Bibliot3ca FERNANDO PESSOA

E-Mail: revista.bibliot3ca@gmail.com – Bibliotecário- J. Filardo

Resenha do Mein Kampf de Adolf Hitler

Tradução José Filardo

Por George Orwell

Um sinal da velocidade com que os eventos estão se movendo é que a edição não expurgada de Mein Kampf de Hurst e Blackett publicada há apenas um ano seja editada a partir de um ângulo pró-Hitler. A intenção óbvia do prefácio e notas do tradutor é baixar o tom de ferocidade do livro e apresentar Hitler sob uma luz tão gentil quanto possível. Pois naquela data Hitler ainda era respeitável. Ele havia esmagado o movimento operário alemão, e para isso as classes proprietárias estavam dispostas a perdoar-lhe quase tudo. Tanto a Esquerda quanto a Direita concordaram com a ideia muito superficial de que o Nacional-Socialismo era apenas uma versão do Conservadorismo.

 Então, subitamente descobriu-se que afinal Hitler não era respeitável. Como resultado disso, a edição de Hurst e Blackett foi relançada em uma nova capa, explicando que todos os lucros seriam doados à Cruz Vermelha. No entanto, simplesmente com base em evidência interna do Mein Kampf, é difícil acreditar que qualquer mudança real ocorreu nos objetivos e opiniões de Hitler. Quando se comparam suas declarações de um ano ou mais atrás àquelas feitas quinze anos antes, uma coisa que impressiona é a rigidez de sua mente, a maneira em que sua visão de mundo não se desenvolve. É a visão fixa de um monomaníaco e não susceptíveis de ser muito afetada pelas manobras temporárias de política de poder. Provavelmente, na própria mente de Hitler, o Pacto Russo-Germânico representa nada mais que uma alteração de cronograma. O plano previsto no Mein Kampf era esmagar a Rússia em primeiro lugar, com a intenção implícita de esmagar a Inglaterra depois. Agora, como acabou ocorrendo, teve de lidar primeiro com a Inglaterra, porque a Rússia era a mais facilmente subornada das duas. Mas, a vez da Rússia chegará quando a Inglaterra estiver fora do baralho – o que, sem dúvida, é como Hitler a vê. Se isso vai acontecer dessa maneira é, naturalmente, uma questão diferente.

 Suponhamos que o programa de Hitler pudesse ser colocado em prática. O que ele prevê, dentro de cem anos, é um estado contínuo de 250 milhões de alemães com abundância de “espaço vital” (ou seja, estendendo-se até o Afeganistão ou por ali), um império sem cérebro horrível em que, essencialmente, nada jamais acontece, exceto o treinamento de jovens para a guerra e a criação infinita de carne fresca para canhão. Como pode ele ser capaz de levar essa visão monstruosa à frente? É fácil dizer que em uma fase de sua carreira, ele foi financiado pelos industriais pesados, que viam nele o homem que iria esmagar os socialistas e os comunistas. Eles não o teriam apoiado, no entanto, se ele já não tivesse traduzido em palavras um grande movimento. Mais uma vez, a situação na Alemanha, com seus sete milhões de desempregados, era obviamente favorável aos demagogos. Mas Hitler não poderia ter tido sucesso contra seus muitos rivais, se não tivesse sido pela atração de sua própria personalidade, que se pode sentir até mesmo na escrita desajeitada do Mein Kampf, e que é sem dúvida esmagadora quando se ouve seus discursos… O fato é que há alguma coisa profundamente atraente sobre ele. A pessoa sente novamente quando se vê as suas fotografias, e eu recomendo especialmente a fotografia no início da edição de Hurst e Blackett, que mostra Hitler em seus primeiros dias dos Camisas Marrons. É um rosto patética, canino, a face de um homem sofrendo sob injustiças intoleráveis. De uma forma um pouco mais viril, ela reproduz a expressão de inúmeras imagens de Cristo crucificado, e há pouca dúvida de que é assim que Hitler vê a si mesmo. A causa inicial e pessoal de suas queixas contra o universo só pode ser imaginada; mas de qualquer forma, a queixa está aqui. Ele é o mártir, a vítima, Prometeu acorrentado à rocha, o herói abnegado que luta sozinho contra o impossível. Se ele estivesse matando um rato, ele saberia como fazer parecer que fosse um dragão. Sente-se, como com Napoleão, que ele está lutando contra o destino, que ele não pode ganhar, e ainda assim que ele, de alguma forma, merece. A atração de tal pose é, naturalmente, enorme; metade dos filmes que se vê giram em torno de algum tema desse tipo.

Também, ele compreendeu a falsidade da atitude hedonista em relação à vida. Quase todo o pensamento ocidental desde a última guerra, certamente todo o pensamento “progressista” assumiu tacitamente que os seres humanos nada mais desejam além de facilidade, segurança, e ausência de dor. Em tal cosmovisão não há espaço, por exemplo, para o patriotismo e as virtudes militares. O socialista que encontra suas crianças brincando com soldados geralmente fica preocupado, mas ele nunca é capaz de pensar em um substituto para os soldadinhos de chumbo; os pacifistas de chumbo de alguma forma não o farão. Hitler, porque em sua própria mente sem alegria ele o sente com força excepcional, sabe que os seres humanos não desejam só conforto, segurança, horas curtas de trabalho, higiene, controle da natalidade e, em geral, bom senso; eles também, pelo menos de forma intermitente, querem luta e auto-sacrifício, para não mencionar tambores, bandeiras e desfiles de lealdade. Entretanto, eles podem ser como as teorias econômicas, fascismo e nazismo são psicologicamente muito mais sólidos que qualquer concepção hedonista da vida. O mesmo é provavelmente verdadeiro sobre a versão militarizada de socialismo de Stalin. Todos os três grandes ditadores reforçaram seu poder através da imposição de encargos intoleráveis sobre seus povos.

Enquanto o Socialismo, e até mesmo o capitalismo de uma forma mais relutante, dizia às pessoas “Eu lhes ofereço um bom tempo”, Hitler disse a eles “Eu ofereço a vocês a luta, o perigo e a morte” e, como resultado, uma nação inteira lançou-se aos seus pés. Talvez, mais tarde, eles enjoarão dele e se arrependerão, como no fim da última guerra. Depois de alguns anos de carnificina e fome “a maior felicidade da maioria” é um bom slogan, mas, neste momento, “Melhor um fim com horror que um horror sem fim” é um vencedor. Agora que estamos lutando contra o homem que o cunhou, não devemos subestimar seu apelo emocional.

(Março, 1940)