Bibliot3ca FERNANDO PESSOA

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Como combater o racismo?

 

Tradução J. Filardo

por Henri Pena-Ruiz

Entre as questões vivas da atualidade figura a do racismo. Desde muito tempo, o uso da noção de raça para diferenciar grupos humanos foi desqualificado pela ciência. No entanto, o uso do termo “racismo” está proliferando. A ponto de confundir seu significado, em usos controversos, ou seja, inadmissíveis. Por exemplo, a rejeição de uma religião é rotulada de racismo, enquanto apenas a rejeição de pessoas ou povos por causa de sua religião pode ser qualificada como tal. A islamofobia e a catolicofobia não são formas de racismo. Bem como a Ateufobia. Devemos, portanto, fazer um balanço sobre o conceito de racismo, tanto por uma questão de lucidez quanto para dar à luta contra o racismo toda a sua eficácia. A persistência do racismo em vários países, incluindo a França, encoraja-nos a ir além da mera condenação moral, a fim de fazer uma refutação fundamentada da ideologia subjacente. Ao longo do caminho, será necessário pensar sobre a relação entre racismo e etnocentrismo, racismo e xenofobia, explicando os meios de combater a ideologia racista e os atos que a traduzem.

A noção de raça. Uma noção real, mas desviada

A noção de raça não tem nada de anódina. Ela permite classificar os seres vivos, colocando-os em categorias que os diferenciam radicalmente uns dos outros. Relevante para animais, ela não o é para seres humanos. No entanto, ela foi aplicada a eles, levando a distinguir várias raças humanas (3 ou 4, dependendo do caso). É importante fazer um balanço desta questão antes de qualquer reflexão sobre o racismo.

O mundo animal nos oferece a imagem de diferenças essenciais e constitutivas entre os diferentes tipos de animais. Um cachorro e um boi são de raças diferentes. Raças canina e bovina. Isso significa que suas respectivas heranças genéticas são claramente diferenciadas e explicam suas características físicas. No grego antigo, a palavra genos, que deu geração, abrange a ideia de uma natureza original, uma espécie de substância que se desenvolve espontaneamente, comum ao mesmo conjunto de indivíduos. Num sentido próximo, a palavra raça poderia vir do italiano razza, que deriva do latim ratio seu sentido muito particular de fórmula genética que preside o desenvolvimento de um certo tipo de ser vivo.

Tomemos agora como um novo ponto de partida a reflexão sobre o status das diferenças que aparentemente distinguem os grupos humanos. Eles permitem distinguir diferentes raças humanas? Não, porque essas diferenças não são essenciais, e não podem e não devem nos fazer esquecer a natureza comum de todos os seres humanos. Os genes que determinam a cor da pele, por exemplo, são muito poucos em número. Branco, preto, amarelo e vermelho formam uma única espécie humana.

Filosofia: da verdade do exterior e a do interior

Para o mundo humano, a diversidade de tipos observáveis ​​não implica qualquer diferença essencial. Sobre os homens, Leibniz distinguia a “verdade de dentro” e a “verdade de fora”. A primeira unifica todos os seres humanos, a segunda diferencia os grupos, mas sobre critérios externos, não essenciais. “[…] então havia um viajante que acreditava que os negros, os chineses e finalmente os americanos não eram da mesma raça entre eles nem com os povos que se assemelham a nós. Mas como sabemos o interior essencial do homem, isto é, a razão, que habita no mesmo homem e é encontrada em todos os homens … não temos razão para julgar que ela existe entre os homens, de acordo com a verdade interior, uma diferença essencial específica, em vez de estar entre o homem e a besta. (1) Um racionalista convicto, Leibniz faz da razão um atributo universal de todos os seres humanos e, ao mesmo tempo, descarta o que os diferencia externamente, desqualificando de passagem a afirmação da existência de várias raças humanas. O homem é homo sapiens, o ser de razão. O ser humano, como tal, é o produto de uma evolução, mas é também a fonte inaugural de uma história, entendida como uma cultura em movimento. As duas coisas são bem distintas. Por um lado, a evolução animal, estudada por Darwin, ocorre por um conjunto de mutações e seleções das variantes mais em fase com as restrições do meio ambiente (biótopo). As raças animais são ali claramente especificadas, sem poder agir de outra maneira senão de acordo com seu instinto, um padrão inato de comportamento, regulado por um genótipo invariável pelo menos entre duas mutações. Por outro lado, a história humana, cuja evolução animal é precisamente a pré-história, é realizada com seres dotados de consciência e razão, que condicionam seu poder de iniciativa e fazem acontecer a cultura. Este é um processo de transformação da natureza pelo trabalho que a cultiva com a preocupação de cuidar dela (em latim, colere que deu cultus). Na origem da cultura, há o homo sapiens, que se faz homo faber (fabricante de ferramentas), homo loquax (animal falante) e homo politicus (animal que vive na e pela cidade, comunidade política chamada polis). É compreensível que essa observação simples ponha em jogo uma reflexão antropológica capaz de definir a humanidade do homem e de alcançar sua unidade, sem negar a diversidade das aparências, mas mantendo-se lúcida sobre seu real significado.

A unidade indivisível da humanidade.

A cor da pele, a forma do nariz ou do crânio, a textura do cabelo, por exemplo, são variantes que envolvem diferenças genéticas, mas que não afetam a natureza comum de todos os seres humanos. Muitos cientistas vieram a parar de falar sobre raça para homens, por medo de acreditar em uma noção que dividiria a humanidade em entidades essencialmente diferentes. Após a Segunda Guerra Mundial e dos horrores do racismo nazista, essa desconfiança bem legítima cresceu. A preocupação epistemológica substitui aqui a precaução ética e política. Richard Antelme, deportado para um campo nazista, chama seu livro principal de “A Espécie Humana” (2) para enfatizar a unidade da humanidade contra o diferencial racista.

A ciência genética se baseia na noção de “genes comuns e exclusivos para um grupo de indivíduos” na tentativa de definir precisamente características comuns a um conjunto vivo. Se os genes condicionam a aparência do ser, a diferença visível entre dois seres não significa que seus genes sejam tão diferentes. Assim, a cor da pele é determinada por três genes envolvidos na produção de melanina. Mas todos os humanos produzem melanina (exceto no caso do albinismo). E todos os seres humanos têm variantes mais ou menos marcadas desses três genes, chamadas alelos. A análise de DNA mostra que a espécie humana tem pouco mais de 98,6% de seu genoma em comum com os chimpanzés e que ela compartilha o mesmo patrimônio genético em 99,8%. A diferença genética entre homem e macaco é devida a apenas algumas dezenas de genes. Quanto às aparentes diferenças anatômicas dentro da espécie humana, elas são devidas a um número ainda menor de genes. Portanto, é praticamente impossível isolar genes típicos, que diferenciariam claramente as populações. A ciência genética confirma Leibniz.

Mas antes de cheguemos a essa conquista do espírito crítico e do conhecimento científico, as diferenças observáveis ​​entre os homens têm sido compreendidas por analogia com aquelas que distinguem as raças de animais. Em resumo, a realidade empírica imediata tem sido bastante enganadora ao sugerir a existência de várias raças humanas essencialmente diferentes. De modo estranhamente anacrônico, a Constituição da quinta República Francesa usa a noção de raça, mesmo que seja para negar que ela possa participar da afirmação de desigualdades. “A França é uma república indivisível, secular, democrática e social. Ela garante a igualdade perante a lei de todos os cidadãos sem distinção de origem, raça ou religião. Fica-se espantado com uma sobrevivência tão anacrônica e tão pouco representativa do universalismo.

O que se entende exatamente por racismo?

Os fatos: uma história triste

A história humana nos legou lembranças tristes.

Em nome das raças, definidas biologicamente e, portanto, de natureza intangível, a espécie humana tem sido frequentemente dividida em grupos distintos, com propriedades biológicas supostamente diferentes. Esses grupos foram hierarquizados dentro da estrutura de uma lógica de dominação, como a da escravidão dos pretos (chamados negros) na América e nas Antilhas. Foi assim que surgiu o Código Negro (Colbert, 1685).

As piras da Inquisição e a expulsão dos judeus da Espanha testemunharam a mudança do antijudaísmo religioso para um antissemitismo que visava ao povo judeu, como tal, da noção religiosa de “povo deicida”. A rejeição de uma religião não é em si racista, mas se transforma em racismo assim que muda seu registro e envolve um homem ou um grupo de homens, como tal. Mas, neste caso, outro nome é necessário, claramente diferente do primeiro: o antissemitismo é diferente do anti-judaísmo. Na Península Ibérica, o tema do sangue puro (limpieza de sangre), isto é, não misturado, tornou claramente possível tal conversão. O acesso a funções civis e até eclesiásticas na Espanha foi por muito tempo condicionado por reconstruções de árvores genealógicas destinadas a provar que os candidatos não tinham ascendentes “neo-conversos” judaicos ou mouros, portanto, um novo convertido ao catolicismo. e suspeito de continuar a praticar sua antiga religião. O que é mais obviamente biológico do que o status de sangue nessa história? O tema racista da pureza do sangue é absurdo, já que o sangue humano, mais do que a raça, não se diferencia biologicamente de um grupo para outro. De passagem, devemos enfatizar a violência do vocabulário: “marrano” vem de marrano, que significa porco. O tema da pureza do sangue, líquido vital essencial, encontra-se na ideologia nobiliária do “sangue nobre”, diferente de “sangue comum”, uma clássica distinção do Antigo Regime. Uma visão similar na Alemanha, onde o tema da pureza racial, lançado pelos nazistas, visava os judeus. As leis de Nuremberg, em particular, afirmavam a necessidade de preservar a pureza do sangue alemão (14 de novembro de 1935).

O racismo também pode assumir outras formas. A desconstrução da ideologia racista deve possibilitar a eliminação das propostas racistas, atos de linguagem performativos que, em si mesmos, são golpes desferidos e, como tais, ofensas. Ela deve fazer o mesmo com as várias formas de discriminação, mais difíceis de encontrar. Discriminação em moradia, na contratação, na progressão na carreira, etc. O obstáculo, que é invisível, muitas vezes assume a forma de um “teto de vidro” onde a pessoa se fere sem ser capaz de identificá-lo de maneira tangível, uma vez que os mecanismos discriminatórios são tortuosos.

Lugar para trabalhar a definição, com a questão de saber se existe apenas um tipo de racismo ou múltiplos. Em 1988, em suas entrevistas com Didier Eribon, Claude Lévi-Strauss definia o racismo como “uma doutrina precisa que pode ser resumida em quatro pontos”. (3) Os critérios enunciados abrangem tanto a ideologia racista quanto suas consequências práticas em termos de atitudes e ações: “Um: existe uma correlação entre o patrimônio genético, por um lado, as habilidades intelectuais e disposições morais de outro. Dois: esse patrimônio, do qual dependem essas aptidões e disposições, é comum a todos os membros de certos grupos humanos. Três: esses agrupamentos chamados “raças” podem ser hierarquizados de acordo com a qualidade de seu patrimônio genético. Quatro: essas diferenças permitem que as chamadas “raças” superiores comandem, explorem outras, eventualmente as destruam. (4) Aqui nós notamos os quatro processos combinados de racismo. Este núcleo de significado se aplica tanto ao racismo de exploração quanto ao racismo de extermínio, do qual o nazismo forneceu um exemplo terrível.

Existem diferentes tipos de racismo?

O racismo envolve necessariamente o uso da biologia para fundamentar um diferencial desigual? Em princípio sim, já que a noção de raça só faz sentido biológico. Agora, a invalidação pela ciência da ideia de que existiriam várias raças humanas deu frutos, desqualificando qualquer recurso à noção de raça pelos homens e seu uso para fundamentar uma hierarquia. O abandono da invocação ilícita de raça implica no desaparecimento do racismo? Surge então a questão de que existem outras atitudes de rejeição, muitas vezes relacionadas ao racismo. Para não prejulgar a resposta, podemos identificá-las provisoriamente como ideologias e atitudes discriminatórias.

Um primeiro exemplo de discriminação é a visão de que é impossível a coexistência de seres humanos que são muito diferentes para se entender. A heterofobia, como um medo da alteridade (heteros: outro, no grego antigo), leva à mixofobia, medo e rejeição à mistura. Quando a rejeição da mistura se refere à diferença de constituição física, ela entra no caso do racismo. Quando ela se refere à diferença de cultura, sem expectativas biológicas, é esse ainda o caso? As opiniões divergem de acordo com a extensão dada ao escopo da noção de racismo. Tal rejeição pode ser direcionada para usos e modos de vida considerados estranhos, pelo contraste que eles formam com o que é familiar e rejeitados como tal. É então uma atitude etnocêntrica que está em jogo, no sentido que Claude Levi Strauss dá a este termo. O etnocentrismo é para o grupo humano o que o egocentrismo é para o indivíduo. Da mesma forma que o egocentrismo faz da pessoa um centro exclusivo de interesse, pelo etnocentrismo, tende-se a considerar o ambiente familiar como o centro de referência para todas as coisas. O etnocentrismo testemunha uma psicologia de apego sem distância a um modo de ser familiar, acompanhado pela rejeição de toda a alteridade. No entanto, o etnocentrismo ainda não é confundido com o racismo, o que implica um ato insultuoso ou discriminatório. Ele sim é o motor, o que não é nada. E Claude Lévi-Strauss é justificado em fazer uma refutação adequada em Race et Histoire (UNESCO 1952). Este preconceito em forma de reflexo de identidade pode levar ao racismo.

Existe um neorracismo, de fonte cultural?

Próximo do racismo, um neorracismo é construído em nome da diferença culturalEle muitas vezes assumiu o lugar do racismo biológico, sem, no entanto, fazê-lo desaparecer. Uma combinação dos dois foi criada, correlacionando considerações fisiológicas e uma insistência na desigualdade dos níveis de desenvolvimento, até mesmo em usos condenados em nome de normas relativas. Este assim chamado racismo culturalista ainda está presente nas ideologias de extrema-direita contemporâneas, onde muitas vezes toma a forma de xenofobia, uma forma geral de rejeição de tudo o que é estrangeiro.

Em “Race and History”, Claude Levi Strauss diz que, se os grupos humanos são distintos, é apenas devido às suas respectivas culturas, e não à sua natureza biológica. E, ao contrário do racismo tradicional, ele acredita que deve apelar a um respeito pela diversidade cultural, embora admita que, por meio de seus contatos mútuos, as culturas podem avançar para o reconhecimento de princípios comuns. Mas em “Race and Culture” (5), Claude Levi Strauss aponta a contradição que pode existir entre duas posições. Por um lado, regozijar-se com a diversidade cultural e até encoraja-la em nome do direito de cada grupo étnico ou grupo humano organizado de cultivar suas próprias tradições. De outro lado, rejeitar dentro de uma nação o apego de certas pessoas às particularidades tradicionais que, segundo eles, fundamentam a nação tal como a concebem. O pensador acrescenta que é preciso entender, sem necessariamente aprovar, o etnocentrismo dos tradicionalistas, que combina a rejeição de outras práticas culturais com a adesão às práticas culturais familiares. Essa dupla disposição que mistura emocional e ideológico, está, sem dúvida, em jogo em todos os povos que pretendem afirmar suas particularidades e, assim, cultivar uma identidade coletiva livre de qualquer empreendimento colonialista.

Nesse espírito, o etnocentrismo nacionalista é realizado no nível de cada país para uma figura particular de respeito pela diversidade cultural em escala internacional. Mas nas chamadas sociedades multiculturais, resultantes, em especial, das migrações que se tornaram comuns em nosso mundo, esse etnocentrismo corre o risco de se tornar um comunitarismo vetor de exclusão. “Fiquemos entre nós”. Contradição: a exaltação da diversidade cultural em nível internacional e sua rejeição como componente na construção de uma identidade nacional e cultural. O relativismo cultural não é mais apropriado quando se trata de viver no seio de uma mesma nação … O domínio do “nós” sobre a organização comum é concebido então como a rejeição do “eles”, supostos apoiadores de uma subversão considerada mortal para o entre-si.

Eles e nós

Na realidade, é a essência do “nós”, portanto da nação e da cultura, que deve então ser redefinida, deixando de incluir necessariamente os particularismos retrógrados. A nação francesa, por exemplo, não é mais uma identidade coletiva, como tentou ser “a filha mais velha da Igreja” por práticas opressivas. Desde a Revolução Francesa, ela se tornou uma comunidade de direito que funda a soberania popular, dando-se as suas leis. Leis que não mais fundamentam uma religião e usos costumeiros, mas direitos humanos de alcance universal, emancipatórios para todos. Somente a parte das tradições compatíveis com a emancipação humana, individual e coletiva, pode ser preservada.

Aí reside o mínimo de universalismo exigido para que diferentes populações possam coexistir sem conflito dentro da mesma república, algo comum a todos. É isso que os opositores do secularismo não querem entender. Isso não nega absolutamente a diversidade de culturas, cujas particularidades ela respeita, desde que não violem os direitos humanos, que incluem a igualdade de gênero, o respeito à integridade física e a liberdade de escolha do modo de realização pessoal. Lá onde o estruturalismo como método apreende cada cultura como uma totalidade, sem qualquer disjunção possível dos elementos que a tornam um sistema, é apropriado admitir a possibilidade de criticar um uso sem, no entanto, rejeitar toda a cultura em questão. Isso significa dizer que, a partir de agora, pertencer a uma cultura não pode ser vivido no modo da mera submissão, mas no da distância crítica.

A República secular rejeita tanto o etnocentrismo comunitário produtor de exclusão e o relativismo que consagra todas as práticas costumeiras, mesmo que prejudiquem a humanidade. Ela torna assim possível um modo de afirmação da diversidade compatível com a unidade do quadro comum. Devemos respeitar todas as culturas? Tal pergunta implica tomar cada cultura como um todo, sob o risco de sancionar práticas culturais injustas. Daí a próxima pergunta, mais aberta: tudo é respeitável nas culturas? A resposta esperada passa por um exame crítico que procura distinguir o que é aceitável do que não o é, não de outra cultura particular, mas fundando-se nos direitos humanos universais.

Natureza e cultura: não se enganar com a causalidade

“Ao apresentar a evidência da impossibilidade de definir as raças (…), a genética arruinou a justificação das nações que buscavam impor sua dominação” Albert Jacquard (6). E Claude Levi Strauss poderia enfatizar que as disposições físicas que seriam a causa das realidades culturais são, em muitos casos, a consequência. Por exemplo, o tamanho médio dos homens na Europa aumentou 10 cm em 100 anos. Como vimos, o racismo em nome da diferença biológica é uma aberração, porque essa diferença não afeta a natureza comum de todos os homens. Convém lembrar-se incessantemente, assim como fazia o próprio Darwin. Suas duas principais obras criticam a aplicação ideológica da noção de raça à humanidade. Daí sua refutação antecipada do “sociobiologismo” de Wilson, que fataliza a hierarquia social alegando explicar o status social com dados fisiológicos. De onde, igualmente, sua rejeição ao “darwinismo social” que projeta nas sociedades humanas a teoria da luta pela vida e da seleção natural, bem como o modelo físico da lei do mais forte, ignorando o fato de que as solidariedades pode compensar ou mitigar as desigualdades, assim como a medicina permite à criança prematura sobreviver. Como defensor da fraternidade universal, Darwin enfatizava o papel da educação e da solidariedade. Assim, mesmo além de seu trabalho, ele fazia uma refutação decisiva de todo o racismo e ideologia que afirmavam apoiar-se na natureza para justificar a desigualdade social. A identificação de preconceitos racistas ou xenófobos pode levar à definição das abordagens éticas e intelectuais necessárias para liderar a batalha de ideias (ver quadro).

Dez ações críticas contra o racismo

  1. Parar de atribuir à natureza o que é de origem social. O fracasso escolar que muitas vezes (nem sempre) afeta os filhos de imigrantes é muitas vezes atribuível a condições de vida e não a um QI inscrito nos genes.
  2. Reconstruir o diagnóstico e a interpretação do significado de certas desigualdades no desenvolvimento econômico ou jurídico. O nível de desenvolvimento industrial não indica, de modo algum, uma inferioridade congênita de certos povos, mas todo um modo de vida coletivo orientado diferentemente.
  3. Detectar sob as honráveis ​​intenções apresentadas como pretextos de comportamentos interessados: praticar a filosofia da suspeita, para impedir qualquer ingenuidade.A desconstrução crítica deve, de fato, voltar aos interesses particulares ocultos sob pretextos humanitários ou civilizatórios, sob o paternalismo e os preconceitos evolucionistas que pretendem classificar os povos em uma corrida imaginária pela civilização. A colonização, por exemplo, foi antes de mais nada um empreendimento suculento completado pelo uso de mão-de-obra barata e pela acumulação inescrupulosa de matérias-primas encontradas nas colônias.
  4. Lembrar a história próxima e distante para destacar os erros do racismo e da xenofobia. A “missão civilizadora” do Ocidente cristão começou com expedições bárbaras, acompanhadas de massacres e opressão, como no caso do General Bugeaud na Argélia entre 1844 e 1848.
  5. Destacar o papel desempenhado pela teoria racista nas lógicas de exploração, de dominação, de opressão e de extermínio. A conquista colonial é agora bem conhecida em seus motivos reais. Toma-se uma terra, subjuga-se o seu povo e exploram-se um e outro sem nenhuma outra preocupação além do lucro e de suas pseudo justificativas. Quanto ao racismo nazista, pode estar relacionado à mudança do anti-judaísmo religioso para o antissemitismo.
  6. Desconstruir o racismo, praticando a descentralização crítica.Montaigne, Montesquieu, Rousseau e Levi Strauss, entre outros, recomendavam para superar a ilusão etnocêntrica por um “olhar distante”: ” cada um chama barbárie de que não é seu uso; como real, parece que não temos outra vista de verdade e da razão do que o exemplo e a ideia das opiniões e costumes do país onde estamos. »(7)
  7. Refutar o atual esquema racista. Não podemos postular nem a existência de várias raças humanas, nem hierarquizar abstratamente os grupos humanos assim designados. De fato, uma hierarquização implica uma comparação, que só pode ser baseada em critérios de comparação a serem definidos. Comparemos a quantidade de bens produzidos, o destino reservado aos idosos ou o grau de solidariedade na organização da distribuição da riqueza?
  8. Evitar confundir a crítica de uma religião, de uma prática costumeira ou de uma tradição com um ato racista. Nunca esquecer que o racismo tem como alvo pessoas ou povos como tais, mas não doutrinas ou crenças. Falar de um “racismo de Estado” sobre os princípios seculares da República é aberrante.
  9. Evocar duas figuras exemplares da luta contra o racismo pela emancipação dos povos. O Pastor Martin Luther King que fez mais que sonhar com um mundo sem segregação ou discriminação (“Eu tenho um sonho”). Ele lutou na América contra todas as formas de racismo que pesavam sobre os negros e foi assassinado. Nelson Mandela, que lutou contra o apartheid na África do Sul. Presidente após 27 anos de prisão, ele foi capaz de afirmar seu humanismo universalista. Ele se recusou a promover a emancipação dos negros por vingança contra os brancos. Seu universalismo rejeitou a generalização abusiva que transforma a luta contra o racismo de alguns brancos em uma luta contra todos os brancos. É também nesse sentido que a justiça nada tem a ver com vingança. Daí a necessidade de rejeitar o ressentimento do racismo de reação e sua legitimação compassiva.
  10. Colocar em jogo o humanismo universalistapor referência às declarações de direitos humanos, como a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 26 de agosto de 1789 e a Declaração Universal dos Direitos Humanos. É claro que, para começar, devemos rejeitar o falso universalismo que constitui a idealização de uma sociedade particular. O ideal da emancipação universal implica uma generosidade que consiste em atribuir a todo ser humano a liberdade de se redefinir, em vez de cravá-lo ao seu passado.

Equipar a consciência cidadã com os principais pontos de referência

De acordo com Montesquieu, a virtude cívica é a força da República Democrática, enquanto o medo é a força do despotismo. O racismo é uma ideologia de medo irracional, que se transforma em rejeição mortal. Segundo Condorcet, a educação pública baseia o civismo conjugado ao espírito crítico, conseguindo o compartilhamento da cultura. Para se livrar para sempre do racismo e da xenofobia, ousemos encarar de frente o desafio da cultura. Isso não é suficiente para erradicá-los, desde que a injustiça social e a angústia que ela gera produzam as tristes paixões do ódio pelo outro e a busca de compensações ilusórias. Mas esta aposta é necessária para instalar gradualmente uma consciência cidadã melhor armada para voltar às causas reais e livrar-se de reflexos perigosos.

Notas:

1 : Leibniz, Nouveaux Essais sur l’entendement humain LIVRE III § 36 Garnier-Flammarion p. 273

2 : Gallimard, collection « Tel ».

3 : Claude Lévi-Strauss et Didier Eribon, De près et de loin, p. 208. Editions Odile Jacob Paris 1989.

4 : Ibidem

5 : « Le regard éloigné », premier chapitre, Plon 1983

6 : Albert Jacquard, Les hommes et leurs gènes Éd. Flammarion, 1994

7 : Montaigne, Essais, l. I, chap. XXXI, « Des Cannibales »

 

Publicado em FM Magazine no. 62

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