Bibliot3ca FERNANDO PESSOA

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Cultura Religiosa & Cultura Política: conflitos políticos e religiosos entre Maçons, Jansenistas e o movimento de Reação Católica em Pernambuco, Brasil, entre 1910 e 1930

Claudio Marcio Coelho ***

 

 

 Introdução

A relevância deste artigo justifica-se pela pesquisa no âmbito da história social da cultura e da teoria social brasileira, especialmente, ao discutirmos como a cultura religiosa incide na cultura política, provocando efeitos de poder e de controle na produção do conhecimento. O estudo da relação entre religião e política, na conjuntura analisada, contribui para o aprofundamento da pesquisa histórica sobre os embates entre maçons, jansenistas e jesuítas no auge do movimento de Reação Católica no Nordeste brasileiro. Porquanto foram realizados estudos históricos relevantes acerca desta questão no Sul e no Sudeste do Brasil, no entanto, carecemos de pesquisas sobre o Norte e o Nordeste. Neste sentido, escolhemos Pernambuco, pois a Reação Católica Pernambucana foi uma das mais atuantes e aguerridas na realização de atividades e projetos de recatolização e de reação contra maçons, protestantes, comunistas, judeus e espíritas: os então, nomeados inimigos da Igreja Romana. Outro aspecto importante diz respeito à atuação coercitiva da Igreja junto às famílias católicas tradicionais na região.

Para a realização de nossa pesquisa utilizamos perspectivas e modelos de construção do conhecimento histórico pertinentes ao tema: a história da leitura e o paradigma indiciário. Segundo Pallares-Burke (2005), a história da leitura é considerada “uma forma relativamente nova de história cultural, praticada por estudiosos como Roger Chartier e Robert Darnton”. A autora considera que:

O objetivo de tais estudos é recapitular a experiência de leitura num dado tempo e lugar, distinguindo modos diferentes de leitura – rápida ou vagarosa, extensiva ou intensiva, privada ou pública – bem como a diversidade de reações de indivíduos diferentes ou gerações diferentes de leitores do mesmo texto (Pallares-Burke, 2005, p. 33).

Apesar da contribuição de Pallares-Burke, para o debate sobre as possibilidades e os limites da história da leitura, a autora preteriu os estudos de Carlo Ginzburg e suas inovações no campo da história cultural. Ademais, a obra O queijo e os vermes (1987 [1976]), de Ginzburg, constitui um marco na história cultural, pois o autor aplicou a história da leitura na pesquisa sobre a cosmologia livresca, o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela inquisição, na Itália do século XVI.

Os estudos de Ginzburg realizam aproximações surpreendentes com o paradigma indiciário: um modelo epistemológico que “emergiu silenciosamente no âmbito das ciências humanas” por volta do final do século XIX (1989, p. 143). Para o autor, a “análise deste paradigma, amplamente operante de fato, ainda que não teorizado explicitamente, talvez possa ajudar a sair dos incômodos da contraposição entre ‘racionalismo’ e ‘irracionalismo’” (1989, p. 143). Ginzburg identificou nos estudos de Morelli (médico/especialista em arte pictórica), Conan Doyle (médico/ literato) e Freud (médico/psicanalista) traços do mesmo método investigativo: a semiótica médica. Não por acaso, estes pensadores consagraram-se pela criação de modelos investigativos e interpretativos voltados ao estudo dos pormenores reveladores: sinais em Morelli, indícios ou pistas em Doyle e sintomas em Freud. Embora não sejam sinônimos, estes termos condensam o princípio da investigação e da inferência. Segundo Ginzburg (1989, p. 152), o “que caracteriza esse saber é a capacidade de, a partir de dados aparentemente negligenciáveis, remontar a uma realidade complexa não experimentável diretamente”. De mais a mais, o conhecimento histórico assemelha-se ao saber médico, pois também é indireto, conjectural e indiciário. Cerqueira Filho e Neder (1997) argumentam que no romance policial do médico Conan Doyle e na interpretação psicanalítica do médico Freud,

(…) encontramos a proposta de um método heurístico centrado nos dados marginais, nos detalhes e nos resíduos, que manifestados involuntariamente são considerados reveladores precisamente num movimento incessante de reincidência e repetição que, apesar de tudo, se nos escapa e foge como na composição musical polifônica da fuga. Evidentemente, o método indiciário, como as Ciências Humanas, de uma forma geral, vive o dilema rigor científico (às vezes com pouca substância histórica) versus a assunção de um estatuto científico frágil (mas, em alguns casos, com resultados relevantes) (Cerqueira Filho & Neder, 1997, p. 21).

Neder considera, a partir de Carlo Ginzburg e Giovanni Levi, que o método indiciário “implica, ainda, numa prática interpretativa situada no âmbito da micro história” (2016, p. 37). Neder ressalta que a microanálise não diz respeito às micro dimensões do objeto investigado, mas à redução da escala de observação do mesmo, constituindo, desta forma, numa prática de pesquisa fundamentada na análise microscópica e no estudo intensivo dos documentos. Logo, pode ser aplicada a qualquer tema, “independentemente do lugar ou dimensões do objeto analisado”, no entanto, é preciso evitar conclusões precipitadas, pois

(…) a micro história procura não subordinar o conhecimento dos elementos individuais a uma generalização mais ampla; ao contrário, destaca as particularidades, e acentua os detalhes contingentes nas vidas e nos acontecimentos individuais que contém, dentro de si, a totalidade histórica. Não rejeita, entretanto, todas as formas de abstração, pois fatos aparentemente insignificantes podem servir para revelar um fenômeno mais geral (Neder, 2016, pp. 37- 38).

Neder resume a contribuição ginzburguiana à pesquisa e à escrita da história:

(…) as fontes históricas (provas) não são nem janelas escancaradas, como acreditavam os positivistas a imaginá-las como portadoras, em si, da essência da realidade concreta, nem impedem ou mascaram excessivamente a visão do observador (no caso, o historiador), como pensam os céticos. Há que se empreender a análise das distorções implicadas em qualquer fonte, sem esvaziar sua possibilidade enquanto prova, pois esta não é incompatível com os descréditos infligidos pelo princípio de realidade (Neder, 2016, p. 50).

Ginzburg propôs perspectivas e procedimentos que orientam a pesquisa histórica de corte indiciário. Outrossim, Coelho (2007) argumenta que tais procedimentos investigativos e interpretativos também foram ponderados por outros historiadores e consistem em: inferir as causas a partir dos efeitos; construir o processo investigativo durante a pesquisa; considerar o caráter subjetivo e indireto do conhecimento; destacar as especificidades do objeto; realizar um estudo intensivo, minucioso e exaustivo do material pesquisado; exercitar a conjectura na análise; reconhecer a importância do achado e do acaso na investigação; considerar o rigor flexível na pesquisa (Bloch, 2002; Marrou, 1974; Collingwood, 2001).

As proposições de Ginzburg nos permitem inferir que a tradução do passado e a escrita da história dependem de relações de poder (religiosas, políticas, sociais) que sobredeterminam o acesso às fontes e aos procedimentos, perspectivas e escolhas adotadas. Logo, o pesquisador tem que se satisfazer com a verdade provável, na tradução da conjuntura e dos sujeitos da história (Ginzburg, 2002).

Nossa discussão situa-se no campo da história das ideias políticas e religiosas e está orientada pela perspectiva da história subjetivada: uma abordagem construída a partir de documentos e de fontes que emanam da subjetivação do sujeito pesquisado. Perseguimos a confluência entre o subjetivo, o histórico, o religioso e o político para capturarmos emoções “inscritas no acontecer social”, bem como pensar as “relações entre poder” e “subjetivação política”, conforme argumenta Cerqueira Filho (2011, p. 11). À vista disso, utilizamos perspectivas e diálogos que permitem a investigação e a tradução da ação político religiosa do professor Alfredo Freyre nos embates de maçons e jansenistas com o movimento de Reação Católica em Pernambuco, nas décadas de 1910 e 1920. Interpretamos os efeitos políticos da disputa pela hegemonia no campo educacional entre o grupo do professor Alfredo Freyre e o movimento de Reação Católica, liderado pelo Pe Ciríaco Fernandes. Também investigamos a ação da Comissão de Fé e Moral da Igreja Católica junto às famílias que matricularam seus filhos em colégios protestantes em Pernambuco, pois o professor Alfredo matriculou seus filhos no Colégio Americano Batista do Recife. Desta feita, concentramos nossa atenção no seguinte problema: Como a cultura religiosa incide na cultura política e produz efeitos políticos na produção intelectual?

  1. A Terceira Escolástica e o movimento de Reação Católica no Brasil

Segundo Coelho (2016), no final do século XIX, líderes religiosos e intelectuais anglicanos, entre os quais John H. Newman e Henry E. Manning converteram-se ao catolicismo pelo diálogo com o movimento anglo católico. Newman (1811- 1890) era considerado um eminente eclesiástico anglicano, líder do movimento de Oxford, símbolo de fé e de corretismo intelectual. Sua conversão à Igreja Católica, em 1845, alcançou grande repercussão e provocou o ressurgimento do catolicismo na Inglaterra. Posteriormente, tornou-se cardeal nomeado pelo Papa Leão XIII, impactando a conversão e a reconversão de fiéis à Igreja Romana, como a do escritor inglês G. K. Chesterton e de intelectuais brasileiros: o político escritor Joaquim Nabuco e o sociólogo-historiador Gilberto Freyre, entre outros.

Neste contexto, o pensamento católico canônico passou a exercer influência peremptória na vida social e política no mundo cristão, engendrando alianças com governos e instituições políticas:

Este período, conhecido como a terceira escolástica, alcançou sua maior expressão em Portugal por volta de 1890 e no Brasil, nas décadas de 1920 e 1930, com o movimento que se convencionou chamar de Reação Católica e Ação Católica Brasileira. A terceira escolástica investiu teologicamente no pensamento de Santo Tomás de Aquino (no tomismo) e atuou na proposição de diretrizes ultraconservadoras para a vida social a partir de ações religiosas, cujos efeitos políticos foram propositadamente planejados (Coelho, 2017, p. 63). A Santa Sé planejara ações estratégicas para a atuação da Igreja de Roma na América Latina, África e Ásia, durante o transcorrer do século XIX. Ações que propunham a universalização da disciplina eclesiástica e a catolicização das instituições civis. Não obstante, a partir da segunda metade deste século, a Igreja Católica percebeu que chegara o tempo de enfrentar os inimigos de sua ortodoxia e de seu projeto político: o avanço do processo de secularização na Europa, o liberalismo, o positivismo, a maçonaria, as dissidências religiosas. À vista disso, o episcopado brasileiro observou prontamente as orientações da Santa Sé, atuando em defesa do poder espiritual e temporal da Igreja no Brasil (Coelho, 2015, p. 1346).

Como efeito político desta conjuntura, o Estado republicano brasileiro desobrigou-se do encargo de tutelar a Igreja Católica. Procurou impor-se à sociedade e ocupou áreas estratégicas até então ocupadas pela instituição romana: áreas como o registro de óbitos, nascimentos, batismos e casamentos, educação, saúde pública e obras assistenciais. A Igreja condenou a filosofia positivista e a influência da maçonaria na organização do Estado, que “foram interpretadas como um perigo à estabilidade religiosa e ao restabelecimento da autoridade da Igreja nas esferas política e social”. A morte de Dom Macedo Costa, em 1891, principal liderança católica nesta época, representou uma grande perda para o episcopado brasileiro. Seriam necessários “alguns anos e décadas” para que “uma nova liderança episcopal pudesse reunir toda Igreja, em prol de um projeto de reação aos ‘inimigos’ do catolicismo. Era preciso estabelecer um acordo ‘tácito’ com o Estado brasileiro” (Coelho, 2015, p. 1347).

Para Romano (1979), a perda de sua condição de religião de Estado explica em grande medida as divergências da Igreja Católica com o liberalismo e com a maçonaria. Estas dissensões resultaram do empenho político católico de recuperação de seu poder decisório junto ao governo do Brasil. Ainda que muitos encarassem com bons olhos a autonomia da Igreja em relação ao poder secular, outros lembravam que o catolicismo perdera vantagens materiais e políticas com a secularização. Com obviedade, podemos presumir que a Igreja Romana, “representada por sua liderança episcopal e leiga esforçara-se para salvaguardar sua posição de comando na sociedade brasileira”. Para tal, era “preciso recuperar e ampliar sua presença junto ao poder, participando efetivamente do restabelecimento da ordem social e na condução dos destinos da nação” (Coelho, 2015, p. 1348). O projeto político da Igreja amalgamou-se aos interesses de grupos hegemônicos no governo, seja na contenção dos movimentos revolucionários que eclodiriam neste contexto, seja na manutenção de privilégios enquanto instituição dominante.

Segundo Rosa (2011), a Igreja realizou diversas ações taticamente desenhadas por sua liderança, assim como elegeu interesses institucionais orientados pelo “processo de romanização de caráter ultramontano”, isto é, pela “intensificação e o aprofundamento dos laços institucionais, doutrinários e pastorais entre as Igrejas locais e a Cúria Romana”. Assim, o episcopado brasileiro coordenou e mobilizou inúmeros “recursos no âmbito nacional e internacional visando atingir seus desígnios” (Rosa, 2011, pp. 18-19, p. 106). O catolicismo, enquanto religião que se pensa universal, procurou legitimar-se na esfera das relações políticas para reforçar sua ortodoxia e retomar espaços de poder outrora ocupados na sociedade brasileira.

O início do século XX marcou o empenho da Santa Sé em arvorar sua representação diplomática no Brasil, ao status de Nunciatura, em 1901, e a exaltar a nomeação de Dom Joaquim Arcoverde como primeiro cardeal da América Latina. Foi o prenúncio de uma nova era: a liderança eclesiástica percebeu sua responsabilidade na defesa da ortodoxia católica. Magalhães (2005) lembra que a impressa católica desempenhou um papel importante nestes anos que antecederam a reação. Em fins do século XIX, os Salesianos fundaram a revista Leituras Católicas. Posteriormente, surgiram os periódicos Ave Maria e Lutador. Em 1907, os padres Franciscanos fundaram a revista Vozes de Petrópolis. Neste mesmo contexto, redentoristas fundaram o jornal e o Almanaque Aparecida e a revista Santa Cruz: periódicos políticos organizados em defesa do ideário católico.

Ademais, a ingerência do governo da Igreja no Brasil seria percebida algumas décadas mais tarde pela presença de Visitadores Apostólicos nomeados pelo Papa Pio XI, entre 1922 e 1925, a saber, Benedetto Lopes e M. Renaud. Os emissários de Roma deveriam elaborar relatórios sobre as condições dos colonos italianos, a proliferação do protestantismo e de outras seitas, a atuação dos bispos e da Igreja, a existência e a ação de movimentos de restauração católica no Brasil.

Laurita Gabaglia, historiadora da Igreja, defende que a carta pastoral de Dom Leme (1882-1942), bispo de Recife e Olinda, publicada em 1916, constitui o marco histórico e teológico sobredeterminante do movimento de Reação Católica no Brasil. Este documento foi interpretado pela liderança católica como uma verdadeira “declaração de guerra” a todos quanto discordassem da doutrina católica. Dom Leme defendeu posições austeras e convocou os católicos brasileiros a assumirem uma postura política inabalável frente à perda de influência e poder da Igreja, pois “a ação política dos católicos não passara ainda de tentativas isoladas e infrutíferas” (Gabaglia, 1962, p. 62). Em linhas gerais, dissertou sobre a legitimidade de direitos da maioria católica no Brasil, indicou áreas e instituições sociais onde o catolicismo declinou de sua missão moralizadora e realçou a implementação do ensino religioso católico como ação mais expressiva da Igreja na sociedade brasileira.

Numa perspectiva geopolítica, a Igreja concentrou suas ações na ocupação de “espaços políticos, educacionais, culturais e simbólicos da realidade nacional”, e o fez com destacada avidez (Baldin, 2009, p. 2). Dom Leme organizou um núcleo duro católico (formado por eclesiásticos e leigos), que atuou em diversos campos e em múltiplas intervenções, posto que se ansiava pela recatolicização imediata do poder secular no Brasil. Neste contexto, o Centro Dom Vital e a revista A Ordem atuaram como centros irradiadores da intelectualidade católica e de ações estratégicas destinadas à defesa e à propagação do ideário católico, bem como na reação aos inimigos da Santa Sé.

Os estudos de Azzi indicam que a conjuntura analisada estava atravessada por diversos movimentos anárquicos e anticatólicos (1977, p. 66). À vista disso, caberia à liderança da Igreja avocar sua condição historicamente legítima de instituição social corresponsável pelo “elemento de ordem na nação”. Assim, os nomes escolhidos para o centro (Dom Vital: o grande líder católico, que enfrentou a maçonaria no final do séc. XIX) e para a revista (A Ordem) representavam apropriadamente o projeto salvífico da Igreja, pois testemunhavam sua reação como verdadeira apologia da fé cristã e contra os inimigos de Deus.

Nossas trincheiras católicas estão sendo invadidas pelo inimigo. Espiritismo, protestantismo, livre-pensamento, ódios sectários, anarquismo, o respeito humano, a descrença enfim, e o indiferentismo religioso penetram em nossos arraiais. Alerta, soldados de Cristo. Mas (…) os soldados são poucos, os soldados jazem por terra, sonolentos, feridos de tédio, mortos de torpor (…) (Apud Gabaglia, 1962, pp.105-106; grifo nosso)1.

A partir de pesquisas documentais realizadas pela historiadora Lilian Rosa, constatamos que o movimento de Reação Católica atuou predatoriamente, através da Comissão de Fé e Moral, para a “defesa”, “preservação” e “propagação” do ideário católico e no combate ao protestantismo e ao espiritismo (2011, p. 213, p. 282). A comissão organizou grupos para vigiar e fiscalizar os protestantes; denunciá-los e dirigi-lhes apelos em público; agir sobre famílias e indivíduos; publicar protestos; promover doutrinações extraordinárias; e descobrir famílias católicas que possuíam filhos matriculados em colégios protestantes norteamericanos2.

Vilaça (1975) lembra que o caráter combativo do Centro Dom Vital foi notadamente difundido. Seus membros eram chamados pelo título de “soldados”. Para Baldin (2009, p. 4), mais do que recatolicizar o espaço político brasileiro, o que Dom Leme desejava era “perenizá-lo como um novo tempo histórico agora sob a égide da soberania do Cristo de Pio XI, uma etapa que antecipa as agruras do homem moderno e o coloca na linha certa”. Logo, segundo Coelho, “o efeito político deste processo seria a sacralização dos conflitos a partir de uma perspectiva maniqueísta da conjuntura políticosocial”, ou seja, “a luta entre o bem, representado pela Igreja, e o mal, encarnado pelos anticatólicos: os ‘verdadeiros’ inimigos da nação brasileira” (2015, pp.1351-1352).

Sabemos que a cultura religiosa católica invadiu o espaço secular. Mancomunou-se com o Governo republicano e engendrou efeitos políticos no acontecer social. O Estado brasileiro almejava o restabelecimento imediato da ordem social e a contenção dos movimentos revolucionários na passagem à modernidade, pois conforme argumenta Ginzburg, ao discutir teologia política em Hobbes, para “se apresentar como autoridade legítima, o Estado precisa dos instrumentos (das armas) da religião” (2014, pp. 29-30). Por outro lado, a Igreja estava interessada na retomada de seu status de religião histórica e nacional, e de sua influência junto ao governo, no atual contexto republicano e capitalista.

Assim, para Baldin (2009), o projeto político de Dom Leme, principal arquiteto da Reação Católica no Brasil, realizou-se a partir de ações delineadas e incisivas, cujo desígnio buscava estabelecer “uma ponte entre o poder do Estado e a presença da Igreja na Sociedade” .

(…) Para alcançar este objetivo foram implementadas práticas pastorais como a criação de novas confederações católicas, dioceses, paróquias e colégios católicos; catequese e educação voltadas aos adolescentes; introdução do ensino religioso nas escolas; criação de revistas e jornais católicos; realização de grandes eventos e celebrações do culto ao Sagrado Coração de Jesus; reaproximação com instituições moralizadoras e conservadoras como o exército; introdução de símbolos católicos em instituições sociais (a presença da Cruz e do Sagrado Coração de Jesus em quartéis, cartórios, delegacias, escolas); cooptação de lideranças políticas que ainda não estavam comprometidas com os interesses católicos; e formação de um núcleo de intelectuais eclesiásticos e do laicato para a organização de uma elite do pensamento católico (Baldin, 2009, p. 5).

(…) No campo religioso/intelectual destacaram-se as publicações de cartas pastorais, de artigos e de livros da Igreja; realização de palestras e conferências. O combate aos inimigos da Igreja, entre os quais jansenistas, maçons e protestantes engendrou o fortalecimento da hierarquia eclesiástica. A colaboração da Igreja com os poderes constituídos e seu amalgamento às esferas política e militar fortaleceu o sentimento conservador de ordem social e de obediência à autoridade instituída. O Estado – autoridade terrena/cidade dos homens – e a Igreja – autoridade divina/ cidade de Deus – foram aclamados como instituições imprescindíveis um ao outro e à sociedade brasileira (Coelho, 2017, pp. 64- 65).

Considerando a conjuntura de tais embates e destas ações religiosas, no âmbito da sociedade brasileira, podemos afirmar que o projeto político idealizado por Dom Leme resultou da aspiração católica de Igreja universal e histórica; preconizou o sentimento católico como condição imprescindível à constituição da identidade nacional. Este patriotismo católico repercutiu no episcopado brasileiro, que passou a defender o binômio Igreja/ pátria, reforçando sua mimese cruz/bandeira.

Salem lembra que o Centro Dom Vital e a revista A Ordem atuaram taticamente no projeto político da Igreja: um projeto religioso cujos efeitos políticos representavam o anseio de “salvação nacional” para o catolicismo. De modo geral, o “centro concentrou-se na produção e na implementação de ações práticas no campo político” e a “revista atuou na publicação intelectual-teológica, fomentando a consolidação de uma inteligência católica brasileira” (1982, p. 5). Assim, juntamente com o episcopado, constituíram os pilares para a consolidação de um “projeto católico salvífico para o Brasil” (Coelho, 2017, p. 66). Tal projeto persistiu nas décadas posteriores e repercutiu no discurso de líderes católicos como o padre Júlio Maria: “Quaisquer que sejam as dificuldades presentes, nunca, repito, ao clero brasileiro foi dada uma missão mais alta. Nas mãos da igreja, creio profundamente, está o futuro do Brasil” (1950, p. 256).

Mas o movimento de Reação Católica não se restringiu ao Centro Dom Vital, com sua sede no Rio de Janeiro, ao contrário, disseminou-se por todo o território nacional, fomentando ações em diversos espaços e instituições. Entre os centros de irradiação da Reação Católica, o grupo do Recife foi um dos mais combativos e atuantes. Sabemos que a Igreja sempre exerceu forte influência no Nordeste brasileiro, por outro lado, foi em terras pernambucanas que Dom Leme escrevera sua famosa Carta Pastoral de 1916, inaugurando os tempos de recatolicização do Brasil. Outrossim, a Reação Católica Pernambucana organizou ações da Igreja em espaços de sociabilidade importantes como a Congregação Mariana, a Faculdade de Direito do Recife, os cafés da cidade, a imprensa local, etc.

Gabaglia lembra que entre os inimigos usualmente confrontados, a Igreja viu-se diante de um oponente mais poderoso: a temida maçonaria. “Numerosos eram os maçons de nome; poderosas, porém, só a maçonaria de Pernambuco e a ‘Italiana’, de S. Paulo”. Porém, muitos magnatas maçons “se diziam católicos, frequentavam as igrejas e eram amigos do Clero” (1962, p. 64). No entanto, a liderança episcopal mais expressiva desprezava tal aproximação e agiu de forma intolerante para com os maçons católicos, culminando em uma forte perseguição à maçonaria no Brasil.

Segundo Silva, as primeiras décadas do século XX registraram fortes embates políticos e ideológicos entre a Igreja Católica e a maçonaria em Pernambuco, especialmente no Recife (2013, p. 30). Intelectuais e lideranças católicas acusaram os maçons de formarem uma sociedade secreta e satânica, cujos objetivos políticos e financeiros visavam à desestabilização da ordem e a promoção de movimentos conspiratórios. A Igreja propagou críticas contundentes ao que chamou de “maquinações maçônicas”. Estava incomodada com a presença de maçons nos meios políticos e no controle de instituições sociais estratégicas como escolas, universidades, centros de assistência social, repartições públicas, instituições financeiras e jurídicas.

Os maçons pernambucanos realizaram muitos debates sobre sua identidade e pertencimento a maçonaria e sua atuação na sociedade brasileira. Também propuseram críticas à intolerância católica em todos os campos de atuação política e social. Para Silva, as primeiras décadas do século XX constituem o momento de reestruturação da maçonaria, de interiorização e de fundação de núcleos maçônicos em diversas cidades pernambucanas (2013, p. 29, pp. 31-34). Ademais, os maçons pernambucanos empenharam-se pela consolidação da maçonaria no Nordeste; atuaram na desburocratização e na autonomia das Lojas maçônicas e na criação de uma “imprensa periódica” com jornais e revistas voltados à divulgação de seu ideário. Desta forma, almejavam a constituição do “rosto” e da “voz” da maçonaria no cenário político local, forjando uma “Cultura Política” autêntica e favorável as suas aspirações. Em 1906, orientados por um projeto político próprio, um grupo de “obreiros” das Lojas Segredo e Amor da Ordem, de Recife, fundaram a revista Archivo Maçônico. Em poucos anos a Archivo assumiria a condição de porta-voz da maçonaria pernambucana. De fato, a revista recebeu diversas contribuições de maçons eminentes e reconhecidos nos meios literários e intelectuais, como Manoel Arão, Mário Melo, Pereira da Costa e Alfredo Freyre.

  1. Maçonaria e jansenismo versus jesuitismo: o professor Alfredo Freyre e seus embates com o movimento de Reação Católica em Pernambuco, Brasil

Alfredo Freyre (1875-1961) fora bacharel em ciências jurídicas e sociais, advogado e professor. Era Latinista, mas, também apreciava a cultura anglo-saxônica e os escritores ingleses, assim como os escritores portugueses e espanhóis. Entusiasta de diversos autores, entre os quais, pensadores que professavam e estudavam o jansenismo como os Padres Bernardes e Feijó, o jurista Herculano e o crítico Ramalho Ortigão. Contudo, Santo Agostinho fora sua predileção. Conservador confesso, austero e intransigente em suas ideias políticas e intelectuais; maçom eminente e atuante nos círculos intelectuais e políticos da maçonaria pernambucana. Era fascinado pela cultura inglesa e amante do modelo anglo-americano de ensino (Freyre, 1970).

Estabeleceu aliança política com os missionários batistas em Pernambuco, participando ativamente da fundação do Colégio Americano Batista, no Recife (PE). Atuou como advogado, professor, secretário e vice-diretor do colégio durante muitos anos. Participou de projetos do Seminário Batista do Norte, como a apresentação e a tradução de livros protestantes. Os relatórios dos missionários batistas atestam o apreço que nutriam pelo professor Alfredo . Embora não tenha se convertido ao protestantismo exerceu cargos importantes em instituições da Igreja Batista e sempre manifestou apreço pela concepção protestante de ensino. Era muito respeitado pelos missionários, que o consideravam um “esplêndido professor nativo” e “amigo do Evangelho”. Estes enalteciam “sua devoção ao ensino” (Martins, 2011, pp. 25-27).

No dia 06 de março de 1912, Alfredo Freyre, maçom eminente da Loja Conciliação, proferiu a conferência “A Escola Primária”, para um grande público presente no Teatro Santa Isabel, no Recife, que foi reproduzida nos números de abril-junho da revista Archivo Maçônico. Nesta conferência, A. Freyre defendeu abertamente o modelo de educação laica pautada pela tolerância religiosa, pela prevalência das atividades manuais e corporais e das ciências tecnológicas na formação básica. O cerne do debate político-ideológico por ele avocado, em resposta ao movimento de Reação Católica no Recife, atribuía à educação primária a responsabilidade de formação da cidadania e da tolerância religiosa. Em sua ponderação, este seria o maior legado da educação laica. O professor Alfredo reforçou o papel imprescindível da educação primária no projeto político e nas demandas sociais defendidas pela maçonaria pernambucana (Coelho, 2017, p. 70).

Conforme relata-nos Gilberto Freyre, seu pai proclamara na conferência o entusiasmo que nutria pelo modelo educacional anglo-americano. Para Alfredo Freyre, a “raça latina” não estaria “condenada” como afirmavam alguns estudiosos. Logo, se não cumpria a “missão nobre e elevada” de sua civilização, seria simplesmente pelo fato de estar sendo “mal dirigida, mal educada”. Segundo G. Freyre:

E desenvolvendo ideias, algumas estimuladas nele pelo seu amigo inglês e Anglicano Mr. Williams (…), Alfredo Freyre batia-se pela organização, no Brasil, de um sistema de ensino em que a “geografia fosse uma manipulação, a literatura escolar uma manipulação, máxime se a associarmos intimamente com o desenho e a modelagem. Os trabalhos manuais são exercícios de resistência moral. Todo ensino deve aliar o esforço físico muscular à assimilação de ideias. Libertado o pensamento e o sentimento de toda a tutela pela redução gradual do papel do professor, mais nítida aparecerá a responsabilidade do aluno”. Para Alfredo Freyre “o progresso espantoso da república norte-americana” era devido “ao método das suas escolas, cuja substância é aprender agindo”4 (Freyre, 1964, p. 8; grifo nosso).

O professor Alfredo estava atento à produção intelectual no campo pedagógico, seja pelos diálogos e trocas realizadas com os missionários protestantes, seja por sua própria pesquisa. Intrigante notarmos a similitude entre suas ideias a respeito da introdução de atividades manuais nas escolas, para o desenvolvimento da inteligência e na formação moral dos alunos, e os estudos de Omer Buyse, pesquisador reconhecido por seus estudos sobre a organização das escolas de artes e ofícios na Alemanha e na Inglaterra. Buyse publicara em 1908, uma obra de 750 páginas, intitulada Méthodes americanes d’education générale et technique5. Eis sua descrição das escolas americanas:

O acto physico precede ou acompanha o acto do pensamento. As materias de ensino mais abstractas para nós, são apresentadas sob formas materiaes e concretas, e necessitam, para ser assimiladas de tanta habilidade das mãos como vivacidade do pensamento. A geographia é uma manipulação, a litteratura escolar é um trabalho de laboratorio, porque se associa, intimamente, com o desenho e a modelagem. A forma superior de acção, os trabalhos manuaes, universalmente praticados nas escolas, são exercícios de resistencia moral. Todo o ensino allia o esforço physico e muscular a assimilação das ideias.

O ensino secundario, que estabelece a passagem da dependencia intellectual e moral da infancia para as convicções individuaes do adulto, procede do mesmo pensamento e acentúa o systema de instrucção pela acção (Buyse, 1927, p. 4; grifo nosso).

Como vemos, alguns trechos são idênticos, por isso podemos conjecturar que a obra Métodos americanos de educação foi uma referência teórica importante e repercutiu nas ideias de Alfredo Freyre. Ademais, sabemos que os estudos de Buyse eram reconhecidos pela intelectualidade internacional e que publicara sua obra alguns anos antes da conferência proferida por Alfredo Freyre. O professor Alfredo foi entusiasta e estudioso deste tema, o que nos leva a concluir que provavelmente conhecia os estudos deste autor. Em linhas gerais, o projeto político/pedagógico defendido por A. Freyre fora inspirado no modelo educacional anglo-americano.

Coelho lembra que “Alfredo Freyre estava engajado no propósito maçônico de enfrentar o conservantismo e o clericalismo da Igreja pela via da educação. Nesta conjuntura, suas ideias acerca da educação primária constituíram um novo modelo de escola para o Brasil” (2017, p. 71). Assim, para além das alianças políticas entre maçons e protestantes, apontadas por Vieira (1980), consideramos que o contexto de auge da Terceira Escolástica no Brasil, deve ser compreendido como conjunção de embates políticos internos do catolicismo. Estamos convencidos de que tais conflitos atuaram, e ainda atuam, nas relações de forças e nas disputas de campo no catolicismo romano. Destarte, A. Freyre identificou-se com o ideário político-teológico pedagógico dos oratorianos: grupo católico jansenista de derivação inglesa, que se opunha ao clericalismo e ao jesuitismo. Os oratorianos se constituíram no interior do próprio catolicismo e disputaram, principalmente, com os jesuítas, a hegemonia nas ações da Igreja na Europa, em Portugal e no Brasil.

Indícios identificados nos documentos supracitados sugerem que A. Freyre era jansenista: os jansenistas constituem um movimento católico iniciado no século XVII por Cornelius Jansen: bispo de Yprès e doutor em teologia pela Universidade de Lovaina. Os jansenistas eram adeptos da teologia de Santo Agostinho, por isso assumiram posturas teológicas/políticas austeras, anticlericais, antipapistas e buscaram a reaproximação entre o catolicismo e o protestantismo.

Segundo Coelho,

(…) o professor Alfredo assimilou a filosofia dos oratorianos e seu modelo intelectual ilustrado, sobretudo, no campo político pedagógico, que constituía sua maior fascinação. Isto explica sua decisão de permanecer no catolicismo apesar das alianças que estabeleceu com o protestantismo batista e com a maçonaria pernambucana. Logo, sua participação nos embates internos do catolicismo em Pernambuco, entre forças dialéticas e antagônicas ao poder político dos jesuítas e ao autoritarismo papal, constitui uma ação social movida por sentimentos, ao mesmo tempo, religiosos e políticos: sentimentos que se alimentaram mutuamente e se mancomunaram na subjetividade histórica deste ator social (2017, p. 72).

À medida que o protestantismo avançava no Nordeste Brasileiro, novas escolas protestantes foram estabelecidas, como já estava acontecendo em São Paulo, desde os fins do século XIX. A Igreja encontrava-se deveras preocupada com o crescimento do protestantismo americano no Brasil. Conforme argumenta Medeiros, na década de 1930, Alceu Amoroso Lima, líder e censor do laicato católico, criticara severamente a influência dos Estados Unidos na sociedade brasileira e conclamara os católicos à “reação ao espírito norte-americano, à civilização ianque individualista e protestante” (1978, pp. 326-327). Neste sentido, podemos presumir que intelectuais católicos entusiastas do jansenismo, membros da maçonaria e aliados dos protestantes, como Alfredo Freyre, tornaram-se alvo de denúncia, rejeição e perseguição político-ideológica do movimento de Reação Católica. A Família Freyre era tradicionalmente católica apostólica romana, influente e herdeira da aristocracia rural pernambucana, no entanto, pertencia à burguesia comercial recifense. Certamente foi identificada pela Comissão de Fé e Moral da Igreja em Pernambuco, pois o menino Gilberto e seu irmão Ulysses foram matriculados no Colégio Americano Batista do Recife, onde seu pai era professor e vice-diretor.

Isto posto, conforme argumentamos em outros trabalhos, o “empenho pragmático, político e intelectual em defesa da educação laica e do modelo político-pedagógico oratoriano atestam que Alfredo Freyre foi um intelectual orgânico no sentido gramsciano” (Coelho, 2017, pp.72- 73). Tal conceito nos leva à obra clássica de Antonio Gramsci, intitulada originalmente como Gli intellettuali e l’organizzazione della cultura, publicada no Brasil como Os intelectuais e a organização da cultura (1982).

O intelectual orgânico seria aquele que se coloca para além da eloquência: “motor exterior e momentâneo dos afetos e das paixões”. Assim, este modelo de intelectual precisa imiscuir-se da vida prática, tornar-se organizador e construtor de ideias e projetos para o grupo que representa. Não é um simples especialista, ao contrário, almeja tornar-se dirigente de seu grupo ou classe: “um especialista mais político”. Intelectuais orgânicos são “categorias especializadas para o exercício da função intelectual” (Gramsci, 1982, pp. 8-9).

O professor Alfredo aliou o mundo intelectual, da educação e do trabalho com o universo da ciência, das humanidades e da política em torno de um projeto educacional com inspiração no catolicismo ilustrado de matriz jansênico-oratoriana e na maçonaria. Logo, podemos afirmar que Alfredo Freyre idealizou um projeto político para o Brasil em contraposição ao projeto político do movimento de Reação Católica.

  1. Considerações finais

No início da década de 1930, os Freyre sofreram um grande abalo devido ao saque e incêndio da casa onde a família vivia em Madalena, região urbana de Recife. Com a Revolução de 30, os opositores da Era Vargas sofreram agravos políticos e econômicos. O governador de Pernambuco Estácio Coimbra, aliado do presidente Washington Luiz, viu-se em apuros e obrigado a partir com sua comitiva. Gilberto Freyre ocupava o cargo de Oficial de Gabinete no governo de E.Coimbra e decidiu partir para o exílio juntamente com o governador. Partiram para Portugal. Gilberto só ficou sabendo da violência a que fora submetida à Família Freyre durante sua fuga. Sentiu-se triste, angustiado e culpado pela desgraça de seus pais e irmãos.

Foi durante este período de exílio – marcado por solidão, angústia, culpa; pelo apego ao religioso; estudo/pesquisa durante sua permanência em Portugal e sua passagem pelos EUA, como professor extraordinário da Stanford University, que Gilberto escreveu sua obra fundadora do Brasil: Casa-Grande & Senzala (1933).

Ao final deste trabalho destacamos conjecturas que poderão suscitar novas pesquisas sobre o tema discutido: a) a Família Freyre foi vigiada e denunciada pela Comissão de Fé e Moral da Igreja Católica em Pernambuco, por sua adesão paterna ao ideário jansênico e ao modelo educacional oratoriano; pela atuação do professor Alfredo Freyre nos projetos políticos da maçonaria em favor da educação laica; por ter matriculado seus filhos em colégio protestante; pela trânsfuga afetiva e política de A. Freyre e de G. Freyre, seu filho mais proeminente. A comprovação desta hipótese requer o acesso e a pesquisa de relatórios do movimento de Reação Católica em Pernambuco e de arquivos da Família Freyre; b) O incêndio e o saque na casa da Família Freyre resultaram de outras motivações políticas. Se a Família sofria o estigma da traição jansênica e maçônica pela via paterna e estabelecera alianças com o protestantismo batista, presumivelmente, era vista com desconfiança e escárnio pelos líderes da Reação Católica em Pernambuco. Aliás, este período constitui um momento crucial, que dará início a Ação Católica Brasileira, liderada por Alceu Amoroso Lima: crítico do americanismo, censor da intelectualidade católica e intolerante com a Escola Nova. À vista disso, precisamos perguntar: Até que ponto a cultura católica de matriz jesuítica repercutiu na ação política dos adeptos do regime Vargas? Como a marca da traição religiosa do patriarca da Família Freyre motivou a ação de seus perseguidores? Qual a repercussão da ação predatória da Igreja Romana na vida intelectual de G. Freyre?

Sabemos pouco acerca da ação política do professor Alfredo Freyre na década de 1930. Aparentemente, o auge de sua atuação política ocorreu nas décadas de 1910 e 1920. Novas pesquisas revelarão documentos importantes que aprofundarão nosso conhecimento sobre seus embates teóricos e políticos com o movimento de Reação Católica em sua terra natal.

NOTAS

1 Trecho do discurso de Dom Leme, proferido em 1918, por ocasião da inauguração da Seção Masculina da Confederação Católica no Recife, Pernambuco. Fonte: Arquivo Particular do Cardeal Leme).

2 Presumimos que estas informações ou parte delas podem ser encontradas no Relatório de Dom Leme enviado à Santa Sé, por volta de 1924, com o título Sobre a vida e a organização paroquial no Brasil (Relazione da Mons. Leme. Sulla Vita Ed Organizzazione Parrochiale nel Brasile). Este documento encontra-se no A.S.V. – Archivio Segreto Vaticano: FUNDO ARCH. NUNZ. BRASILE. Busta 173, fasc. 951. Tal acervo foi aberto à pesquisa pública no ano de 2015, o que possibilita a verificação de seu conteúdo histórico e a constatação da ação inquisitorial da Igreja junto às famílias no Brasil. Por conseguinte, a realização de pesquisa documental no Acervo do Vaticano, em Roma, Itália, possibilitará a verificação de nossas inferências sobre o presente tema, o que contribuirá para a pesquisa histórica sobre a confluência entre cultura religiosa, cultura política e catolicismo político no Brasil, no início do século XX.

3 Relatórios do Acervo Documental da Primeira Igreja Batista do Recife: H. H. Muirhead. Seventy-first Annual Report of the Foreign Mission Board-Pernambuco Field. Annual of the southern baptist convention, 1916, p. 163; H.H. Muirhead, Seventy-third Annual Report of the Foreign Mission BoardNorth Brazil Mission. Annual of the southern baptist convention, 1918, p. 217; W. C. Taylor, Seventy-seventh Annual Report of the Foreign Mission Board-North Brazil Mission. Annual of the southern baptist convention, 1922, p. 222; W. C. Taylor, A brief survey of the History Brazilian Baptist Doctrine, 1955, p. 35.

4 Os trechos entre aspas desta citação de Gilberto Freyre são transcrições de partes da Conferência A Escola Primária, proferida por Alfredo Freyre em 1912, conforme mencionamos anteriormente.

5 Segundo Mario Manacorda, o estudo de Omer Buyse representou neste contexto a “apreensão de uma realidade educativa generalizada, em grande parte nova, que rompia significativamente com os esquemas da tradição escolástica européia” (Manacorda, 2002, pp. 308-309).

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*** Doutor em História Social das Relações Políticas pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES, Brasil). Pesquisador associado ao Núcleo de Estudos e Pesquisas Indiciárias da UFES.

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PUBLICADO NA REB – REVISTA DE ESTUDIOS BRASILEÑOS – PRIMER SEMESTRE 2018 – VOLUMEN 5 – NUMERO 9