Bibliot3ca FERNANDO PESSOA

E-Mail: revista.bibliot3ca@gmail.com – Bibliotecário- J. Filardo

Seria o Grande Arquiteto do Universo um Relojoeiro?

Uma análise comparativa entre a noção de divindade na Maçonaria e na obra de Voltaire

 

João Carlos Lourenço Caputo ***

Resumo

A proposta do presente artigo é sugerir uma possível relação entre o conceito de Grande Arquiteto do Universo apresentado pela Maçonaria e o conceito de divindade presente nas obras de Voltaire. Não pretendemos com isso afirmar que Voltaire foi a fonte direta da qual a ordem maçônica extraiu suas ideias, mas apenas realizar uma análise comparativa mostrando que há grande semelhança entre os dois conceitos e o método de construção de ambos.

Palavras chave: Iluminismo, metafísica, Deus, maçonaria.

 

Abstract

The proposal of this article is to suggest a possible relation between the concept of Great Architect of the Universe presented by Masonry and the concept of divinity present in the works of Voltaire. We do not mean by this to say that Voltaire was the direct source from which the Masonic order extracted his ideas, but only to carry out a comparative analysis showing that there is great similarity between the two concepts and the method of construction of both.

Keywords: Enlightenment, metaphysics, god, masonry.

 

 

Introdução

A maçonaria é uma ordem que acolhe em seu seio homens de todas as nacionalidades, classes e de diversas vertentes religiosas, pretendendo-se uma ordem ecumênica sem que, contudo, a religiosidade mostre-se ausente em sua doutrina. Os diferentes ritos praticados possuem, cada um deles, seu nível de religiosidade, mas a figura da divindade está sempre presente em sua doutrina. Neste sentido, no intuito de evitar nomear a divindade de acordo com alguma tradição específica, excluindo outras tradições ou favorecendo uma religião específica, a ordem maçônica tem por costume nomear a divindade com o nome neutro de Grande Arquiteto do Universo, ampliando-se este conceito de forma que ele signifique um princípio criador, qualquer que seja ele, sendo de responsabilidade do maçom interpretá-lo de acordo com suas crenças religiosas.

É sabido que, historicamente, o início do estabelecimento da ordem maçônica tal qual conhecemos hoje, ou seja, a denominada maçonaria especulativa, deu-se em pleno século XVIII, período de efervescente surgimento de ideias no campo da filosofia e das ciências. Em meio a estas discussões, filósofos como Voltaire desenvolveram temas sobre metafísica e sobre a noção de Deus, discorrendo sobre as formas de provar sua existência e elencar alguns de seus atributos.

Tendo estes pontos em vista, gostaríamos de apresentar, neste artigo, uma análise comparativa entre a noção maçônica de Grande Arquiteto do Universo e a ideia de Deus apresentada nas obras de Voltaire. Não pretendemos aqui sugerir que ambos os conceitos se relacionam pelo simples fato de terem se desenvolvido em um mesmo período da história, o século XVIII. Tal perspectiva seria algo óbvio e infrutífero do ponto de vista filosófico. Ao contrário, nosso intuito será mostrar, amparando-se em textos de Voltaire e de autores maçônicos, que as bases metafísicas de ambos os conceitos são muito próximas, de forma que podemos afirmar que a filosofia francesa do iluminismo apresenta-se como um campo teórico com conceitos intercambiáveis em relação àqueles da maçonaria, sobretudo no que diz respeito a elementos metafísicos.

 

O princípio criador na maçonaria: O Grande Arquiteto do Universo

 

Apesar de ter se estabelecido como maçonaria especulativa e ter passado a trabalhar e a se organizar da forma que conhecemos hoje apenas no século XVIII, a história da maçonaria e de sua doutrina, bem como de seus símbolos e leis, remete-se a um passado anterior e encontra suas raízes em doutrinas e culturas mais antigas. Não queremos dizer com isso, como dizem alguns autores mais apaixonados e imaginativos, que a maçonaria já era pratica no antigo Egito ou até mesmo no início dos tempos. Longe disso, nos pautando apenas na história documentada, não parece ilícito afirmar que as influências que vieram a compor a simbologia e a doutrina maçônica são um apanhado de elementos de culturas e práticas anteriores ao século das luzes, período no qual a ordem foi formalizada. As próprias leis e regulamentos gerais que se aplicam de forma ampla e universal à ordem maçônica possuem uma origem antiga, apresentando-se em documentos fundamentais, como é o caso, apenas para citar um exemplo, do Poema Regius, datado de 1390 e publicado apenas em 1840 por Halliwell[1]. Os landmarks da ordem e seus Regulamentos mais primitivos também tem sua origem em uma época anterior a aquela da fundação da atual estrutura organizacional maçônica.

Apesar de antigos e de origem variada, todos estes documentos e regulamentos a partir dos quais a maçonaria se ampara ainda hoje para estabelecer suas normas e procedimentos apresentam elementos em comum e, de acordo com nosso atual interesse, o principal deles talvez seja a exigência da crença em um princípio criador.  A ideia de uma divindade apresenta-se como elemento basilar das normas e regulamentos da maçonaria e, ainda hoje, é tida como critério para seleção dos novos iniciados. Sem a crença em tal princípio não há a possibilidade de se fazer membro da ordem, regra esta presente em vários dos regulamentos maçônicos, sejam modernos ou antigos. Neste sentido, os landmarks[2] são claros nesta exigência.

Reunidos em várias listas criadas por diferentes autores, se nos remetermos aos Landmarks de Mackey, por exemplo, compilados em 1856, veremos que o 19º Landmark postula “A crença na existência de Deus como Grande Arquiteto do Universo” (CAMINO, 2005, p.49), ou seja, a crença neste princípio criador é colocada como elemento delimitador da maçonaria.

O próprio Mackey, ao comentar os regulamentos maçônicos em sua obra Os princípios das leis maçônicas nos apresenta algumas qualificações dos candidatos à iniciação e, dentre elas, encontra-se novamente a exigência na crença em um princípio criador. Nesta obra em questão, Mackey vincula esta norma ao que ele chama de “Antigos Encargos do Estado” (MACKEY, 2009, p.13), que postulam, dentre outras coisas, que o maçom não deve ser “’um estúpido ateu, nem um irreligioso libertino’. Uma negação da existência de um Arquiteto Supremo do Universo não pode, evidentemente, ser aplicada a um Maçom, e, nesse sentido, não há um marco mais certo, que o que exclui todos os ateus da Ordem” (Ibid. Id.). Tais Antigos Encargos, dos quais Mackey apresenta uma citação literal de alguns trechos, são, na verdade, as Constituições de James Anderson, que representam um documento ainda mais antigo no qual tais normas são apresentadas.

Tido como um dos promotores da reforma maçônica de 1717 (FIGUEIREDO, 1997, p.39) James Anderson é o responsável pela compilação, união e estabelecimento de um conjunto de leis a partir da análise e leitura de variados documentos antigos que faziam menção às leis maçônicas. Esta compilação resultou no que conhecemos por The Constitutions of the Free-Masons, passando por análise da loja a qual pertencia em 1723 e vindo à público em 1734. Nesta edição podemos ler uma lista do que o autor chama de Charges of Free-Masons, ou seja, os Antigos Encargos aos quais Mackey se refere em seus Princípios das Leis Maçônicas, que comentamos acima. Dentre estes encargos, o primeiro deles versa sobre a religião e Deus. É exatamente deste ponto que Mackey retira a ideia de que o maçom não poderá ser um “estúpido ateu”. (ANDERSON, 1734, p.48).

Até este ponto nos esforçamos em apresentar os fundamentos maçônicos da exigência da crença em um princípio criador, exigência esta que, quando não cumprida, representa um impedimento para a candidatura de um futuro iniciado bem como uma quebra de landmark. Ora, reconhecida esta exigência, como a ordem maçônica conceituará esta figura divina?

Uma definição de viés maçônico da divindade nos é apresentada por Figueiredo em seu Dicionário de Maçonaria. Vinculando-se a uma nomenclatura pitagórica o autor nos diz: “O imortal Pitágoras assim o definiu em linguagem bem maçônica: ‘Deus é a ordem e a harmonia, graças à qual existe e conserva-se o Universo. Deus é Uno; não está nunca, como pensam alguns, fora do mundo, senão no próprio mundo, e todo no mundo inteiro (…)” (FIGUEIREDO, 1997, p. 123). Da Camino, por sua vez, apresentará uma definição mais direta e simples da divindade: “É a força suprema, cósmica e universal, tendo n’Ele o princípio e o fim” (CAMINO, 2018, p. 141). Ora, ambas as definições apresentadas nos mostram algo em comum entre elas, a saber, a apresentação de Deus como um primeiro princípio ordenador (cósmico) e, portanto, inteligente, simples e uno.

Tal caracterização maçônica da figura divina, apresentada sobre o nome de Grande Arquiteto do Universo, merece algumas considerações. Tendo em vista o pressuposto ecumênico da ordem, ou seja, o fato de que ela abarca todas as crenças e religiões, não seria permitido que o princípio criador e ordenador da natureza fosse apresentado sobre alguma nomenclatura específica de alguma crença, como, por exemplo, Jeová, Vishnu, Brahma, etc. Além do nome, atributos específicos de determinada cultura ou crença não devem ser vinculados a esta conceituação de divindade proposta pela maçonaria, mas deve-se manter apenas o que há de mais básico e comum a toda e qualquer divindade, ou seja, a ideia de unidade[3], a ideia de ordem e a ideia de princípio básico, evitando-se mais uma vez a vinculação a uma entidade específica.

Como já adiantamos, conceituar o primeiro princípio deste modo permite à ordem maçônica manter seu caráter ecumênico e tolerante em relação a toda e qualquer religião ao mesmo tempo em que garante as normas estipuladas pelos landmarks e pelas antigas Constituições e Encargos. Tendo estabelecido estes pontos, gostaríamos de sugerir, a seguir, uma hipótese sobre a formação deste conceito, ou seja, do conceito de Grande Arquiteto do Universo. Nossa hipótese se baseará em uma comparação desta imagem divina de viés maçônico com aquela apresentada por Voltaire[4], um dos maiores, senão o principal, filósofo do século XVIII.

 

O princípio criador na obra de Voltaire: o Deus relojoeiro.

 

“Si dieu n’existait pas il faudrait l’inventer(VOLTAIRE, 1771, p.45)[5]. Emblemática frase de Voltaire que representa muito da importância que o conceito de divindade possui em sua obra. A necessidade de Deus se coloca, pois Ele representará um pressuposto para o desenvolvimento de questões morais e éticas, além daquelas da metafísica.

François-Marie Arouet, mais conhecido como Voltaire foi, sem dúvida, a mais emblemática figura do iluminismo. Iniciado maçom aos 84 anos, em 7 de abril de 1778, apesar das referências à ordem serem quase inexistentes em seus textos, o pesquisador que transita entre os dois assuntos, maçonaria e o pensamento de Voltaire, não deixará de notar muitas semelhanças e diálogos entre os dois campos de pesquisa. Neste artigo nos focaremos apenas no âmbito metafísico desta relação, ou seja, gostaríamos de apresentar nas linhas que se seguem, a forma pela qual Voltaire apresenta o conceito de Deus, como ele prova Sua existência e elenca Seus atributos.

Em primeiro lugar, devemos salientar que o método de investigação proposto por Voltaire representa uma ideia bem específica de procedimento filosófico. Grande opositor das filosofias de sistema, como a de Descartes, autor do século anterior, Voltaire lançará mão de um procedimento que inverte o caminho proposto por Descartes. O que isso quer dizer? Ora, a filosofia cartesiana representada pelas suas Meditações Metafísicas realizam um caminho dedutivo, ou seja, um procedimento quase geométrico. Partindo de princípios gerais abstratos[6], Descartes constrói uma cadeia dedutiva através da qual chegará a resultados gerais, enquanto que Voltaire fará o contrário: sob a tutela de Locke, o grande nome do empirismo inglês, Voltaire se baseará na análise dos fatos particulares para chegar a princípios gerais[7]. Neste procedimento analítico, Voltaire terá como guia sempre o procedimento empirista, ou seja, ao invés de se basear em elementos abstratos seu ponto de partida será sempre a experiência.

Estabelecido o método que, aliás, não é algo exclusivo de Voltaire, mas sim um movimento geral da filosofia francesa do século XVIII[8], ferrenha crítica do racionalismo do século anterior, devemos notar como o conceito de Deus se desenvolve. A princípio, este não é um conceito inato, ou presente na mente de todos os homens e, apesar de certa, é uma ideia que deverá ser provada. Encontraremos, portanto, duas formas de provar a existência de Deus segundo Voltaire, serão elas a) a prova da ordem e dos fins e b) a prova da cadeia de criação.

Sobre a primeira prova, Voltaire nos dirá:

 

“A mais natural e mais perfeita (prova) para as capacidades comuns é a de considerar não somente a ordem que existe no universo, mas também o fim com que cada coisa parece relacionar-se. Muitos grossos livros foram compostos centrados nessa única ideia, e todos os calhamaços juntos contêm apenas este argumento: quando vejo um relógio cujo ponteiro marca as horas, concluo que um ser inteligente arranjou as molas dessa máquina para que o ponteiro marcasse as horas..“. (VOLTAIRE, 1973, p.69)

 

Esta prova é chamada de mais natural, pois é derivada diretamente da observação do mundo e da natureza, o que é exemplificado através da analogia do relógio, exemplo muito corrente na época em que Voltaire escreveu estas linhas. Qualquer composto organizado de forma a atingir um determinado fim me levará a crer que tal composto foi assim arranjado de forma voluntária por alguma inteligência. No caso do exemplo acima, este composto é um relógio, objeto organizado de forma a marcar as horas, mas, segundo Voltaire, podemos encontrar este mesmo tipo de ordem e finalidades na natureza. No verbete “Fim, Causas Finais” do Dicionário Filosófico, Voltaire explicitará qual é o tipo de finalidade à qual ele aqui se refere. Não se trata de afirmar, como é o caso daqueles que possuem “um amor extremo pelas causas finais” (VOLTAIRE, 1973 b, p.197), que os narizes foram feitos para sustentar óculos ou que os bichos da seda tenham sido criados para que se possa ter tecidos, mas, ao contrário, o que Voltaire entende por finalidades é considerar uma invariabilidade de efeitos sempre que determinadas causas são dadas, ou seja, “Quando os efeitos são invariavelmente os mesmos, em qualquer lugar e em qualquer tempo, quando esses efeitos uniformes são independentes dos seres aos quais pertencem, nessa caso há, visivelmente uma causa final” (Ibid. Id.). Exemplos clássicos deste tipo de finalidades às quais Voltaire se refere são as leis da natureza, invariáveis, matematicamente expressas e constantes. Outro exemplo pode ser dado pelo funcionamento de nossos órgãos: um coração sempre servirá para bombear sangue, de forma invariável. De modo geral, o que devemos reter desta prova é que tudo o que se mostra ordenado na natureza e apresentando um determinado fim, que é sempre o mesmo para cada coisa, deverá necessariamente ser fruto de uma inteligência ordenadora, ou seja, para Voltaire a ordem das coisas naturais não pode jamais ser fruto do mero acaso, assim como não pode ter sido o acaso que combinou as peças de um relógio.

Voltando-nos agora para a segunda prova da existência de Deus, ou seja, a prova da cadeia de criação, veremos que este argumento é “mais metafísico, menos apto para a compreensão dos espíritos rudes e conduz a conhecimentos bem mais vastos” (VOLTAIRE, 1973 a, p.70).  Nesta segunda prova Voltaire levará em conta a hierarquia dos seres criados: sempre que vejo algum ser no mundo, devo considerar uma de duas possibilidades, a saber, ou ele existiu desde sempre ou foi criado por outro ser que, por sua vez, ou existiu desde sempre ou foi criado, etc. Deste modo teremos uma cadeia de criação e de relações de causa e efeito que regrediriam ao infinito. Ora, se não houvesse uma causa primeira, que fosse a causa fundante desta cadeia, não teríamos nada. Entretanto é certo que alguma coisa existe, de onde se seguirá que há uma causa primeira que não foi causada por nada (exigência necessária para que possamos sair da regressão ao infinito). Desta segunda prova devemos notar que esta causa primeira será Deus, independentemente do que ela seja.

Confrontando estas duas provas veremos que existem elementos em comum entre elas. Como já dissemos, sendo um partidário do empirismo inglês, Voltaire partirá sempre da observação do mundo para construir suas provas e nunca de um elemento a priori. Podemos notar, também, que estas provas não apenas indicam a possibilidade da existência de Deus, mas nos fornecerão mais alguns elementos sobre as características divinas. Isso quer dizer que, não podendo pautar-se em elementos a priori ou meramente ideais, Voltaire deverá se basear nestas duas provas e nos dados fornecidos por elas para que se possa construir um discurso mais completo sobre a divindade, de modo que todo atributo divino que o autor lançar mão deverá ser extraído destes dois argumentos expostos acima.

Da prova da ordem e dos fins podemos considerar que Deus é inteligente, visto que uma inteligência é necessária para que a ordem se dê, não podendo tal ordem ser fruto do acaso, entretanto,

 

“só posso concluir desse único argumento que é provável que um ser inteligente e superior tenha preparado e modelado a matéria com habilidade, mas não posso concluir apenas disso que tal ser tenha feito a matéria com nada e que seja infinito em todos os sentidos.” (Ibid. Id.)

 

 

Isso quer dizer que da ordem segue-se apenas a inteligência divina. Qual outro elemento ela nos daria? Bondade[9]? Eternidade? Para Voltaire, este primeiro argumento é o mais limitado e não nos fornecerá mais atributos de Deus além da inteligência. Por outro lado, o segundo argumento a favor da existência divina, apesar de ser mais complexo, será aquele do qual poderemos extrair mais consequências. Visto que Deus deve ser a causa primeira, podemos afirmar que ele é eterno, uma vez que não pode ter sido criado por nada. Sendo eterno e nada havendo antes dele, pode-se afirmar que Deus é livre, visto que não havia nada além de Sua vontade que possa tê-Lo determinado. Além da liberdade e da eternidade, Voltaire também aceitará que Deus é um ser extremamente poderoso, visto que o mundo se mostra como uma criação muito mais complexa do que a mais complexa criação humana.

Após este percurso, passando pelas duas provas que garantem a existência de Deus aos olhos de Voltaire, pudemos estabelecer uma divindade livre, inteligente, eterna e poderosa. Note-se que nada nestas provas nos indicam a bondade de Deus. Esta será uma característica que fará com que a divindade voltairiana seja destoante em relação àquelas das religiões tradicionais, como a cristã ou a judaica, por exemplo. Considerar que Deus seja justo, bom ou mal, é algo que não podemos assumir pela via racional da metafísica através da qual estamos caminhando e acompanhado o autor até aqui, ou seja, tudo que se pode falar de Deus é que ele age segundo a razão.[10]. Tais características da análise e apresentação da figura divina serão elementos essenciais e formativos do teísmo de Voltaire.

 

Conclusão: uma análise comparativa

 

Ao colocarmos lado a lado a figura do Grande Arquiteto do Universo proposta pelos autores maçônicos e a figura do Deus relojoeiro proposta por Voltaire veremos grandes semelhanças. Ambos os conceitos são apresentados como portadores de elementos mínimos em suas formulações: livre, eterno, poderoso e inteligente em Voltaire, inteligente, uno, ativo e criador das coisas na concepção maçônica. Estes dois conjuntos de atributos não são excludentes, se enquadram e podem ser considerados intercambiáveis nas duas conceituações da divindade. Se é criador, é inteligente e ativo, se é uno, é a primeira causa incausada, que é eterna e livre. Ora, as semelhanças entre as duas abordagens nos parece patente.

Simples conceituações de Deus, a definição maçônica e da Voltaire tem uma mesma razão de ser: a exclusão da vinculação de Deus a uma doutrina específica. Se para a maçonaria tal exclusão é necessária para que se mantenha a ideia de tolerância religiosa e de ecumenismo na ordem, para Voltaire, ao conceituarmos Deus da forma proposta por ele, também evitamos a mistura entre Deus e religião. Neste sentido, a doutrina teísta sugerida pelo autor será pautada apenas na razão e na análise da natureza e não nos dogmas arbitrários das religiões tradicionais, o que nos leva a afirmar que o Grande Arquiteto do Universo pode ter esta mesma origem, a saber, a razão e não dogmas específicos.

Apesar de próximas e semelhantes, não nos parece, entretanto, correto afirmar que a imagem de Deus proposta pela maçonaria seja tomada diretamente da obra de Voltaire, uma vez que tal concepção encontra-se em textos e autores anteriores, como é o caso da referência feita a Pitágoras, por exemplo. O que gostaríamos de notar, a título de conclusão, é apenas que a doutrina maçônica comunga com o pensamento iluminista muito mais do que o momento histórico: as bases racionais sobre as quais um de seus principais conceitos – Deus –  é construído são muito próximas e semelhantes.

 

 

Notas

[1] Cf. da Camino, 2018 p.315 (Verbete “Poema Regius”). O poema pode ser lido em seu inteiro teor em http://joseroberto735.blogspot.com/2013/07/o-poema-regius.html,

[2] Deve-se entender pelo termo landmark, termo em inglês que significa literalmente “fronteira”, “marca na terra”, o conjunto de normas básicas da maçonaria que possuem, dentre outras normas, aquela que postula sua inalteração. Os landmarks representam as “fronteiras” da ordem, ou seja, as regras que delimitam o que é e o que não é maçonaria.

[3] Por mais que existam crenças politeístas, as quais não são excluídas do grupo de crenças aceitas pela maçonaria, sempre existirá uma entidade que será reconhecida como a suprema, da qual as outras entidades são subordinadas.

[4] Nossa escolha por Voltaire vai para além do fato de ser um dos mais conhecidos pensadores da época. Ele representa a própria personificação da figura do filósofo iluminista, ou seja, ele próprio é o modelo de uma personagem específica deste período que tem por papel o desenvolvimento e propagação de ideias no campo da política, ética, metafísica e no campo social. (BACZKO, 1997 p.27). Sua obra também representa um critério que justifica nossa escolha: uma das mais extensas dentre todos os autores da época, escrevendo por mais de 40 anos ininterruptos, Voltaire lida com temas que dialogam com todos os campos da filosofia, sendo a discussão sobre Deus uma das principais e fundamentais em relação ao conjunto do pensamento do autor, de modo que “Devemos examinar o que é a faculdade de pensar nessas diferentes espécies de homens, como lhes vêm as ideias, se têm uma alma distinta do corpo, se essa alma é eterna, se é livre, se tem virtudes e vícios, etc. Entretanto, a maioria dessas noções dependem da existência ou da não-existência de um Deus. É preciso, creio, começar sondando o abismo desse grande princípio” (VOLTAIRE, 1973 p.69 – Grifo nosso).

[5] Se Deus não existisse, seria preciso inventá-lo.

[6] O cógito é um bom exemplo deste tipo de princípio.

[7] Sobre a oposição entre Descartes e Locke e a preferência de Voltaire por este ao invés daquele, ver as Cartas Inglesas, sobretudo a décima terceira e a décima quarta carta.

[8] Ver, por exemplo, CASSIRER, A filosofia do Iluminismo 1994: “Em vez de se fechar nos limites de um edifício doutrinal definitivo, em vez de restringir-se à tarefa de deduzir verdades da cadeia de axiomas fixados de uma vez por todas, a filosofia deve tomar livremente o seu impulso e assumir em seu movimento imanente a forma fundamental da realidade, forma de toda existência, tanto natural quanto espiritual.” (CASSIRER, 1994, prefácio)

[9] É importante notar neste ponto que para Voltaire não há vinculação entre bondade e ordem. Exemplo disso nos é dado de forma cômica no Cândido, quando o personagem Pangloss descreve toda a ordenação perfeita da sífilis que ele contraiu, ordem está que se estende desde sua amante até Colombo. Cf. Cândido ou o otimismo.

[10] Gostaríamos de frisar que este é um ponto sobre o qual Voltaire mudará de opinião com o passar dos anos. Neste artigo estamos nos focando nos textos da década de 1730, entretanto, na década de 1760 o autor lançará mão de uma conceituação da divindade muito distinta da que estamos aqui analisando. Sobre esta mudança ver Il faut prendre um parti e Dieu: reponse au systeme de la nature.

 

Referências bibliográficas

 

ANDERSON, J. The Constitutions of the Free-Masons: an online electronic edition. Lincoln: University of Nebraska, 1734. Disponível em
http://digitalcommons.unl.edu/libraryscience/25/?utm_source=digitalcommons.unl.edu%2Flibraryscience%2F25&utm_medium=PDF&utm_campaign=PDFCoverPages

BACZKO, B. Job, mon ami: Promesses du bonheur et fatalité du mal. Paris: Gallimar, 1997.

CAMINO, R. da. Dicionário maçônico. São Paulo: Madras Editora, 2018.

CAMINO, R. da. Introdução à maçonaria: Doutrina, história e filosofia. São Paulo: Madras Editora, 2005.

CASSIRER, E. . A Filosofia do Iluminismo. 2ª ed. Campinas: Unicamp, 1994.

DESCARTES, R. Meditações Metafísicas. 3ª ed. São Paulo: Abril Cultural, Col. Os Pensadores, 1983.

FIGUEIREDO, J. G. de. Dicionário de Maçonaria. São Paulo: Editora Pensamento, 1997.

Poema Regius. Versão traduzida on line disponível em: http://joseroberto735.blogspot.com/2013/07/o-poema-regius.html. Acesso em: 23 de janeiro de 2019.

MACKEY, A. G. Os princípios das leis maçônicas. Volume II. São Paulo: Universo dos Livros.

VOLTAIRE, Epitre au auteur du poeme Les trois imposteures, in a Epîtres, satires, contes, odes, et pièces fugitives du poète philosophe, dont plusieurs n’ont point encor paru: enrichies de notes curieuses et interessantes, F. Grasset, 1771. Disponível em https://books.google.co.uk/books/about/Ep%C3%AEtres_satires_contes_odes_et_pi%C3%A8ces.html?id=o8I-AAAAcAAJ. Acesso em: 23 de janeiro de 2019.

VOLTAIRE. Cândido ou O Otimismo in Contos. São Paulo: Abril Cultural, 1980.

VOLTAIRE. Cartas Inglesas. São Paulo: Abril Cultural, col. Os Pensadores, 1973 c.

VOLTAIRE. Dicionário filosófico. São Paulo: Abril Cultural, col. Os Pensadores, 1973 b.

VOLTAIRE. Dieu. Réponse au Système de la Nature in Derniers Écrits sur Dieu. Paris: GF Flammarion, 2006 a.

VOLTAIRE. Il Faut Prendre un Parti, ou Le Pricipe d’Action in Derniers Écrits sur Dieu. Paris: GF Flammarion, 2006 b.

VOLTAIRE. Tratado de metafísica. São Paulo: Abril Cultural, col. Os Pensadores, 1973 a.

 

*** ¹ João Carlos Lourenço Caputo é Mestre e Doutorando em filosofia pela Universidade Federal do Paraná. Possui como
principais interesses ética e metafísica no século XVIII, em especial na obra de Voltaire. Possui magistério pelo CEFAM
SP. É membro do grupo de estudos das luzes da UFPR.

%d blogueiros gostam disto: