Psicologia e da utilização de muitos dos argumentos de Carl Gustav Jung, a investigação teve como alicerce principal o viés histórico. Quanto ao tempo para a confecção da pesquisa foi de dois anos, porém, desde que ingressei no curso de Psicologia, em 2010, tive outras bolsas de Iniciação Científica, concedidas pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, o CNPq, em que trabalhei a temática dos símbolos e elas colaboraram bastante para as investigações no âmbito da Maçonaria.

LH – Qual a origem e o significado da palavra Maçom?

Rodrigues – O termo Maçom, inicialmente, é encontrado no francês e no inglês e quer se referir a pedreiro. Historicamente os maçons, no caso os pedreiros, eram homens simples, porém, sábios, que se dedicavam à construção das mais belas igrejas medievais em estilo Gótico. Esta é a etapa chamada de Maçonaria Operativa, ou seja, de construção, diferente da Maçonaria Especulativa, tal qual temos hoje que, embora totalmente distinta da primeira se diz “herdeira” dela. É uma temática muito complexa e historicamente ainda não totalmente resolvida por falta de documentos mais precisos.

LH – Como os pedreiros da Idade Média deram origem a chamada Maçonaria Operativa?

Rodrigues – No período da Idade Média, podemos assegurar a existência dessas agremiações, sociedades ou até mesmo fraternidades de pedreiros. Sabemos ainda que as condições de vida e de trabalho na Europa Medieval eram arcaicas. Na sociedade, a ascensão de classe era praticamente nula. A fome e doenças se espalhavam por todo o continente e trabalhar era preciso. Também conhecemos o grande poder que a Igreja Católica tinha na época, tanto em relação à questão religiosa como político-temporal. De facto, era a instituição dominante, forte, a inabalável, numa época de instabilidade económica, social e política. Fazer parte do clero ou ser da nobreza era praticamente requisito para quem quisesse ter uma vida mais confortável e uma espécie de ascensão económica e social. No entanto, quem não se enquadrava nestes quesitos, ou seja, a grande maioria da população europeia, ficava à mercê de todas as dificuldades possíveis.

Numa linguagem popular e nada científica, podemos dizer que trabalhar para a Igreja era como trabalhar na melhor empresa da Era Medieval e foi o que, de facto, esses pedreiros fizeram. Ao exercitar as suas artes e conhecimentos de construção e Geometria para ganhar o sustento das suas famílias, eles realmente operavam, trabalhavam e lavravam a pedra para erigir os mais belos templos em estilo Gótico que temos. Desta forma, o ofício de pedreiro ou Maçom era um bom negócio no meio de um período de caos social. Aos poucos, estes grupos cresceram e formaram, por toda a Europa, as chamadas guildas. Eram prestigiados por todo o clero, conseguiram certa autonomia social e livre trânsito para viajarem pelos países europeus a fim de construírem ou aprenderem uma nova técnica de construção.

LH – Como pedreiros, certamente, os construtores das grandes catedrais da Idade Média eram homens simples. Partindo daí, por que são atribuídos a eles os segredos da tradição da Geometria Sagrada e da construção de edifícios segundo a ordenação dos astros?

Rodrigues – De facto, esta é uma pergunta bastante difícil. Não sabemos como estas agremiações tinham tais conhecimentos. Porém, há uma hipótese bastante plausível. Historicamente a Geometria, assim como a Matemática, foi elevada ao título de arte sagrada nas mais antigas culturas, entre egípcios e gregos, principalmente. O homem percebeu a sua capacidade em manipular e projectar certos elementos da natureza, como uma maneira de reverenciar a criação divina. Tal reverência poderia ser expressa mediante a construção de templos e outras estruturas arquitectónicas, com as mais belas, precisas e harmoniosas formas geométricas, que o homem podia conceber. Um exemplo claro são as pirâmides do Antigo Egipto, que estão com medições perfeitas e alinhadas geometricamente com muitos astros. O conhecimento em Astrologia e Astronomia desde os antigos povos também propiciou para a sacralização da Geometria, ou seja, o homem logo percebeu a existência do Macrocosmo – o universo, as constelações etc. – e o Microcosmo – o mundo terreno, visível, passível de manipulação -, com estes conhecimentos, de cunho filosófico e metafísico os uniu ao conhecimento matemático da Geometria, formando a Geometria Sagrada, uma forma de glorificar a criação e a divindade mediante a construção de templos e espaços religiosos, por assim dizer. Tal tradição, que não se perdeu, passou de geração em geração. Houve o desenvolvimento de números precisos, como o número PI, também vinculado com a chamada Proporção Áurea, muito utilizada na elaboração geométrica de templos da Antiguidade e de igrejas na Idade Média.

Enfim, estes conhecimentos chegaram até as agremiações de pedreiros medievais, que os utilizaram com muito afinco nas suas construções. Mas, como estes grupos chegaram até estes conhecimentos, para mim, ainda é um enigma. Acredito nas hipóteses da tradição oral dos conhecimentos em Geometria, que eram ensinados nos pouquíssimos centros de estudos que existiam na época. O estudioso italiano Leonardo Fibonacci, por exemplo, muito se aplicou ao estudo da Proporção Áurea, chegando a importantes descobertas em que perfeitas sequências numéricas apareciam em espécies da natureza, como em plantas. Ele só confirmou o que os antigos já diziam. Posso ressaltar ainda que, ao menos, esses antigos conhecimentos não foram apagados durante a iconoclastia promovida pelo Cristianismo no início da nossa era.

LH – Qual a influência do paganismo no trabalho desses mesmos homens?

Rodrigues – Este é um ponto bastante delicado e controverso. Existem inúmeros autores que divulgam que esses antigos trabalhadores tiveram contacto com a Gnose, com a Cabala, com a Alquimia e outras práticas derivadas do paganismo e, de certa forma, condenadas pela Igreja. Não nego a grande possibilidade de que eles tenham entrado em contacto com todos esses e outros tipos de tradições, entretanto, com a falta de provas mais concretas esta questão permanece em aberto e dificilmente será fechada. O que podemos dizer, e até já mencionamos na resposta anterior, é que esses pedreiros tiveram acesso ao conhecimento Geométrico difundido muito antes do Cristianismo e muito provavelmente com algum conhecimento astrológico/astronómico também. Isto eu considero como uma prova científica. Repito que é incerto que eles tenham tido ou não contacto com tradições pagãs, combatidas pela Igreja. Existe uma possibilidade muito grande, sobretudo que tenham entrado em contacto com a Gnose, uma corrente considerada herética pelo Catolicismo, mas que muito se difundiu durante a Idade Média, mesmo sob a perseguição da Inquisição.

LH – O senhor também comenta que os clubes de pedreiros formavam uma verdadeira sociedade iniciática que, ao receber um aprendiz, fazia-o jurar segredo sobre tudo o que aprenderia sobre a profissão. Seriam estes clubes os fundadores da Maçonaria?

Rodrigues – Isso não há dúvidas, eles formavam sim um clube iniciático. Este propósito, por assim dizer, consistia em preservar o ofício de pedreiro legado somente a alguns homens. Do meu ponto de vista, e como já articulamos anteriormente, a Idade Média fora marcada por pobreza, insegurança e todos outros tipos de problemas sociais. Portanto, achar uma profissão era preciso. Ora, a construção de catedrais era algo seguro e lucrativo e, sem dúvidas, muitos queriam entrar para as corporações, mas não havia espaço e muito menos trabalho para tal demanda. Assim, vejo que a iniciação e a tradição em guardar os segredos das agremiações, que se constituíam em técnicas perfeitas de construção, foi uma atitude para salvaguardar os conhecimentos, uma maneira de manter os seus próprios empregos.

LH – Quais as evidências que poderiam elucidar esta hipótese?

Rodrigues – Há documentos, sobretudo após o Século XV, que apontam para esses juramentos e que legitimam a existência da Maçonaria Operativa. Vejo, actualmente, que existem muitos trabalhos sérios que ligam a Maçonaria Operativa com a actual Maçonaria. Embora muitos cépticos queiram apontar o surgimento da Ordem somente no Século XVIII, há muitas evidências e documentos escritos da iniciação de membros da nobreza, sobretudo na Inglaterra e Escócia. Estes membros da nobreza não eram pedreiros e jamais trabalharam na construção física de algo. Logo, as suas iniciações ocorreram, ao que tudo indica, para que a Ordem pudesse continuar a ter existência, pois o estilo Gótico já estava em queda, a Igreja Católica já estava perdendo poder e a construção de catedrais já não era mais uma necessidade. Em virtude dessas iniciações de não pedreiros, a Ordem foi passando lentamente de um clube operativo para um clube estritamente filosófico. Ao mesmo tempo, cada vez mais, as iniciações ganhavam um carácter “sacro”.

LH – Considerando ainda que a Igreja Católica assimilava e, depois, sincretizava quase tudo para captar fiéis, por que a Maçonaria passou a ser tida como antagónica ao Cristianismo, se os maçons foram os responsáveis pela construção das grandes catedrais? Tal facto não é ambíguo?

Rodrigues – Este antagonismo, ou melhor, esse choque entre Maçonaria e Cristianismo, mais propriamente com o Catolicismo, ocorreu quando a Maçonaria se tornou propriamente filosófica, por volta de 1717. Nessa época, abriram-se Lojas em diversos países europeus e muitos membros da nobreza foram iniciados. Portanto, não podemos negar que a Maçonaria atraiu muitos nobres e intelectuais, que estavam curiosos por saber o enigmático segredo maçónico e o que um antigo clube de construtores de catedrais poderia agregar nas suas vidas. Além disso, o secretismo velado pela Ordem, somado com o tom ocultista e a sua linguagem codificada por símbolos, tornaram-se ingredientes perfeitos para atrair muitas pessoas que formaram rapidamente um braço muito forte na sociedade, com efeitos na política, por exemplo. Mas, ao mesmo tempo em que a Maçonaria Especulativa chamava atenção, ela também assustava, sobretudo o clero Católico e os Estados absolutistas, ou seja, as monarquias. O susto se dava por vários motivos, entre eles o sigilo e o carácter secreto e oculto da Ordem; as suas regras, como a união de homens de todas as religiões, o que era uma ofensa para o Catolicismo da época, que via isso como heresia; e as ideias de uma filosofia que apregoava a Liberdade, a Fraternidade e a Igualdade entre os povos, lema que soou como uma ameaça, uma espécie de complô contra os governos monárquicos da época. Ainda havia o carácter de culto, com que a Ordem se apresentava com a sua simbologia religiosa, embora ela mesma sempre tenha alegado não ser uma religião. Consequentemente, a Maçonaria com a sua formação Especulativa e Filosófica abalou as estruturas sociais do Século XVIII e fez com que Estados e a Igreja entrassem em estado de atenção, muito mais por medo de perda de poder, do que um medo relativo a um culto estranho ao Cristianismo ou a uma heresia. Por isso, a tensão entre a Igreja e a Maçonaria aumentou após a Revolução Francesa que, na época, ganhou fortes rumores de que havia sido forjada pela Ordem.

Conhecemos como tal revolução modificou diversos paradigmas sociais, políticos e religiosos do Ocidente, que se perpetuam até hoje, porque o que ela intentou fazer foi diminuir o poder das monarquias absolutistas e minimizar drasticamente o poder eclesial. De certa forma, a Revolução alcançou êxito nos seus propósitos, facto que fez com que muitos Estados emitissem, com aprovação eclesiástica, decretos que proibiam a reunião de maçons. Centenas de Lojas foram fechadas, muitos maçons presos, torturados e mortos. A meu ver, esse choque envolvendo a tríade Maçonaria, Estado e Religião teve muito mais um viés político-económico do que uma questão fortemente religiosa, embora o Catolicismo da época sempre realçasse nas suas bulas o perigo para a salvação das almas dos cristãos que se filiavam na Ordem.

Embora esta atitude tenha mudado com o passar dos séculos e, actualmente, exista um diálogo entre Maçonaria e Igreja Católica, essa aproximação ainda é marcada pelas feridas de um passado de choques, conflitos e distorções históricas. Portanto, fecho esta questão admitindo que não existe uma ambiguidade, pelo facto da Maçonaria Especulativa ser totalmente diferente nos seus propósitos do que a Maçonaria Operativa, que estava definitivamente comprometida em levantar edifícios religiosos nas mais perfeitas e justas regras geométricas. Além disso, não existem provas concretas, como desejam alguns autores, de que essas agremiações de pedreiros formavam um clube filosófico, diferentemente da Maçonaria Especulativa na qual as questões de cunho filosófico estão totalmente em pauta. Por isso, insisto que é necessário fazer uma diferenciação entre as duas maçonarias.

Marie Joseph Gabriel Antoine Jogand Pagès conhecido como Léo Taxil, responsável por uma farsa antimaçónica que gerou um escândalo e envolveu o próprio Papa

LH – Como o falsificador francês Léo Taxil, homem pouco conhecido da grande maioria, influenciou inúmeras pessoas que passaram a acreditar em hipóteses não fundamentadas sobre a Maçonaria, a partir dos escritos dele?

Rodrigues – Taxil foi muito esperto. Por ser extremamente ardiloso, ele aproveitou o frenesi popular que a Maçonaria provocava na época. O assunto era a bola da vez, conversa das rodas sociais. Havia os que queriam fazer parte da Maçonaria e, entre eles, uns por boa vontade ou para melhorar a própria aprendizagem cultural e pessoal, premissas que a Maçonaria já assumia naquela época, ao se mostrar como uma escola de conhecimento, outros por pura curiosidade e possibilidade de ascensão social. Um terceiro grande grupo resumia-se nos demais. Eram homens e mulheres de todas as classes sociais que queriam saber o que era a Maçonaria, quais os seus fins, para que servia e se era boa ou má. Frente a estas questões, somadas aos éditos e bulas expedidas pelas monarquias e pela religião, sobretudo pelo Catolicismo, a Maçonaria encontrou um terreno muito fértil de hostilidade.

Embora esta hostilidade fosse grande, as poucas definições expedidas pelas próprias Lojas, que mencionavam ser uma sociedade filosófica, sem cunho religioso e político, que procurava apenas o aperfeiçoamento moral e pessoal dos seus filiados, não ganhavam quase nenhum crédito diante das acusações, principalmente de conspiração, emitidas pelas autoridades civis e religiosas, que arraigaram no imaginário colectivo popular que a Maçonaria era o reduto do mal. Taxil somente se apropriou desse terreno fecundo de especulações. Antes, ele teve o êxito de ser aceito numa Loja na França, mas foi expulso meses depois da sua filiação por mau comportamento. Além de ser um anticristão, ele já era conhecido na sua comunidade local por muitas falsificações. Após a sua expulsão da Ordem, ele decidiu aproveitar o terreno fértil hostil à Maçonaria para escrever sobre ela. Decididamente registrou o que as massas e, principalmente, o clero queriam ouvir. Relatou que a Maçonaria era nada mais nada menos que um culto diabólico, luciferiano, que chamou de Paladismo. Como astuto falsificador logrou um sucesso que provavelmente nem imaginaria alcançar. Além dos livros que publicou, fazia palestras relatando em detalhes o chamado culto paladista dentro da Maçonaria. Descrevia com detalhes como Satanás era evocado nas sessões maçónicas e utilizava-se da própria simbologia para explicar raízes pagãs da Ordem.

O seu sucesso foi tão grande que ele recebeu atenção especial do Papa Leão XIII, que o recebeu em reunião no Vaticano. Taxil realmente conseguiu enganar a sociedade europeia na época e pregar uma das maiores peças na história do Catolicismo. Para mim, ele foi o protagonista de uma grande distorção, que ganha aceitação até hoje. Mas como todo falsificador, Taxil também acabou sendo desmascarado. Ele próprio organizou uma espécie de concílio coordenado pelo Catolicismo, para discutir a questão maçónica, mas como não reuniu provas suficientes para atestar as suas alegações, em 1897, declarou publicamente a sua fraude, causando um grande escândalo e certa vergonha ao clero Católico que, basicamente, não se pronunciou a respeito. Ele morreu no esquecimento. No entanto, a sua obra, ou melhor, a sua mentira nunca foi esquecida e ainda é proclamada pelo antimaçonismo.

LH – A Maçonaria actual é ou não herdeira da Maçonaria Operativa?

Rodrigues – A Maçonaria actual, denominada de Especulativa ou Filosófica, diz-se herdeira da Maçonaria Operativa, na sua essência. De facto, a essência é bem similar, pois tanto numa como na outra encontramos os rituais de iniciação, juramento de manter segredo, sobretudo sobre os meios de reconhecimento entre os seus filiados, e ajuda mútua entre os seus membros. A mudança mais radical pode ser enquadrada dentro dos próprios aspectos da simbologia, ou seja, tudo o que era executado por um Maçom operativo, como lavrar uma pedra bruta para obter uma polida e ou elaborada, o Maçom especulativo deve entender como um trabalho simbólico e subjectivo. A pedra bruta, então, passa a representar a própria alma do Maçom que, na busca do aperfeiçoamento moral e intelectual, vai trabalhando a sua interioridade, polindo e lapidando a sua pedra interior, a alma. O erigir dos templos mais simétricos e belos possíveis em honra a Deus e à Criação, passa simbolicamente para a Maçonaria Especulativa. Portanto, a necessidade de se erguer um templo justo e perfeito, exige a reunião das Lojas e Potências que, assim, formam verdadeiros templos virtuosos simbólicos.

LH – Hoje em dia, a simbologia maçónica é usada até em templos evangélicos. Isto representa falta de conhecimento histórico ou é uma simples apropriação estética?

Rodrigues – Vejo este detalhe com um pouco de humor, de facto, existe muito material na internet referindo que a simbologia maçónica está sendo utilizada em templos evangélicos, por exemplo. O anúncio, principalmente em vídeos do Youtube, é para alertar os fiéis que as suas próprias comunidades estão impregnadas pelo mal maçónico – aqui podemos classificar tal facto como distorção histórica, herdada principalmente de Taxil. Outro ponto sabido é que as igrejas evangélicas tentam utilizar a menor quantidade possível de símbolos nos seus templos, uma herança da própria Reforma Protestante. Mas muitos deles têm ganhado, cada vez mais, uma espécie de estética Neoclássica. As suas fachadas em forma de frontal, geometricamente, representam um triângulo. Ora, um dos símbolos mais utilizados pela Maçonaria é o Triângulo. Pronto! Aqui está a margem para especulações de que símbolos maçónicos estão sendo utilizados em templos evangélicos. Percebo que qualquer ameaça de aparição de símbolos, seja no âmbito religioso, civil, político ou artístico, recai sobre a Maçonaria, juntamente a enxurrada de designações que a Ordem recebe hoje, entre elas de culto satânico, complô político, anti-religiosa e conspiração.

Gostaria ainda de salientar que temos que ter muito cuidado com os termos simbologia maçónica e apropriação estética para o uso de símbolos, visto que os símbolos não são exclusivos da Maçonaria ou de qualquer outra ordem, religião ou filosofia. Pelo contrário, eles são colectivos e estão inseridos nas mais diversas tradições religiosas e filosóficas do mundo. Símbolos como a Cruz, o Triângulo, o Pentagrama e o Hexagrama, por exemplo, são maçónicos, mas não são propriedades da Ordem, pois também conhecemos como tais símbolos são difundidos nas mais diversas culturas. Logo, nenhuma cultura ou religião pode evocar o monopólio dos símbolos, já que eles são universais, colectivos e muito antigos. Não é porque vejo um triângulo, num frontão de um Templo ou no prédio do Fórum de qualquer cidade, que o símbolo remete à Maçonaria.

LH – De forma conclusiva, o que o senhor elucidou de facto com toda a pesquisa desenvolvida e que originou o livro Maçonaria e Simbologia: Uma Análise do Preconceito Através da História e da Psicologia?

Rodrigues – Tentei elucidar o porquê do preconceito popular em torno de fraternidades como a Maçonaria. Preconceito este que está fortemente arraigado no imaginário popular, sobretudo brasileiro, de que a mencionada Ordem é uma espécie de culto diabólico. Em linhas gerais, meu trabalho tende a quebrar este equívoco, compreender como uma distorção histórica pode ter sérias consequências para uma determinada comunidade ou até mesmo para o mundo. No tocante a Psicologia, eu evidenciei alguns pontos, baseando-me na história das religiões. Assim, pude fazer um pequeno esboço histórico, no início do livro, justificando que essas sociedades secretas e discretas, que impõe uma iniciação e um voto de silêncio sobre os seus segredos, são tão antigas que podem remeter aos homens das cavernas, ou seja, desde tempos imemoriais o ser humano é atingido por um ímpeto, uma necessidade psicológica, de compartilhar um segrego, seja qual for, e de fazer parte de um grupo selecto, que se distingue e se destaca da sociedade em geral. Estou me referindo aqui sobre as possíveis sociedades de caçadores existentes na Pré-História e que é estudada e discutida principalmente por Campbell e Eliade. Retomei também, em linhas gerais, como os símbolos e as sociedades iniciáticas foram sendo concebidos ao longo da História do Ocidente, tudo na tentativa de criar bases históricas e antropológicas para fundamentar a existência e a permanência desses grupos e da simbologia religiosa.

Posso ainda dizer com muita propriedade que meu trabalho está incompleto, pois há muito mais a ser estudado, pesquisado e escrito. Por isso, peço que o leitor tanto dele quanto da revista que se sinta à vontade para fazer críticas e sugestões, ao mesmo tempo em que também insisto para que leiam com a óptica de que o trabalho foi elaborado com muita honestidade, tendo em mente de que se trata de uma iniciação científica, um período em que estou aprendendo técnicas de pesquisa e de escrita. Por último, ressalto também que a obra não tem intenção alguma de ser uma apologia à Maçonaria e nem criticar qualquer religião. Embora tenha sido difícil, tentei fazer uso do agnosticismo metodológico durante toda a investigação. Contudo, a minha escrita não esconde meu deslumbramento tanto pelos símbolos quanto pelo místico que, para mim, estão presentes em todas as religiões e sociedades filosóficas. Um símbolo é um viés para compreender a História do mundo, a partir das suas crenças e tradições. Através deles, povos e culturas tentaram expor o inefável, a divindade inexprimível, conferindo ainda mais sacralidade e maneiras de interpretações para as imagens simbólicas. Desta forma, elas fizeram valer aquele dito popular: “um símbolo vale mais que mil palavras”. Quero que o leitor possa se interessar e se instigar a elaborar sérias pesquisas em torno da temática que, para mim, permanece carente no cenário científico-académico brasileiro!

Entrevista conduzida por Morgana Gomes

Fonte

  • Revista Leituras da História

Sobre o entrevistado

Marcel Henrique Rodrigues na sua passagem por Lisboa

Mestrando em Ciência da Religião, pela Universidade Federal de Juiz de Fora, é bolsista da Fundação Capes. Graduado em Psicologia pelo Centro Universitário Salesiano – Unisal, também foi estagiário em pesquisa e bolsista FAPESP, no Centro de Estudos em História Religiosa (CEHR) da Universidade Católica Portuguesa em Lisboa, onde investigou sobre Simbologia. Foi estudante de Teologia pela escola Mater Ecclesiae, a Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro. Membro efectivo da Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR) e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) possui extensão m Arqueologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC) e em Semântica e símbolos cristãos pelo Centro Universitário Claretiano. Também foi pesquisador, categoria Iniciação Científica, com bolsa da Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo/FAPESP. Já obteve, por dois anos consecutivos, bolsa de Iniciação Científica do CNPq, com as quais manteve a realização de projectos para pesquisas em Simbologia e Religiões. É também autor do livro Maçonaria e Simbologia: Uma Análise do Preconceito Através da História e da Psicologia. Para contactá-lo, sugerir, criticar, elogiar ou até contribuir com a obra, recorra ao e-mail: marcel_symbols@hotmail.com (na imagem, o entrevistado em Lisboa, cidade onde realizou grande parte das investigações, devido aos incríveis acervos históricos abertos para estudos).


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Maçonaria e Simbologia: Uma Análise do Preconceito Através da História e da Psicologia