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Secularismo, uma bandeira da Maçonaria

O LIVRO BRANCO DO SECULARISMO

Irmão Xavier Pasquini (edição original: Novembro de 2001)

Tradução José Antonio de Souza Filardo

Introdução

O secularismo é um conceito relativamente novo, já que na sua forma actual, ele é institucionalizado na França desde 1905. Ele ainda é muitas vezes mal compreendido fora de nossas fronteiras, a tal ponto que a palavra, intraduzível na maioria dos outros idiomas, é muitas vezes usada “em francês no texto.”.

Por isso, pareceu apropriado, se não for para dar-lhe uma definição definitiva, expressar o esboço, explica-la, avaliar as origens, as implicações modernas e futuras.

O secularismo está baseado em dois pilares: a ética (a liberdade absoluta de consciência) e o estado civil (separação entre igreja e estado).

Ele estabelece a diferença absoluta entre dois mundos distintos: o interesse público ea convicção individual.

Além disso, tornou-se necessário reconhecer “a existência de uma mistura cultural real”, que só pode aumentar com a integração à Europa de nações cada vez mais diversificadas. A questão é saber como podemos gerenciar essa diversidade, mantendo nossa concepção republicana de universalidade.

Finalmente, a questão da identidade, o medo de perder a sua alma e sua própria identidade, alimentar todas as formas de fundamentalismo (étnico, cultural e principalmente religioso) que vêm com o secularismo, não uma escolha social e a condição da paz social, mas como um risco adicional de dissolução dessa identidade.

O secularismo é uma regra de vida em uma sociedade democrática. Ele exige que sejam dados aos homens, sem distinção de classe, origem, religião, os meios de eles serem eles mesmos, livre de seus compromissos, responsáveis por seu desenvolvimento e mestres de seus próprios destinos.

I. A História – Especificidade francesa

A reivindicação secular desenvolveu-se essencialmente onde uma igreja, neste caso a Igreja Católica Romana, queria impor um regime totalitário no sentido estrito, isto é, cobrindo todos os aspectos da sociedade civil, política, econômica, de fato, onde a religião tornou-se poder.

Confrontado com esse poder, manifestaram-se veleidades sucessivas de libertação às vezes políticas, às vezes espirituais ou ambas. Na Idade Média, é dentro da Igreja Católica que nascem esses movimentos logo qualificados como heréticos e rapidamente sufocados. Dos primeiros reformadores aos filósofos do século XVIII, a idéia evoluiu, porém, mantendo-se associada a um duplo movimento de emancipação: – o do pensamento livre gradualmente libertando das crenças obrigatórias; – os de uma sociedade que reivindicava liberdades políticas.

Em resposta, a Igreja Católica, chefiada por um papado apegado ao poder temporal, que não tem reconhecimento documental de sua fundação, em vez disso cada vez mais fechado em uma recusa total, uma negação de todo o movimento emancipador. Na França, a aliança mais que milenar entre o “o Trono e o Altar” tornou inevitável a contestação religiosa, à partir do momento em que se desenvolvia a contestação política.

Neste estado de espírito, os filósofos do século XVIII, inspirados pelo Iluminismo, lideram um duplo ataque ideológico contra as duas formas de absolutismo real e religioso. A reivindicação de liberdade de pensamento e a referência à Razão radicalizam o movimento perfeitamente ilustrado por Condorcet.

No século XIX, a formação gradual da idéia republicana, sua âncora na plataforma das liberdades revolucionárias, do progresso social, da libertação dos espíritos de todas as formas de obscurantismo, trouxe o toque final a esta evolução.

A separação entre Igreja e Estado poderia ser o símbolo da realização de uma etapa essencial se ela não tivesse sido constantemente desafiada, direta ou indiretamente pelos ataques de todos aqueles que continuam convencidos de que o homem é incapaz de assumir plenamente os efeitos da sua liberdade absoluta de consciência.

Se, na história de nosso país, todas as grandes batalhas pela liberdade e a justiça foram portadoras da exigência de secularismo, todos os períodos de reação viram, ao contrário o retorno de dominação religiosa. A ditatura de Vichy – cujas conseqüências, 50 anos depois, ainda não foram resolvidas – foi um dos mais recentes exemplos.

O Renascimento, a Reforma, a Revolução, a República: estas diferentes etapas da formação da idéia secular deram ao cidadão francês do século XX, um lugar especial na Europa em construção. O problema que se lhe coloca no momento é claro:

– ou ele renuncia a esta especificidade e, eventualmente, abandona o enorme progresso conseguido, talvez mais depressa do que outros, ao longo dos séculos passados;

– uu ele se convencde de que a idéia secular, longe de ser um freio à integração europeia também pode ser uma enorme alavanca para acelerar a marcha em direção à unidade.

II. Os valores seculares

O humanismo secular repousa sobre o princípio da liberdade absoluta de consciência.

Liberdade de espírito: a emancipação em relação a todos os dogmas; o direito de acreditar ou não acreditar em Deus; a autonomia de pensamento em relação às restrições de religiosas, políticas, econômicas; liberação dos estilos de vida em relação aos tabus, às idéias dominantes e às regras dogmáticas.

O secularismo visa libertar as crianças e adultos de tudo o que aliena e perverte o pensamento, particularmente as crenças atávicas, os preconceitos, as idéias pré-concebidas, os dogmas, as ideologias opressivas, as pressões de ordem cultural, econômica, social, política ou religiosa.

O secularismo visa desenvolver nos seres humanos, no quadro de uma formação intelectual, moral e cívica permanente, o pensamento crítico e um sentido de solidariedade e fraternidade.

A liberdade de expressão é o corolário da liberdade absoluta de consciência. Ela é o direito e a possibilidade material de dizer, escrever e divulgar o pensamento individual ou coletivo. As novas tecnologias de comunicação tornam esta exigência ainda mais vital. E, neste domínio da informação e da comunicação mais que em outros lugares que a vigilância deve ser particular diante dos enormes meio de manipulação e perversão do pensamento.

A moral secular que se segue é simples. Ela repousa sobre os princípios de tolerância e respeito mútuos pelos outros e por si mesmo. O bem é tudo o que liberta, tudo o que dá independência; o mal é tudo o que escraviza ou avilta. O secularismo, neste contexto, forneceu os meios para que o homem adquirisse uma total lucidez e plena responsabilidade pelos seus pensamentos e atos.

Com base nas necessidades da vida em sociedade e a promoção da liberdade individual, ele é essencial na construção da harmonia social e no fortalecimento da cidadania democrática. Ele tende a instaurar, além das diferenças ideológicas, comunitárias ou nacionais, uma sociedade humana favorável ao florescimento de todos, uma sociedade de onde serão excluídos toda a exploração ou o condicionamento do homem pelo homem, todo o espírito de fanatismo, de ódio ou de violência.

Certamente, a tolerância é a consequência lógica dos valores anteriores, sem o qual a harmonia social é colocada em perigo. Mas, a tolerância só faz sentido se for recíproca, e ela terá sempre como limites a intolerância, a rejeição ao outro, o racismo e o totalitarismo.

A negação do racismo e da segregação em todas as suas formas é inseparável do ideal secular. A nova sociedade que queremos não pode ser a mera justaposição de comunidades que na melhor das hipóteses ignoram-se mutuamente, e na pior das hipóteses se exterminam. Nenhuma sociedade pacífica pode ser construída sobre a separação definitiva de grupos culturais, linguísticos, religiosos, sexistas ou outros. A passagem é fácil demais da separação à segregação, às rivalidades e conflitos. E isso, mesmo que a separação seja apresentada como uma necessidade vital para o desenvolvimento.

O caso ideal secular não pode, absolutamente, suportar a idéia de “desenvolvimento separado”, muitas vezes praticado em sociedades do tipo anglo-saxão. O próprio princípio da “discriminação positiva” não constitui em si uma solução para a libertação de um grupo. O único meio de desenvolvimento social é a integração diferente da assimilação é a participação de todos em uma comunidade de cidadãos livres e iguais em direitos e deveres. Os únicos grupos sociais aceitáveis repousam na escolha, a livre participação e a abertura.

A ética secular leva inevitavelmente à justiça social: igualdade de direitos e igualdade de oportunidades. A educação secular, as escolas, o direito à informação, a aprendozagem da crítica são as condições dessa igualdade.

III. As práticas seculares – um estatuto cívico e social

Além dos princípios, a laicidade é uma atitude cujo campo de aplicação abrange todos os aspectos da sociedade. O princípio deste estatuto cívido, jurídico, institucional, é simples. Ela repousa sobre a distinção clara para cada cidadão, entre uma esfera pública e uma esfera privada:

– a esfera privada, pessoal, a da liberdade absoluta de consciência, e onde se expressam as convicções filosóficas, metafísicas, as crenças, as práticas religiosas e, eventualmente, os modos de vida comunitária.

-A esfera pública, cidadã, aquela onde o cidadão evolui socialmente, economicamente, politicamente, juridicamente. As regras aí são claramente definidas e baseadas nos Direitos Humanos. Nenhum grupo, nenhum partido, nenhuma seita, nenhuma igreja pode pretender penetrar, e muito menos capturar em seu benefício o funcionamento da sociedade republicana assim definida.

A separação entre Igreja e Estado é a pedra angular da sociedade secular. Ela não deverá sofrer nem exceção, nem modulação ou modificação. Sua totalidade, sua integralidade são as condições de sua própria existência. Ela é a única maneira de permitir que todos possam acreditar ou não acreditar, liberando as próprias igrejas das lógicas de ligações convencionais com o Estado. Se as igrejas querem existir, que os fiéis lhes forneçam os meios, a religião sendo uma questão de convicção pessoal.

Se o Estado garante a total liberdade de culto como expressão e a difusão do pensamento, ele não favorece ninguém, nem qualquer comunidade, nem financeira nem politicamente. Além disso, não cabe ao Estado regulamentar as relações entre as igrejas, a partir do momento em que ele não reconhece qualquer uma delas. No âmbito geal de suas atribuições políticas, ele vela pelo exercício das liberdades individuais de todos, pela ordem pública e a paz social entre os cidadãos.

A partir do momento em que o Estado considera que a religião se tornou, definitivamente, um assunto privado, que ela não é susceptível de atrair a atenção a não ser na medida em que suas manifestações comprometam a ordem pública, logicamente as igrejas não podem reivindicar qualquer benefício, qualquer privilégios, qualquer tratamento especial. Elas podem, menos ainda, serem dotadas de status oficial fora da conformidade com o direito comum que regem a liberdade de associação. Enfim, a lei republicana não pode, portanto, reconhecer o crime de blasfêmia ou sacrilégio que acarretaria, inevitavelmente, na institucionalização da censura.

A primeira manifestação da natureza secular de um país é a independência do Estado e de todos os serviços públicos em relação às instituições ou as influências religiosas.

A secularização de status individuais, como os serviços considerados essenciais para o funcionamento da sociedade, foi um dos aspectos essenciais do exercício da liberdade e da igualdade de direitos:

– Nascimento, vida e morte são consideradas não mais unicamente em termos de religião ou participação comunitária, mas sob o da liberdade individual.

– Nota-se a igualdade de todos perante os serviços públicos. A eventual adesão de um grupo religioso, étnico, social … não pode ser levado em conta em relação ao acesso dos usuários. A menção oficial dessa participação deve ser considerada discriminatória. Está se tornando evidente que a própria noção de serviço público está intimamente relacionada à prática do secularismo.

– O direito civil é o único habilitado a organizar os domínios da vida cívica e social.

Representantes da República, eleitos ou funcionários respeitam, em contrapartida, o exercício das suas funções com absoluta neutralidade em relação às práticas individuais ou coletivas e observam um estrito dever de reserva.

-A escola secular e republicana, enfim, deve ser preservada contra toda e qualquer penetração econômica, religiosa ou ideológica, mesmo que disfarçada sob o chamado “cultural”. A escola não é o local de manifestação ou confronto de diferenças; ela é “um lugar onde são suspensas de comum acordo, as especificidades e as circunstâncias de fato”. A escola deve proibir todas as formas de proselitismo.

Tudo o que vimos acima não quer dizer que a República negue as participações em comunidades. Elas realmente existem e são respeitadas desde que não coloquem em causa os princípios da liberdade individual, da dignidade humana e da igualdade.

IV. O futuro – novos campos de aplicação

Em um mundo caracterizado pela mais profunda ruptura das estruturas econômicas, políticas, sociais e culturais que eram conhecidas há séculos, o secularismo aparece como a resposta a esta questão fundamental: o que fazer para remediar a preocupação, a ansiedade, a indiferença, o abandono da noção de responsabilidade, a violência?

Em uma sociedade cada vez mais multicultural, o secularismo pode ensinar os indivíduos a aprender, a cooperar, a encontrar um bom acordo e harmonizar suas diferenças. Já descrevemos os perigos do sectarismo. Vemos o nacionalismo se desenvolver novamente na Europa alimentados ódios religiosos e étnicos. O secularismo permanece como a única idéia que pode trazer condições para uma paz duradoura, particularmente na região dos Balcãs.

Ainda há muito a ser feito na própria União Europeia, onde raros são os países com dispositivos políticos e jurídicos que se aproximam do sistema secular francês ou que podem evoluir nessa direção. As lógicas concordatárias permanecem, em matéria de religião, largamente dominantes.

Alguns sinais, no entanto, nos levam a pensar que a evolução é possível: a mudança da lei sobre a nacionalidade na Alemanha, questões crescentes neste mesmo país sobre os impostos religiosos…

Na própria França, a ideia do secularismo está longe de ser universalmente aceita. Ela deve ainda ser defendida e ampliada: – A separação entre Igreja e Estado ainda sofre muitas restrições geográficas inadimissíveis (Alsácia-Mosela, Guiana Francesa, TOM).

– A intervenção cada vez mais freqüente do Judiciário para resolver problemas específicos relacionados com práticas comunitárias (o uso do véu islâmico nas escolas, por exemplo), é preocupante. Cabe à República definir as medidas de unidade e de fazer cumpri-las. A vida em sociedade não pode se resumir ao estabelecimento de uma jurisprudência e às relações intercomunitárias. Há um desvio comunitarista “à americana” extremamente grave que remete aos fundamentos de nossa sociedade republicana.

– O progresso da ciência deve poder ser livre de qualquer influência de grupos de pressão, particularmente religiosos. O interesse geral e o respeito pela pessoa humana devem ser os únicos limites deste progresso.

– A secularização do “estatuto do corpo” (amor e sexualidade, doença, morte) não está completa. A livre disposição de seu corpo, as modalidades sociais da vida de casais e famílias, as liberdades e garantias fundamentais das liberdades nesse contexto, os direitos e a dignidade das crianças, são igualmente campos de aplicação de uma secularização que é a única garantia da liberdade de espírito e de corpo.

– Na composição dos comitês de ética que são criados aqui e ali, é importante privilegiar a escolha dos membros com base na sua competência e não em suas convicções. O objetivo dessas comissões não é monitorar as condições necessárias e suficientes para o exercício da liberdade e do respeito pela dignidade humana, e sim tentar manter um equilíbrio sadio entre comunidades rivais?

– Enfim, a cultura e a criação artística, mas também a informação e a comunicação participam amplamente da formação das consciências que já não estão reservados à escola. Seriam convenientes também ali velas constantement, não só para que nenhum tabu religioso ou dogmático, mas também nenhuma pressão econômica ou ideológica possa impor qualquer limitação à liberdade, por exemplo, sufocando a vitalidade econômica das expressões minoritárias. É em nome do secularimso que é preciso denunciar o A.M.I (Acordo Multilateral de Investimento) ou seus derivados de todas as formas de pensamento único.

À guisa de conclusão

O secularismo não é um conceito ultrapassado, mas, ao contrário, é uma idéia de progresso, e múltiplos campos de aplicação abrem-se diante dele.

O secularismo tornou-se institucional. Ele pe uma estrutura jurídica, uma regra do jogo Suas regras se aplicam a toda a sociedade e não é o resultado evolutivo de contratos entre as comunidades ou grupos. Há, enfim, apenas um secularismo que não se sabe qualificar: ele não pode ser nem “novo”, nem “plural”.

O secularismo é um conceito que repousa sobre os princípios humanísticos forjados no curso da história. Ele é uma forte afirmação de sentido e valor a serviço da liberdade individual. Ele é a maior garantida da paz civil. Ele traz em si mesmo uma moral pessoal e uma ética social. Ele é ação e vontade, via de resistência; resistência à facilidade da renúncia, ao conforto do pensamento único.

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