Bibliot3ca FERNANDO PESSOA

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Por que “1984” foi escrito

Tradução J. Filardo
George-Orwell-001
George Orwell – (25 /06/1903 – 21 / 01 / 1950)

Em resposta a um certo Noel Willmett, que havia perguntado “se o totalitarismo, adoração do líder, etc. estão realmente em ascensão” dado “que não estão aparentemente crescendo na [Inglaterra] e nos EUA”, George Orwell escreveu essa carta em 1944, três anos antes de escrever sua obra prima Orwell’s 1984: (clique aqui para baixar o livro)

Devo dizer que eu acredito, ou tenho receio, que tomando o mundo como um todo, estas coisas estão aumentando. Hitler, sem dúvida, logo desaparecerá, mas apenas à custa do fortalecimento de (a) Stalin, (b) dos milionários anglo-americanos e (c) de todos os tipos de pequenos ditadores do tipo de Gaulle. Todos os movimentos nacionais em todos os lugares, até mesmo aqueles que são originários da resistência à dominação alemã, parece assumir formas não democráticas; agrupar-se em torno de algum ditador, um fuhrer sobre-humano (Hitler, Stalin, Salazar, Franco, Gandhi, De Valera são todos exemplos diversos) e adotar a teoria de que o fim justifica os meios. Em todos os lugares o movimento mundial parece ser na direção de economias centralizadas que podem ser feitas “funcionar” no sentido econômico, mas que não são democraticamente organizadas e que tendem a estabelecer um sistema de castas. Com isso vão os horrores do nacionalismo emocional e uma tendência a não acreditar na existência da verdade objetiva, porque todos os fatos têm de se encaixar nas palavras e profecias de algum führer infalível. A história, em um certo sentido já deixou de existir, isto é, não existe tal coisa como uma história de nosso tempo, que possa ser universalmente aceita, e as ciências exatas estão ameaçadas de extinção, tão logo cesse a necessidade militar de manter as pessoas no nível adequado. Hitler pode dizer que os judeus começaram a guerra, e se ele sobreviver, isso se tornará a história oficial. Ele não pode dizer que dois mais dois são cinco, porque, para efeitos de, digamos, balística eles devem somar quatro. Mas se o tipo de mundo de que eu tenho medo chegar, um mundo de dois ou três grandes super-estados incapazes de conquistar uns aos outros, dois e dois podem somar cinco, se assim o fuhrer desejar. Esta, até onde posso ver, é a direção em que estamos realmente nos movendo, embora, naturalmente, o processo seja reversível.

 Quanto à imunidade comparativa da Grã-Bretanha e dos EUA. Não importando o que os pacifistas etc. possam dizer, nós ainda não nos tornamos totalitários e isso é um sintoma muito esperançoso. Eu acredito muito profundamente, conforme expliquei em meu livro  O Leão e o Unicórnio, no povo inglês e em sua capacidade de centralizar sua economia sem destruir a liberdade ao fazê-lo. Mas é preciso lembrar que a Grã-Bretanha e os EUA não foram realmente experimentados, eles não conheceram a derrota ou sofrimento severo, e existem alguns sintomas ruins para equilibrar os bons. Para começar, há a indiferença geral em relação à decadência da democracia. Você percebe, por exemplo, que ninguém na Inglaterra com menos de 26 anos tem um voto e que, tanto quanto se pode ver, a grande massa de pessoas de idade que não dão a mínima para isso? Em segundo lugar, há o fato de que os intelectuais são mais totalitários na aparência do que as pessoas comuns. No conjunto, os intelectuais ingleses se opuseram a Hitler, mas apenas ao preço de aceitar Stalin.  A maioria deles está perfeitamente pronta para métodos ditatoriais, polícia secreta, falsificação sistemática da história etc., desde que eles sintam que isso está do “nosso” lado. Na verdade, a afirmação de que não temos um movimento fascista na Inglaterra significa, em grande medida que os jovens, neste momento, procuram por seu fuhrer em outros lugares. Não se pode ter certeza de que isso não vá mudar, nem se pode ter certeza de que as pessoas comuns não pensarão daqui a dez anos, como os intelectuais o fazem agora. Eu espero  eles não façam isso, eu ainda confio eles não vão fazê-lo, mas se assim for, será à custa de uma luta. Se alguém simplesmente proclama que tudo é para o melhor e não aponta para os sintomas sinistros, está-se meramente ajudando a trazer o totalitarismo para mais perto.

 Você também pergunta, se eu acho que a tendência mundial é na direção do fascismo, por que eu apoio a guerra. É uma escolha entre dois males – Eu acho que quase toda guerra é isso. Eu conheço o suficiente do imperialismo britânico para não gostar dela, mas eu a apoiaria contra o nazismo ou o imperialismo japonês, como o mal menor. Da mesma forma que eu apoiaria a União Soviética contra a Alemanha, porque eu acho que a URSS não pode escapar completamente de seu passado, e mantém um número suficiente de ideias originais da Revolução para torná-la um fenômeno mais esperançoso que a Alemanha nazista. Eu penso, e pensei desde o início da guerra, em 1936 ou por aí, que a nossa causa é a melhor, mas temos de continuar a torná-la melhor, o que envolve crítica constante.

 Com os melhores cumprimentos,
George Orwell

1944

Publicado originalmente no bloque Open Culture

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