Bibliot3ca FERNANDO PESSOA

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O Contexto Científico na Formação da Psicanálise e a Figura de Sigmund Freud Perante a Religião

Ir.´. Marcel Henrique Rodrigues *
e
Luís Antonio Groppo **

Introdução

Um dos temas mais delicados para serem tratados dentro do meio acadêmico científico é, sem dúvida, a questão da religião. Muitos estudiosos e muitos ramos universitários preferem abster-se da discussão em torno do fenômeno. Esta discussão ou desentendimento entre ciência e religião acentua-se ainda mais quando nos deparamos com a Psicanálise, uma das escolas dentro da Psicologia fundada pelo médico e muito famoso Sigmund Freud, nos fins do século XIX.

Como se verá, o pai da Psicanálise rejeitou qualquer relacionamento com a religião. Embora de família tradicionalmente judaica, Freud jamais renegou sua condição de judeu, muito pelo contrário, achava necessário demonstrar aos antissemitas que os judeus são fortes o suficiente e que novos ramos científicos poderiam surgir dentro desta comunidade tão perseguida. Freud nunca rejeitou seu judaísmo, pelo contrário, sentia-se orgulhoso de sua raça semítica e vangloriou-se por ter fundado a tão atacada, e mal compreendida, Psicanálise, que, em seus primórdios, se desenvolveu em ambiente estritamente judaico, dando margem aos oposicionistas que taxavam a Psicanálise de “ciência judaica” (Fuks, 2000).

Este envolvimento e, de certa forma, identificação de Freud com os judeus, levaria a supor que este médico vienense fosse um temente a Deus, mas, muito pelo contrário, Freud era avesso às tradições religiosas e a qualquer tipo de crença. Ele se baseava em critérios científicos para validar seus argumentos, e dizia ser um positivista, um cientista e, além de tudo, um judeu sem Deus (Gay, 1992).  

Este artigo pretende expor, ainda que brevemente, o contexto histórico em que a Psicanálise se desenvolveu. Tal contexto fora marcado pela supremacia da cientificidade empírica em oposição aos antigos dogmas religiosos, o que provavelmente pode ter influenciado a posição ateia do fundador da Psicanálise.

É interessante observar analiticamente alguns pontos da biografia de Freud em que o tema religião está sempre presente. Os estudiosos evitam colocar Sigmund Freud em um divã e “psicanalizar” seus pensamentos, seu estilo de vida e, principalmente, encontrar, através de seu contexto familiar, os motivos que o levaram a fundar a Psicanálise e a rejeitar a religião de seus pais. Será interessante observar que o contexto histórico biográfico de Sigmund pode sim ter influenciado a sua posição contrária à fé, e a sua dura crença na incompatibilidade entre ciência e religião.

Após a análise de alguns pontos biográficos do referido autor, será interessante levarmos em conta as características históricas em que se desenvolveu a Psicanálise, sobretudo, observar que a ciência empírica fervilhava entre os cientistas e acadêmicos europeus da época e que tal ambiente contribuiu para os estudos de Freud e a consequente criação da Psicanálise. Assim, como muito temos falado sobre a rejeição freudiana aos preceitos religiosos, será exposta uma de suas primeiras obras sobre a religião como neurose obsessiva universal e como fonte de enaltecimento da figura paterna.

1.  A Religião na vida de Freud

Para propor um estudo mais detalhado e reflexivo, é interessante expor o que este estudioso teorizou sobre a religião, tanto do ponto de vista psicológico, quanto do ponto de vista antropológico. Poderíamos fazer o mesmo com outras personalidades que, de certa forma, ajudaram a desenvolver a Psicanálise, entretanto, vamos nos concentrar em Freud, que foi o pioneiro da Psicanálise, recebendo o título de “Pai da Psicanálise”. Para expor as teorias de Freud sobre a religião, é necessário remontar ao pano de fundo no qual se inscreve Freud, entender suas origens e sua vida, de modo geral, o que muito pode contribuir para o entendimento de suas opiniões para com a religiosidade.

A psicanalista Rizzuto (2001) acredita que, para compreender a atitude de Freud para com a religião, ou mesmo para com a simples crença em Deus, devemos voltar as atenções à sua história de vida, à relação com sua família tipicamente judaica e à sociedade vienense dos séculos XIX e XX, conservadora e religiosa. Para tanto, este trabalho propõe um estudo biográfico de Freud, para buscar, em suas relações familiares, o motivo de sua rejeição para com a crença em Deus, e sua postura ateia. A atitude neste ponto da pesquisa não é fazer uma biografia de Freud. A intenção é analisar, como propõem alguns estudiosos como Rizzuto (2001) e Fuks (2000), algumas características da vida de Freud que possivelmente o levaram a rejeitar veementemente a crença em Deus e o fenômeno religioso.

 Freud nasceu em meados do século XIX, em Freiberg, antiga Morávia, hoje República Tcheca, em uma família de origem judaica e de condição financeira muito precária. Moravam no campo e as condições de vida não eram boas. Seu pai, Jakob Freud, era um homem sem sorte para os negócios e ganhava muito pouco. Freud (apud Rizzuto 2001, p.100) relata que seu pai era péssimo nos negócios e sonhava que um dia ganharia muito dinheiro. Burke (2010, p. 27) afirma que os sentimentos de Freud para com Jakob eram ambivalentes, entre o amor e o ódio, pois, desde criança, o jovem Freud não aceitava o fracasso do pai. Segundo a autora, Freud chegou a se referir a seu pai como “criança imprestável”.

Gay (1992, p. 66) menciona um acontecimento muito importante na vida de Freud, que muito o marcou. Quando tinha apenas três anos de idade, o jovem Sigmund tinha uma babá católica que o levava todos os finais de semana para a missa, em que ensinava para ele as “verdades” da religião. Pouco tempo depois, essa mesma babá foi despedida pela família acusada de roubo, contribuindo para um primeiro rompimento entre Freud e a religião. Após esse acontecimento, a família teve de se mudar para Viena, uma cidade grande, refinada, onde havia a esperança de conseguir melhores condições de vida e sair definitivamente da miséria.  A família finalmente se instala em Viena, a capital austríaca considerada uma das cidades mais refinadas e intelectualizadas da Europa, e é neste período que o jovem Freud conhece as dificuldades de ser judeu, pois havia muita discriminação religiosa por toda Viena. 

Robert (1989) destaca que, após a chegada a Viena, Freud começou a receber algumas orientações religiosas de seu pai, apesar de já ter encontrado o que de pior havia na religiosidade, pois, já havia sofrido preconceito por ser judeu, no início de seus estudos, ainda quando criança. Freud tinha consciência de que era judeu, e isso conotava ser diferente dos outros, por imposição da própria sociedade. Aos sete anos de idade, Freud recebeu as primeiras instruções de seu pai sobre a religião na antiga bíblia de Philippson, que era ricamente ilustrada. Conta-se que Freud era, quando pequeno, fascinado por essas gravuras. Freud (apud Rizzuto, 2001 p. 140) relata o teor da primeira carta que escreveu, quando tinha sete anos, a parentes: “Eu e meus queridos pais e irmãs estamos bem, graças a Deus”.

Claro que essa carta pode ter sido ditada pelos pais de Freud, mas é fácil ver que os ensinamentos sobre a religiosidade eram presentes na vida do jovem. Apesar de não ser de uma família judaica ortodoxa, a família Freud costumava respeitar os rituais judaicos. A despeito desse pano de fundo concernente à religiosidade, a situação financeira da família continuava muito grave e todas as esperanças de sobrevivência foram depositadas nos filhos, sobretudo no jovem Sigmund Freud. Sendo assim, priorizaram-se os seus estudos, nos quais entraria a dura realidade da sociedade na época, o preconceito contra sua “raça judaica”. É como relata em seu “Estudo Autobiográfico”:

Quando em 1873, ingressei na universidade, experimentei desapontamentos consideráveis. Antes de tudo, verifiquei que se esperava que eu me sentisse inferior e estranho porque era judeu. Recusei-me de maneira absoluta a fazer a primeira dessas coisas. Jamais fui capaz de compreender porque devo sentir-me envergonhado da minha ascendência ou, como as pessoas começavam a dizer, da minha “raça” (FREUD, 2006, p. 16).  

Freud experimentou a dura realidade do preconceito da época, contra a sua “raça”. Mesmo sofrendo todos os tipos de ataque, permaneceu em seus estudos, mas estava indignado com os fatos.  Robert (1989) relata que, durante essa dura fase da vida deste jovem, seu pai, Jakob, continuava a insistir na formação religiosa do filho, ao mesmo tempo em que, como já foi mencionado no início desta pesquisa, Freud estava em contato com o cientificismo materialista típico da universidade europeia do final do século XIX, cuja tendência era recusar a possibilidade da existência de Deus.

Fuks (2000, cap. II) lembra que, durante esse período, Freud adere ao movimento materialista e se assume ateu. Um fato muito importante, que muitos estudiosos relatam, principalmente Robert (1989 p. 28), é sobre um acontecimento que Freud conta em sua obra “Interpretação dos Sonhos”. Este fato diz respeito a um evento marcante na vida de seu pai, Jakob, que muito o enraiveceu e ressentiu. Eis o que Freud relata:

Eu contava já com 10 ou 12 anos quando meu pai começou a me levar em seus passeios e a ter comigo conversas a respeito de suas opiniões e das coisas em geral. Um dia, para demonstrar como o meu tempo era melhor do que o seu, ele me contou o seguinte fato: “Uma vez, quando eu era jovem, na cidade onde você nasceu, saí à rua num sábado, bem vestido e com um gorro de pele novo. Surge um cristão e com um golpe joga o meu gorro na lama gritando: “Judeu, desça da calçada”- E o que você fez?- “Apanhei o meu gorro”, disse meu pai com resignação (apud ROBERT, 1988, p. 28).

Assim, estes citados autores argumentam que Freud muito se envergonhava da atitude do pai perante este triste episódio, o que alimentava uma animosidade inconsciente contra Jakob. É interessante notar que essa ambivalência entre amor e ódio, que Freud nutria por seu pai, segundo Rizzuto (2001), foi fundamental para a formulação da teoria do Complexo de Édipo. Esse episódio, somado às tentativas de Jakob de fazer que Sigmund se inteirasse da religião judaica, fizera com que Freud criasse uma grande antipatia para com a religiosidade. A crença cega em um Deus vingativo e preconceituoso só contribuiu para a descrença de Freud.

As tentativas de Jakob de inserir Freud na religiosidade aconteceram durante toda a vida. Mesmo no aniversário de Sigmund, quando este completou trinta e cinco anos, o pai o presenteou com a famosa bíblia da família, a ilustrada Bíblia de Philippson, a mesma utilizada por Freud quando criança. Desta vez, havia uma dedicatória feita por seu pai, na qual pedia ao filho que nunca se esquecesse de seu Criador, no caso, Deus, e que deixasse de rejeitá-Lo.

Burke (2010) relata que Freud era um verdadeiro bibliófilo, porém a Bíblia de Philippson foi o único livro que nunca conseguira ler. Fuks (2000) explana que o relacionamento entre Freud e seu pai fora marcado por amor e ódio. Um fato curioso se deu quando Jakob morreu, e Freud chegou atrasado ao seu enterro, pois estava na barbearia, o que foi considerado como uma grande falta de respeito por seus familiares e para com o morto. 

Vale lembrar que, apesar da ambivalente relação entre pai e filho, Freud jamais deixou de considerar-se judeu, ainda que sempre afirmasse que era “Um judeu totalmente indiferente para com a religião de seus pais”. Ou, como Gay (1992) afirma, Freud era um judeu sem Deus. Burke (2010, p. 10) observa que, após a morte de Jakob, Freud começa uma “desesperada” busca por objetos arqueológicos religiosos, que comprava de antiquários, assumindo as antiguidades como um novo hobby, compondo um verdadeiro “museu” em seu gabinete de estudos. A coleção, hoje conservada em Londres, se constitui, em sua grande maioria, de estátuas datadas da era pré-cristã, todas de cunho religioso-pagão. Freud se orgulhava de ser judeu, como ele mesmo atesta em suas obras, por exemplo, em “Moisés e o Monoteísmo” (1939). Tal posição sugere que este intelectual, apesar de ateu, compartilhava do sofrimento de sua gente, e que jamais renegaria sua “raça”.

Foi preciso relatar, mesmo que rapidamente, estes fatos da vida de Freud, para que possamos compreender os motivos pelos quais condena a religião e assume seu ateísmo. Recorrer à história de vida do sujeito é de grande importância, visto que, em Psicanálise, as teorias estão intimamente ligadas às experiências pessoais e à história de vida de cada teórico, seja de Freud, Jung, etc..

2.            O         Contexto Científico-pragmático do Nascimento da Psicanálise

Neste item se propõe uma investigação do movimento psicanalítico, destacando o seu confronto com o sistema religioso.

Gay (1992) argumenta que Freud, o fundador da Psicanálise, nasceu na Europa do século XIX, que vivia o apogeu do pensamento científico-empirista. Indica que Freud iniciou seus estudos em Medicina, na universidade de Viena, onde proliferava o pensamento racional e científico. O jovem Freud teve como mestres grandes fisiologistas, filósofos e outros eruditos, que proclamavam a supremacia da razão e do pensamento científico sobre o antigo e “falido” sistema religioso.  

Gay (1992) indica que na universidade de Viena, na época da graduação de Freud, o ambiente era de total hostilidade à religião, a ponto de se proclamar uma “guerra” entre ambas as partes, como se segue abaixo:

Biólogos, pedagogos, jornalistas, políticos, todos eles estavam profundamente engajados nessa guerra. Para onde quer que o historiador olhe, ele descobre controvérsias sobre a natureza de Deus e o poder das igrejas durante as décadas em que Freud crescia, entrava para a universidade, estabelecia-se como médico, e desenvolvia a psicanálise (GAY, 1992, p. 25).

Zilles (2009, p. 136) argumenta que o ambiente científico-naturalista, que reinava na universidade de Viena, foi um fator fundamental para o ateísmo de Freud, o futuro fundador da Psicanálise:

Freud estudou medicina numa época em que, nas universidades, reinava o clima em que a ciência natural era vista como única solução para todos os problemas. Freud acreditava na ciência como seu mestre, o fisiologista Ernst Brucke a apresentava. Para ele, a fé na ciência significava a transição para o ateísmo. Durante anos ocupou-se com a neurologia. Daí passou a estudar as neuroses (ZILLES, 2009, p. 137).

Wondracek et al (2003) ressalvam que Freud desenvolveu a psicanálise dentro de um ambiente marcado pela crítica racional científica e pela cultura europeia conservadora e, no caso de Freud, pela cultura judaica. Assim, Freud cresceu em um ambiente em que assimilou a cultura judaica, europeia, científica e cética.

Angerami et al (2008) abordam que o ambiente acadêmico ateísta em que Freud estudara  já estava formado há muito tempo, sobretudo, na Europa. Com efeito, para Angerami et al (2008), a humanidade sempre conviveu com cientistas que desacreditaram de Deus, sobretudo, da religião, para formar novas teorias e descobrir verdades até então encobertas pelo dogmatismo religioso.

Desde os pré-socráticos, o homem tem se questionado sobre a existência de Deus e as descobertas científicas, nascendo assim o milenar embate entre ciência e religião. (Palmer, 2001)

Gay (1992, p. 55) expõe o argumento de que Freud recebeu sua educação nos moldes iluministas, em que a rejeição da ideia de Deus era elemento importante. O presente autor concebe o título para Freud de o “último cavaleiro iluminista”.

Zilles (2009, p. 137) aponta que nem toda a formação de Freud foi de cunho ateísta. O pai da Psicanálise assistiu a muitas aulas do filósofo Franz Brentano, que discursava sobre as possibilidades de se fazer ciência sem desacreditar da existência de Deus. Brentano considerava que a ciência e a religião poderiam caminhar juntas.

Gay (1992, p. 51), assim como Zilles (2009, cap.VII), revela que Freud teve grande respeito por Brentano e suas lições o fizeram refletir sobre as crenças no materialismo e no cientificismo ateu, mas suas convicções ateístas e a crença na incompatibilidade entre ciência e religião sobressaíram-se. Assim relata o autor:

Tendo sido capaz de escapar à barreira de respeitáveis argumentos que Brentano despejou sobre ele, Freud retornou a seu ateísmo e ali permaneceu para o resto da vida. “Nem em minha vida privada nem em meus escritos”, disse ele um ano antes de morrer, “jamais fiz segredo de minha absoluta falta de fé” (GAY, 1992, p. 52).

Acreditamos que o ambiente acadêmico muito tenha influenciado a posição pragmática de Freud, que viveu sob o manto de uma sociedade altamente influenciada pelos ideais iluministas, os quais impulsionavam os estudos que desejavam ser puramente científicos, longe de qualquer fundamentação teológica. Gay (1992, p. 55) chama Freud de o “Último Cavaleiro Iluminista”, pois, assim como outros cientistas e filósofos, deixou de lado qualquer convenção religiosa e derrubou todos os muros da moralidade ao apresentar sua teoria sexual-infantil, em uma época que o assunto sobre sexo era considerado o maior tabu de todos.

Por outro lado, apesar de toda a sua repugnância pelos dogmas religiosos, e de sua crença na falsa moralidade eclesiástica, que ele considerava como fonte encobridora de neuroses e uma busca obsessiva por um pai ausente, entretanto, o próprio fundador do movimento psicanalítico professava que, apesar de ser ateu, jamais deixou de pensar em religião, que, para ele, era um objeto a ser estudado pela nova ciência psicanalítica.

Por fim, vê-se que o ambiente acadêmico com que Freud conviveu era de cunho ateísta. E isto fora profundamente importante para sua descrença em Deus. Ainda não se discutiu aqui sobre o real motivo que levou o pai da Psicanálise a rejeitar a noção de Deus. Até agora só foi exposto o alicerce de seu ateísmo, que fora a sua formação acadêmica e a influência de seus mestres da universidade de Viena.

Outro ponto importante, e que merece uma apurada investigação, é a sua longa amizade com o médico e psicanalista suíço Carl Gustav Jung, amizade esta marcada pelo rompimento por divergências intelectuais e ideológicas.

Palmer (2001) mostra que, apesar da intensa amizade que se desenvolveu entre o Psiquiatra de Zurique e o Pai da Psicanálise, ambos tinham personalidades totalmente opostas. Jung (2008) se mostra mais aberto e receptivo a novos estudos, a novas ideias, tanto que, sua grande abertura para novos métodos de estudo fizera com que ele fosse taxado de místico. As atitudes exageradamente positivas para com a religião, por parte de Jung (2008), de certa forma, irritou Freud (2006), o qual desejava que a Psicanálise permanecesse dentro dos rigores científicos baseados na postulação da teoria sexual.

A rígida postura de Freud (2006) e as aventuras de Jung (2008) pelo mundo místico levaram a ruptura da amizade entre os dois estudiosos. Não é nosso dever aqui postular a atitude de Jung como certa ou errada, mas sim, analisar a rígida postura de Freud contra qualquer tentativa de mudança em seu pragmatismo cientificista.

Como dito anteriormente, Freud (2006) jamais deixou de pensar na religião. Portanto, muitos de seus escritos e ensaios foram dedicados ao tema. Analisemos uma de suas obras que aborda a temática.

3.            A Religião como Enaltecimento da Figura Paternal e como uma Neurose Obsessiva

A primeira obra de Freud que, de fato, trata exclusivamente do problema religioso, chama-se “Atos obsessivos e práticas religiosas”, de 1907. Porém, a temática já havia sido discutida em trabalhos anteriores, como em “Psicopatologia da Vida Cotidiana” (1901), em que escreve:

Grande parte da concepção mitológica do mundo, que alcança as religiões mais modernas, não passa de psicologia projetada no mundo eterno. O obscuro reconhecimento… de fatores e relações psíquicas no inconsciente está envolvido – é difícil exprimi-lo em outros termos, e aqui a analogia com a paranóia tem de vir em nossa ajuda – na construção de uma realidade sobrenatural, que se destina a ser transformada uma vez mais pela ciência em psicologia do inconsciente. Poderíamos nos aventurar a explicar dessa maneira os mitos do paraíso e da queda do homem, de Deus, do bem e do mal, da imortalidade e assim por diante, e a transformar a metafísica em metapsicologia (apud PALMER, 2001, p. 25).

Sabe-se que grande parte da teoria de Freud girou em torno da neurose e do recalque de pulsões sexuais. Não é possível dissertar, aqui, sobre as teorias freudianas, visto que seria uma tarefa demasiadamente extensa. Porém, quando Freud relata que a religião é uma neurose obsessiva, está se referindo, neste caso em particular, aos atos religiosos, ou seja, aos rituais.

É importante ressaltar que Freud faz da sua teoria sobre o Complexo de Édipo a chave principal para quebrar o enigma da religiosidade presente na humanidade. Tal teoria está mais presente nas suas obras subsequentes, como em “Totem e Tabu”, que será analisada posteriormente. Refletindo rapidamente, o Complexo de Édipo acontece inconscientemente em toda a criança por volta dos seis anos de idade. Tal teoria expõe que, antes dos seis anos de idade, a criança vive um “drama” inconsciente, marcado pela disputa ora pela atenção de sua mãe, seu primeiro objeto de prazer-sexual, ou ora pela de seu pai, seu primeiro objeto de disputas. Resumidamente, a criança vê em sua mãe um objeto de prazer, seja na amamentação, nos toques e carícias, na proteção e assim por diante. Já seu pai é imaginado, inconscientemente, como um intruso, que retira toda a atenção da mãe para com a criança, pois, sendo casado com ela, também deseja atenção por parte dela. Ou seja, Freud quer ilustrar, com o mito de Édipo, que a criança vivencia esse dualismo entre o amor da mãe e o antagonismo com o pai, a criança deseja, sempre por vias inconscientes, eliminar seu pai e tomar sua mãe para si.  Mesmo vivenciando esses sentimentos inconscientes de destruição para com a figura masculina, a criança também vivencia o receio de magoar esta figura, ou seja, a criança, embora queira toda a atenção de sua mãe para si, também considera o pai como uma figura de importância, enaltecendo-a. É concebido que, neste período, a figura do pai equilibra-se entre o amor e o ódio por parte da criança.

Todo esse Complexo inconsciente é resolvido por volta dos seis anos de idade, quando a criança desloca suas energias libidinosas para identificar-se ora com a figura de seu pai, ora com a figura de sua mãe.

Fromm (1966) aborda que toda essa característica do Complexo de Édipo é fundamental para explicar o cerne da teoria freudiana sobre a religião, visto que a figura do pai assume uma enorme importância nos primeiros anos do sujeito, bem como, é a figura central das maiores religiões, ou seja, a figura de Deus, como figura do pai. 

Rizzuto (2001) também mostra que as teorias de Freud ligam todas as crenças religiosas à relação da criança com seu pai, mas a figura da mãe, nos processos psicodinâmicos de formação das crenças e dos sentimentos religiosos, está notadamente ausente. A citada autora reforça que os escritos de Freud sobre a origem das religiões afirmam que Deus não é mais do que uma criança infantil derivada de uma visão enaltecida do pai, resquícios do processo edípico da infância. Assim, o fundador da Psicanálise sustenta que nossa sociedade está toda envolvida por uma cultura patriarcal ou falocêntrica, devido às nossas vivências inconscientes infantis do Complexo de Édipo e do enaltecimento do pai.   

O que não se pode negar é que nossa sociedade foi e ainda é uma sociedade voltada para a figura masculina. Infelizmente existe uma drástica diferença entre as figuras masculina e feminina; a primeira ainda é mais valorizada do que a segunda, sobretudo, no âmbito do trabalho, em que os homens recebem salários mais altos do que as mulheres. É baseado nesse falocentrismo que Freud defende suas teorias das religiões que, segundo ele, são, nada mais nada menos, do que uma crença enaltecida na figura paterna (Freud, 2006).

Quanto aos atos obsessivos, sabe-se que o ato obsessivo é um comportamento e/ou pensamento que atormenta o indivíduo, que é levado a cumprir certos rituais para amenizar um pensamento que atormenta sua consciência. Por exemplo, uma pessoa que tem o ato obsessivo de lavar as mãos de dez em dez minutos e que, caso não cumpra esse ritual, pensamentos negativos permearão sua consciência, como, por exemplo, “caso não lave as mãos eu posso contrair uma doença”, entre outras coisas. Assim, após períodos de tormento mental, o sujeito lava as mãos para aliviar a culpa e a tensão de, porventura, ter, um dia, contraído uma doença, por não ter as mãos limpas. Assim, esses pensamentos formam um círculo vicioso, levando o indivíduo o a um jogo de culpa, medo, ansiedade e tentação de cumprir o ritual para evitar um eventual castigo, desastre ou doença, de acordo com o conteúdo do pensamento. 

Palmer (2001) nos diz que, sob as características dos pensamentos obsessivos, Freud formulou uma de suas primeiras teorias sobre a religião. Assim, foi levado a crer que os pensamentos dos neuróticos obsessivos são análogos aos rituais religiosos:

Tanto o fiel religioso como o neurótico obsessivo despendem horas na realização de certos rituais e, em ambos os casos, a omissão desses atos desperta sensações de aguda apreensão. Nos neuróticos, esses rituais assumem uma importância cerimonial e compulsiva (por exemplo, antes de ir para a cama, as roupas têm de ser dobradas numa ordem particular, os travesseiros organizados de uma maneira específica, e só depois disso se pode deitar), e todo desvio dessas formalidades aparentemente triviais resulta em intoleráveis ansiedades, predominando um sentimento de culpa no caso de não serem realizadas. Essas cerimônias tornaram-se, na realidade, “atos sagrados”: nenhuma interrupção é tolerada e elas são executadas invariavelmente em particular. Mais ou menos a mesma coisa pode ser observada nas práticas religiosas. Porque, apesar de estas últimas terem um caráter público e comunal, também encontramos os mesmos dramas de consciência quando alguma ação ritual é omitida, a mesma necessidade de proteger o ritual da interrupção, uma meticulosidade semelhante com relação ao detalhe, a mesma tendência do ritual no sentido de tornar-se cada vez mais complexo, e a coisa não para por aí….Em outras palavras, em ambos os casos o neurótico obsessivo vivencia tanto um profundo sentimento de culpa como uma sensação imprecisa de ansiedade expectante, uma expectativa de infortúnio (PALMER, 2001, p. 26).  Voltando à questão estabelecida por Freud, de que a religiosidade, com seus rituais, é uma grande neurose obsessiva, o estudioso, em sua obra “Um Estudo Autobiográfico”, relata:

Eu próprio atribuí um valor mais elevado a minhas contribuições à psicologia da religião. Que começaram com o estabelecimento de marcante similitude entre as práticas religiosas ou ritual. Sem ainda compreender as ligações mais profundas, descrevi a neurose obsessiva como uma religião particular distorcida e a religião como uma espécie de neurose obsessiva universal (FREUD, 2006, p. 68).

De fato, Freud (1976), quando escreve o trabalho “Atos Obsessivos e Práticas Religiosas”, em 1907, atribui à religião a característica de ser uma grande neurose obsessiva universal, ou seja, afirma que todas as práticas religiosas são, na realidade, uma espécie de neurose universal em que os fiéis são como aqueles obsessivos, que necessitam cumprir os rituais religiosos, como curvar-se perante o altar, ir às missas e cultos uma vez por semana, entre outros costumes. Caso não cumpram esses atos, acabam por sentirem-se culpados e acreditam que possivelmente serão castigados pela força divina, tendo um grande desconforto psíquico.

Apesar de este ser um dos primeiros trabalhos de Freud concernentes à religião, Bernstein (2000) assinala que o pai da Psicanálise considerava que o estudo sistemático do fenômeno religioso não é uma tarefa fácil e que não existe uma descrição simples da dinâmica das origens da religião.

Conclusão

Sabemos que a Psicanálise evoluiu com o passar das décadas, entretanto, a essência e a enorme contribuição que Freud forneceu ao campo científico da Psicologia, jamais se perderam, e seu nome ainda é lembrado e exaltado em diversos campos da ciência.

Quando o estudioso pesquisar as opiniões de Freud, ou de qualquer outro intelectual, deve ater-se às condições históricas com as quais o referido personagem conviveu. Por isso, atacar Freud pelo seu ateísmo e rejeição da religião, e deduzir que esteve completamente errado em supor que a ciência superaria a religião, é um grande engano e uma grande desconsideração para com a figura do pai da Psicanálise. Com efeito, Freud não esteve errado em supor que a religião seria superada pela ciência, mas enganou-se em supor que toda religião seria superada pela ciência. Não é negado que o avanço científico, posterior e anterior ao movimento psicanalítico, “desmascarou” muitos dogmas religiosos e retirou da religião o seu posto, até então soberano, de detentora do conhecimento científico e intelectual. 

Sendo assim, podemos citar figuras como Voltaire, Newton, Descartes, Comte, como cientistas que ajudaram a demonstrar a capacidade humana de desvincular-se da religiosidade e construir uma ciência que fosse puramente empírica. Os mesmos pressupostos destes estudiosos foram aqueles postulados por Freud, pelos quais merece ser destacado como um profundo defensor da verdade científica.

Os escritos de Freud sobre a religiosidade muito influenciaram outros campos da ciência como a Antropologia e, principalmente, e escola do grande antropólogo francês Claude Lévi Strauss.  Além do mais, podemos assegurar com convicção que se Freud não se desvinculasse da religião, ou seguisse o Judaísmo de seus pais, talvez nunca tivesse criado a Psicanálise. A necessidade de seu ateísmo foi fundamental para que ele pudesse explorar campos até então considerados tabus e completamente encobertos pela moralidade religiosa. Um destes campos é, sem dúvidas, o da sexualidade.

E, por fim, a figura de Sigmund dentro da ciência é uma das mais importantes, e ele deve ser um dos personagens mais valorizados pela sua estrita cientificidade. Ele trabalhou com material subjetivo, ou seja, investigou o mais profundo do psiquismo humano até “descobrir” o inconsciente e trazer a luz da ciência a um campo até então não explorado, porém, todo o contexto que envolveu este brilhante estudioso estava alicerçado em um puro cientificismo, que ele adotou mesmo como um estilo de vida (Gay, 1992). 

Se, durante sua vida, Freud já fora criticado por suas teorias, e ainda hoje muitas vezes o é, mesmo assim, ninguém terá a audácia em afirmar que Freud em nada contribuiu para o crescimento científico da humanidade. Seja como for, tal figura está e sempre estará imortalizada como uma das maiores mentes do século passado.

Assim, este artigo deve servir de ferramenta ao entendimento do leitor, que muitas vezes despreza a figura Freud por seu ateísmo. Para isso, este artigo instigou a observar o contexto em que Freud viveu, para assim, compreender suas teorias e posições ideológicas.

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Referências

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* Marcel Henrique Rodrigues é Aprendiz Maçom na Loja Fernando Pessoa 4001 – Rito Moderno – GOSP (2023)
Centro Universitário Salesiano de São Paulo- UNISAL

**Luís Antonio Groppo é Professor do Centro Universitário Salesiano de São Paulo e Pesquisador do CNPq

Publicado em COGNITIO-ESTUDOS: Revista Eletrônica de Filosofia, ISSN 1809-8428, São Paulo: CEP/PUC-SP, vol. 10, nº. 2, julho-dezembro, 2013, p. 247-258  


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