Tradução José Filardo
René Guénon (1886-1951) teve uma relação tão rica quanto complicada com a maçonaria. Iniciado, mas pouco ativo em loja, marcados pela influência hindu, converteu-se ao Islã e membro de uma irmandade Sufi, ele verá na maçonaria um motor de renovação espiritual, propagando uma visão tradicionalista da Ordem.
O julgamento severo sobre o Ocidente imediatamente ao pós-guerra em Oriente e Ocidente (1924) e A Crise do Mundo Moderno (1926) foi tristemente confirmado pelos fatos, objetos da constatação de Reino da quantidade e os sinais dos tempos (1945); o estado do mundo contemporâneo não o desmente. Duas instituições tradicionais escaparam, segundo René Guénon, do desastre intelectual e espiritual: a Maçonaria e a Igreja Católica, espinhas dorsais, cada uma em seu campo, do universo mental dos europeus. À primeira cabia o puro intelecto metafísico: o esoterismo; à segunda, a salvação e a legitimação da ordem social.
Ele havia publicado seus primeiros livros nas coleções dirigidas pelos conhecidos tomistas, Jacques Maritain (1882 -1975) e Gonzague Truc (1877-1972) e colaborou entre 1924 e 1926 com uma revista eclesiástica, Regnabit, sobre as questões de simbolismo; tudo acabaria por terminar bastante mal. No lado da Maçonaria, ele produziu uns vinte artigos, entre 1909 e 1950, relacionados com o simbolismo e rituais, a fim de esclarecer a unidade profunda de todas as tradições iniciáticas autênticas. Ambas as instituições tinham em comum, além da abordagem intelectual, envolver a vida em uma prática ritual que, diante das relações que elas tinham, tornavam delicada a abordagem de Guenon. Ele via, todas as duas, como expressões degradadas da tradição universal primordial, razão pela qual “a ajuda do Oriente” era necessária, a fim de recuperar a força e vigor; a metafísica hindu do Vedanta não-dualista Vedanta lhe parecia ser a mais adequada para essa finalidade e ele considerava seus livros como a expressão da mais pura verdade mantida viva na Índia. Se o universalismo de sua visão agradava aos maçons que tinham estado atentos ao retorno do pensamento simbólico com Oswald Wirth (1860-1943) (1) ou Goblet d’Alviella (1846 -1925), em A Migração dos símbolos (1887), por outro lado, a função autoproclamada de porta-voz da “Doutrina” devia levantar suspeitas.
O Guénon maçom (2)
O jovem estudante de Blois “que subiu até Paris” no curso científico preparatório abandonou rapidamente os estudos para mergulhar no mundo do ocultismo, aderindo à diferentes organizações da rede implantada e firmemente mantida por Papus (1865-1916): iniciado em outubro de 1907 na Loja Humanidade do rito nacional espanhol (passou rapidamente ao Memphis Misraim), mestre em 1908, ele subiu aceleradamente os altos graus ao abrigo do Capítulo e Templo da maçonaria Swedenborguiana de John Yarker (1833-1913), recentemente integrada na rede de Papus e se sentará com personalidades condecoradas com o cordão de Cavaleiro Kadosh, no convento (assembleia estatutária) espiritualista e maçônica de 1908. Mas, Guénon rompeu com essas organizações nesse mesmo convento e procurou integrar-se à Maçonaria “regular” com alguns amigos. Os arquivos da Loja Trabalho e Verdadeira Amigos Fieis, No. 137 da Grande Loja da França, da qual Wirth era Venerável de honra, relatam seus pedidos de regularização em fevereiro de 1910; embora seus conhecimentos tivessem sido considerados notáveis, os candidatos foram adiados depois de relatórios muito negativos emanados de sua loja de origem (3). Uma nova tentativa só de Guenon foi feita em outubro 1911 junto à Loja Corações Unidos Indivisíveis, embora pareça ter integrado a loja Thebah a partir de 1910 onde tomou a palavra em 04 de abril de 1912 sobre uma questão de simbolismo. A mão de Wirth que tinha apreciado o valor da jovem postulante era visível por trás dessas providências; ele abriu-lhe as colunas do Simbolismo para “Sobre o ensino iniciático”, em janeiro de 1913 (conferência feita na loja Thebah) e Guenon publicou, na linha de Wirth, uma série de artigos sobre maçonaria na revista Gnose que ele havia criado em 1909 (4). Da mesma forma, em A França Cristã Antimaçônica (isso mesmo!) com uma série dedicada ao “Rito Escocês Retificado”, à “Estrita Observância …”, “Sobre os Superiores Desconhecidos e o Astral”, “Sobre o Grande Arquiteto do Universo”(5).
Nesse mesmo ano de 1912, Guénon tinha contraído um casamento religioso e se inscrevera na Sorbonne em filosofia onde ele se ligaria ao grupo Maritain através Noelle Maurice Denis (1897-1969); então, ele parou de frequentar as lojas e Wirth comentaria ironicamente sobre “metais preciosos demais …” (6) para serem saqueados. Nesse meio tempo, a um amigo holandês Franz Vreede (1887-1975), Guénon confessou em 1921 sua condição de maçom, agregando seu ingresso em um “Mestrado”, agrupamento de mestres de todos os graus, cuja tradição remontava à época artesanal e que tinha se perpetuado em segredo… (7). Breve interlúdio então, mas cuja importância iria se revelar pouco a pouco.
A maçonaria na construção doutrinária de Guenon
Na falta de um livro inteiro que lhe tenha sido consagrado, a instituição é onipresente na obra pelo número de artigos acima mencionados, aos quais se juntam vinte e cinco resenhas de livros e mais de oitenta artigos (8), mas especialmente na argumentação. Um capítulo inteiro lhe é dedicado em seu primeiro livro A Teosofia, a história de uma pseudo-religião (1921), publicado em uma coleção dirigida por J. Maritain; ali ele dissocia da “regular”, com as precauções de praxe, as maçonarias marginais, derivadas e assemelhadas a essas “pseudo-religiões”. Se a “constituição da elite” necessária para o início do Ocidente (Capítulo 3 de Oriente e do Ocidente, 1924) lamentava o declínio da Ordem portadora da “Tradição” de forma latente e residual, o Esoterismo de Dante (1925) consagrava seus capítulos três e quatro a uma exegese simbólica do grau de “Príncipe da Misericórdia” do rito escocês relacionada com a Fede Santa e ao esoterismo cristão vivido na época de Dante. A análise da correspondência entre a tríade Extremo Oriental “céu / terra / homem” na sociedade secreta chinesa de Tien-ti-houi e o simbolismo maçônico foram o tema de A Grande Tríade (1946), o último livro publicado em sua vida. O Capítulo 15 “Entre o esquadro e o compasso” analisa a semelhança de sentidos entre “o meio invariável” da tríade e a estrela flamejante representando o “homem verdadeiro”, ponto culminante dos “pequenos mistérios” entre as ferramentas simbólica do ofício. Um artigo de 1950, “A letra G e a suástica” completaria essa abordagem oriental. Finalmente, Guénon produziria onze artigos entre 1938 e 1949, sobre o simbolismo construtivo, nos quais a maçonaria era tomada como a base tradicional por excelência (9), na forma como ele tinha procedido em relação ao hinduísmo com o Vedanta no centro da doutrina.
Esta abordagem sábia e ao mesmo tempo luminosa que colocava a alvenaria no centro de um sistema mundial de renovação espiritual ia além do que havia trazido a obra de Wirth e seduziria muitos irmãos; a referência a Guénon tornou-se inevitável. Ao mesmo tempo, muitos de seus leitores viam na maçonaria o lugar da “realização” que a adesão à obra implicava. A instalação de Guénon no Cairo em 1930, onde ele praticaria a religião muçulmana “exotérica” influenciou suas escolhas. A questão se deslocou em uma relação quadrangular Vedanta / Maçonaria / Igreja católica / Islã.
Do pensamento ao viver
As coisas não iam muito bem, quando Marquès-Rivière, que realizou o filme de propaganda antimaçônica Forças Ocultas publicado em 1931, A Traição espiritual da Maçonaria, a equipe que administrava em Paris os Estudos Tradicionais (Véu de Isis até 1936) preparou um relato favorável, e foi necessário que Guenon se mostrasse com raiva para dissuadi-los. Fritjhof Schuon (1907-1998), que liderou o primeiro tariqah (irmandade) Sufi de inspiração guenoniana era, por seu lado, hostil à maçonaria.
A morte de Wirth mudaria a situação; Marius Lepage (1902-1972) ligado aos pontos de vista de Guénon, assumiu a direção do Simbolismo (com Johannis Corneloup até 1955); fiéis como Jean Tourniac (1912-1995), membro da Grande Loja Nacional Francesa ou Denys Roman (1901-1986) estavam entre os artesãos mais ativos da difusão de sua visão tradicional nas lojas. Uma oportunidade favorável se apresentaria em 1947, quando o Grão-Mestre da Grande Loja da França, Michel Dumesnil de Gramont (1893-1953) deu impulso à abertura de A Grande Tríade, a primeira loja “Guenoniana”. A questão dos rituais foi então objeto de correspondência intensa, principalmente de D. Roman, com o Cairo (10), cujo resultado foi proposto no convento de 1948, sem sucesso. O sonho de uma reforma abrangente da maçonaria foi rapidamente agastado e o instigador ficou decepcionado. Além disso, o funcionamento da loja A Grande Tríade era caótico; o apoio institucional tinha atraído muitos dignitários às suas colunas: Yvan Cerf presidia tudo enquanto Grande secretário da potência; Antonio Coen (1885-1956), futuro Grão-Mestre, o próprio Grão-Mestre… cujas preocupações estavam longe da “ortodoxia tradicional” concebida por Guenon. Finalmente, a Loja “da moda” atrai um bom público, mas o conhecimento da obra do mestre permanecia aleatório, parcialmente compensado pela ação de D. Roman, de Alexander Mordvinoff (co-fundador, que morreu em 1950) ou de maçons recentes enviados por Guenon: Jean Reyor (1905-1988) (11), Roger Maridort (1902-1977). Corneloup, alto dignitário do Grande Oriente fez um relato crítico de suas visitas em Eu não como chamar (1971), incorrendo na ira de D. Roman em 1981: René Guénon e os destinos da Maçonaria.
A necessidade de uma prática religiosa afirmada por Guénon em um artigo tardio de 1947 viria ainda a complicar as coisas: qual era o status para os católicos em loja? J. Tourniac agarrou-se à reconciliação entre Igreja e Maçonaria dentro da GLNF que baseava sua regularidade na crença em Deus; Marius Lepage nela ingressou em 1963 após sua ruptura com o Grande Oriente, depois da visita em loja do padre jesuíta Michel Riquet (1898-1993). Sabemos como a porta entreaberta pelo Concílio Vaticano II foi fechada pela declaração de Ratzinger (1983).
A Loja Os Três Anéis unindo as três religiões do Livro funcionava sob os mesmos princípios das relações esoterismo / exoterismo. Os problemas surgidos para os muçulmanos guenonianos em loja; Maridort se convertera ao Islã esotérico e Sufi, tinham a ver com a validade da mistura de tradição e com as lutas internas entre o ramo de Schuon e os dissidente ou outros. Outras tentativas, inclusive na maçonaria feminina e nas “lojas selvagens” surgiram, vindas às vezes de grupos organizados, dissidentes de tariqah ou outros, sem nunca criar uma corrente de pensamento durável.
No total, se a contribuição incomparável de Guénon em matéria de simbolismo conserva um lugar especial nos trabalhos das oficinas, a ambição de assentar aí a arca espiritual do Ocidente falhou; a tradição do liberalismo inerente à instituição se prestava mal a um magistério, venha de onde vier.
O erro operativo de René Guénon. Os limites de uma visão
Extrato de “René Guénon e as origens da Maçonaria” por Roger Dachez em Estudos de história do esoterismo (Ed. Cerf)
“Em diversos lugares da sua obra, […] Guénon pronunciou-se claramente sobre a filiação existente entre a Maçonaria moderna, especulativa, e a maçonaria antiga, medieval e operativa. Melhor ainda, ele fez dessa continuidade institucional – e foi ela apenas sutilmente detectável […] a condição sine qua non da legitimidade tradicional e da regularidade iniciática da maçonaria. Mas, sobre este último ponto, ele pisou claramente o terreno da história e deliberadamente solicitou as fontes. […] O olhar de René Guénon sobre as origens da Maçonaria, através de uma vasta obra, complexa e muitas vezes provocadora, tem limitações que dificilmente é possível ignorar. O primeiro é o tom por vezes peremptório que ele usa e que, por vezes, leva a julgamentos precipitados em áreas onde a verificação de dados levaram a contradizer de maneira convincente, nos parece, algumas de suas teses. Poder-se-ia observar, no entanto, que se trata, neste caso de uma característica bastante geral – e não a mais atraente – do discurso Guénoniano, independentemente do tema abordado. O segundo limite, que é talvez só o desenvolvimento do primeiro, é uma certa ambiguidade, para não dizer um autêntico equívoco. […] Sobre a filiação operativa da Maçonaria, o essencial é que ele pode afirmar não era objeto de praticamente nenhum debate no meio “racionalista e acadêmico” de seu tempo, e estava baseada em uma documentação clássica e verificada sobre a qual ele não tinha qualquer exclusividade e que nada lhe devia: o inventário de sua biblioteca fornece a prova. Guénon, neste caso, portanto, recorreu à opinião corrente, nada mais.
Na maioria das vezes, não sabemos em que registro ele se situa. Em muitos lugares e em sobre assuntos muito diferentes, ele também indicava não achar que devia se justificar ou citar suas fontes ou referências; em uma palavra, estabelecer a autoridade em virtude da qual ele se pronunciava. Este ar de mistério que Guénon adorava, por vezes, se dar, deixando supor que ele tinha conhecido experiências raras e se beneficiado da contribuição de correspondentes ou informantes fora do comum, é sem dúvida para muitos o fascínio que ele não cessa de exercer, ainda hoje, sobre muitos dos seus leitores.”
Publicado EM 11 de outubro de 2016 – em http://www.fm-mag.fr/article/rene-guenon-1336