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Isaac Newton, o herege – Parte I

Isaac Newton, herege: as estratégias de um Nicodemita

STEPHEN D. SNOBELEN (*)

Tradução José Antonio de Souza Filardo

Havia um homem entre os fariseus, chamado Nicodemos, príncipe dos judeus: o mesmo foi ter com Jesus de noite
João 3: 1-2

Uma senhora perguntou ao famoso Lord Shaftesbury qual religião era a dele. Ele respondeu, a religião dos sábios. Ela perguntou, e qual seria ela? Ele respondeu, sábios nunca contam.
Diário do Visconde Percival (1730), i, 113

PARTE I

NEWTON COMO HEREGE

Isaac Newton era um herege. Mas, como Nicodemos, o discípulo secreto de Jesus, ele nunca fez uma declaração pública de sua fé privada – que os ortodoxos teriam considerado extremamente radical. Ele escondeu a sua fé tão bem que os estudiosos ainda estão desvendando suas crenças pessoais. (1) Seu antigo seguidor William Whiston atribuía sua política de silêncio ao simples medo humano e deve ter havido alguma verdade nisso. Todos os dias, como uma figura pública (Professor Lucasiano, Vigilante – depois Mestre – da Casa da Moeda, presidente da Royal Society) e como a figura de proa da filosofia natural britânica, Newton deve ter sentido a tensão do conformar-se exteriormente à Igreja Anglicana, enquanto interiormente negava grande parte da sua fé e prática. Ele estava restrito por leis de heresia, testes religiosos e a oposição formidável da opinião pública. Hereges eram vistos como religiosamente subversivos, socialmente perigosos e até mesmo moralmente degradados. Além disso, as posições que ele ocupava dependiam de manifestações públicas de ordem religiosa e social. Sir Isaac tinha muito a perder. Ainda assim, ele conhecia as injunções das escrituras contra esconder o talento sob a modéstia. Newton o crente, assim, foi confrontado com a necessidade de desenvolver um modus vivendi em que pudesse trabalhar dentro de estruturas legais e sociais, ao mesmo tempo em que cumpria o comando de brilhar em um mundo escuro. Este texto recupera e avalia suas estratégias para conciliar essas dinâmicas conflitantes e, ao fazê-lo, lançará luz tanto sobre a natureza da fé de Newton quanto sobre sua agenda para a filosofia natural.

Como este estudo tenta reconstruir os mundos privados e públicos de Newton, foi necessário fazer três coisas. Primeiro, eu exigi mais de manuscritos de Newton, expandindo a gama de questões teológicas normalmente consideradas e recontextualizando suas crenças contra o pano de fundo de teologias contemporâneas radicais. Eu também mostro que os ideais religiosos expressos em seus manuscritos, frequentemente coincidem com suas ações. Segundo, eu fiz uso cauteloso da tradição oral sobrevivente, narrativas pessoais escritas e evidências de boataria. Grande parte deste material é usada aqui pela primeira vez e seu valor em detalhar as crises religiosas e embaraços de Newton ficará evidente a seguir. Finalmente, empreguei uma sociologia de heresia como ferramenta explicativa para as ações de Newton. Tomadas em conjunto, essas dinâmicas ajudam a revelar por que Newton em público diferia tanto de Newton privadamente. Embora as vicissitudes do tempo e da natureza de tais relações tivessem tornaram a vida privada herética de Newton obscura e em grande medida invisível, a evidência apresentada neste artigo nos permitirá tirar a cortina um pouco mais sobre as conversaziones heterodoxas, redes clandestinas, manuscritos privados, escritos codificados e simulação ortodoxa que compunham as estratégias de um Nicodemita.

Enquanto Whiston era incrédulo a respeito de por que alguém com o conhecimento de Newton da verdadeira fé não a anunciaria ao mundo, os historiadores recentes têm sustentado que não é surpresa que Newton devesse se manter quieto em uma época intolerante. (2) Ao mesmo tempo, tanto os biógrafos de Whiston e de Newton concordam que a relutância deste último em pregar abertamente era o resultado de medo e preocupação com sua posição na sociedade. Embora eu esboce as restrições impostas a ele, quero argumentar que nenhuma dessas respostas ao dilema de Newton – nem a explicação comum dele – são adequados. Não é suficiente concluir que Newton calou-se e o fez porque era um herege vivendo em uma era de ortodoxia. Embora este período fosse ainda relativamente intolerante, e apesar de Newton tivesse amplos motivos para estar preocupado com a exposição, a liberdade estava aumentando e um número crescente de dissidentes estava criando maneiras de declarar com repercussões cada vez menos graves. Assim também Newton que, vou mostrar, não fazia segredo de sua heresia.

Este trabalho também tentará contestar duas construções enganadoras: o retrato de Newton como um proto-deísta, por um lado, e o abrandamento de sua heresia por outro.

Mostrarei que essas abordagens conflitantes têm raízes profundas que podem ser rastreadas até a época de Newton e são formadas pela ignorância ou supressão de elementos da prova. A primeira interpretação foi apresentada mais recentemente por Richard Westfall, (3) mas suas características centrais não são novas. Parte do problema com esta abordagem é que Newton era frequentemente caracterizado pela forma como suas ideias foram usadas mais tarde e adaptado pelo Iluminismo. Visto através das lentes de Voltaire, Newton parece muito com um filósofo. Mas se Newton era um homem do Iluminismo, ele também era um fundamentalista, pois aqueles com esta disposição também representavam o grande homem como um dos seus. (4) A segunda estratégia foi motivada primeiramente por um desejo de salvar o santo britânico da mancha da heterodoxia numa época em que tal propaganda era de grande importância. Ela é sintetizada logo no início por William Stukeley que, respondendo às afirmações de que Newton era um herege, afirmou que “a Igreja da Inglaterra o declara cabalmente como seu filho, na fé e na prática”. (5) Pode ser possível desculpar Stukeley, a quem nunca foi dado acesso direto à heresia de Newton. Depois de ver os manuscritos incriminatórios em meados do século XIX, no entanto, David Brewster escolheu descrer de seus olhos e argumentar que, na verdade Newton foi um trinitário – só que de um tipo diferente. (6) Esta tendência perdeu apoio mais tarde com a disponibilidade dos trabalhos teológicos de Newton. No entanto, Thomas Pfizenmaier recentemente tentou ressuscitar a hipótese de Brewster. ( 7)

Um elemento importante da minha tarefa será a de ir além desses equívocos comuns, censuras e construções esperançosas. Porque a evidência é convincente e uma vez que ela ajuda a explicar o desejo de Newton de esconder suas crenças, quero mover-me em uma terceira direção. Newton era, de fato, um herege maior do que se pensava, mas de nenhuma maneira um livre-pensador, deísta, ou anti-escrituras. A heresia doutrinária e litúrgica não caminha necessariamente lado a lado com esses outros radicalismos. Aqui é importante que nos libertemos da retórica ainda difundida do passado ortodoxo. Dissidentes viram suas próprias ideias como verdadeiras e positivamente corretivas do erro ortodoxa, não tão desviantes ou subversivas. (8) Ao mesmo tempo, eles também se afastaram conscientemente daqueles que eles viam como incrédulos. Este processo, portanto, envolverá a definição do “meio-caminho teológico de Newton”. Isto é, Newton era um herege – mas apenas para os ortodoxos; ele era um dissidente teológico – mas ele também era um crente devotado. Para ele, a maioria estava desviada e só ele e a classe de fiéis remanescente se atinham à verdade original. A fim de fazer sentido da fé e ações de Newton, devemos entrar neste mundo alternativo. Não podemos entender o meio-caminho de Newton, a menos que nos movamos além do lugar-comum contemporâneo ortodoxo que o antitrinitarianismo era uma ladeira escorregadia para a descrença. Meio século é muito tempo para se agarrar a uma ladeira escorregadia.

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NOTAS:

(*) Departamento de História e Filosofia da Ciência, Universidade de Cambridge, Free School Lane, Cambridge CB2 3RH.

Pelo aconselhamento, assistência e incentivo, agradeço a Jean-François Baillon, John Brooke, Geoffrey Cantor, John Culp, Jim Dybikowski, Patricia Fara, Jim Force, Michael Hunter, Rob Iliffe, Scott Mandelbrote, Lawrence Principe, Jim Secord, Simon Schaffer, Larry Stewart e Paul Wood. A pesquisa foi possível graças a uma Bolsa de doutorado em Ciências Sociais e Humanas do Conselho de Pesquisa do Canadá, uma bolsa do Queen Elizabeth II British Columbia Centennial e do British Council. Eu agradeço à Jewish National and University Library, Jerusalém, a Provost e Fellows of King’s College, Cambridge, Uppsala Universitetsbiblioteket e a William Andrews Clark Memorial Library, Los Angeles pela permissão de citar manuscritos de seus arquivos.

(1) Comparar a alegação ligeiramente diferente em Richard Westfall, Never at Rest: uma Biografia de Isaac Newton, Cambridge, 1980, 319.

(2) Westfall, op. cit. (1), 653; Gale Christianson, In the Presence of the Creator: Isaac Newton and his Times, New York, 1984, 255; Frank Manuel, The Religion of Isaac Newton, Oxford, 1974, 62-3.

(3) R. Westfall, `Isaac Newton’s Theologiae Gentilis origines philosophicae’, in The Secular Mind (ed. W. W. Wagar), New York, 1982, 15-34. James E. Force opôs-se à apresentação de Westfall de Newton como um proto deísta em `Newton e deísmo ‘, em Ciência e Religião – Wissenschaft und Religion (ed. Anne Baumer e Manfred Buttner), Bochum, 1989, 120-32.

(4) R.H. Popkin, `Newton and the origins of fundamentalism ‘, em Scientific Enterprise (ed. Edna Ullmann-Margalit), Dordrecht, 1992, 241-59; idem, `Newton e o fundamentalismo, II”, em Ensaios sobre o contexto, Natureza e Influência da Teologia de Isaac Newton (ed. J. E. Force and R. H. Popkin), Dordrecht, 1990, 165-80.

(5) William Stukeley, Memoirs of Sir Isaac Newton’s Life, London, 1936, 71.

(6) D. Brewster, Memoirs of the Life, Writings, and Discoveries of Sir Isaac Newton, 2 vols., Edinburgh, 1855, ii, 339-41.

(7) Thomas Pfizenmaier, `Was Isaac Newton an Arian?’, JHI (1997), 58, 57-80.

(8) Cf. Maurice Wiles, Archetypal Heresy: Arianism Through the Centuries, Oxford, 1996. Ver também o estudo sofisticado de Scott Mandelbrote sobre o sentido de dever religioso de Newton, que também trata Newton como um Não-conformista: “`A duty of the greatest moment”: Isaac Newton and the writing of biblical criticism’, BJHS (1993), 26, 281-302.

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