Bibliot3ca FERNANDO PESSOA

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Anais do Colégio Invisível – VIII – O Dilema Filosofal

 JOSCELYN GODWIN

Tradução: S.K.Jerez

 

Em todas as gerações, uns poucos, mais do que “crer”, conheceram algumas respostas para as grandes questões da humanidade. Seu saber é, evidentemente, difícil de transmitir para o resto de nós, mas seu brilho e sua certeza operam certamente como um farol e uma recordação do que um homem ou uma mulher podem ser. Eles ocupam seu lugar em uma sociedade ordenada e tradicional; como Catarina de Siena ou Nicolau de Cusa, impõem respeito a reis e papas, e fixam um modelo de santidade e sabedoria ao qual o clero aspira (se é que não enlouquece de ciúmes). Mas, o que fazer quando o equilíbrio espiritual do mundo se despedaça como ocorreu no século XV com o cisma do Oriente e Ocidente e a influência do humanismo; no século XVI, com a Reforma, a Contrarreforma e as Guerras Religiosas; e, no século XVII, com a caça às bruxas, a Guerra dos Trinta Anos e a revolução científica?

As evidências apontam em duas direções. Alguns Sábios, nos bastidores, se empenharam em curar e renovar a sociedade. Outros trabalharam para iluminar os indivíduos. Os primeiros se destacaram no rosacrucianismo, no começo do século XVII; os últimos, dos quais nos ocuparemos no próximo artigo, na alquimia e a teosofia.

O “dilema filosofal” de nosso título consiste em optar por um desses dois campos operativos: pelo político ou pelo pessoal. Ou podemos dizer assim: “É possível dar um remédio para o estado da humanidade em seu conjunto, ou seu estado é tão crítico que isso só é possível no plano individual”?

Não é preciso ser muito sábio para que esta pergunta nos perturbe. Respondê-la exige uma sondagem de nossas mais profundas convicções sobre a natureza humana e sobre o lugar que o homem ocupa sobre a terra. Por exemplo, cremos que a vida na Terra é o simples prelúdio de uma vida muito mais importante que começa depois da morte? Se é assim, as condições sociais deste vale de lágrimas são um assunto secundário e, inclusive, uma distração. Cremos, como a maioria dos cristãos, que todos têm uma alma individual e imortal ou, como alguns pagãos, que a imortalidade pessoal só é ganha com titânicos esforços? Existe uma clara diferença entre a existência material e a existência espiritual, ou o corpo e a alma formam parte de um continuum que nossa falsa percepção divide? Devo me preocupar com a humanidade em seu conjunto, ou devo me preocupar com minha própria salvação, deixando o resto nas mãos da Divina Providência? Sou uma unidade à parte, dono de minha própria história espiritual, um estrangeiro ou exilado nesta Terra (este é o ponto de vista gnóstico), ou pertenço a uma tribo, uma raça ou uma espécie com uma macro-história de evolução passada e futura?

No século XVI houve na Europa três correntes doutrinais principais, encarregadas de livrar as pessoas do incômodo que essas questões causavam. Os católicos eram aconselhados a deixar pesadas questões teológicas nas mãos da Igreja, como representante da vontade de Deus na Terra, e a viver virtuosamente seguindo seus ensinamentos. Ao contrário, Martinho Lutero sustentava que todos tinham direito de buscar suas próprias respostas, mas que Deus as havia colocado nas Escrituras de maneira inequívoca. Os seguidores de João Calvino se esmeravam em dividir à humanidade em grupos predestinados, integrados pelos salvos e pelos condenados, e confiavam em que sua conduta e sua sorte lhes demonstrassem que se encontravam entre os primeiros. Em meados daquele século, as três facções se odiavam de morte, enquanto os judeus, que aguardavam pacientemente o seu Messias, faziam todo o possível para ficar fora desse fogo cruzado.

Será sempre um mistério como a religião, cujos principais mandamentos são o amor a Deus e o amor ao próximo, chegou a uma situação tão crítica. Não obstante, pode-se achar uma pista nas crenças enxertadas na temática evangélica. Qual o estoico ou platônico ilustrado que pôde, alguma vez, ter levado a sério a doutrina da predestinação ou da transubstanciação, da infalibilidade das Escrituras, ou da compra de indulgências para encurtar nossa estadia no Purgatório? Qual o cristão reflexivo que pôde deixar de duvidar de semelhantes coisas? Jamais ficou mais bem demonstrado o axioma segundo o qual quem não se sente seguro de suas próprias crenças costuma reagir com dogmática agressividade.

A primeira solução grande e contundente do dilema filosófico foi a de Inácio de Loyola, que fundou a Companhia de Jesus em 1540. O método dos jesuítas pegou o touro pelos chifres. No plano pessoal, preparou seus membros com o uso da imaginação ativa (ver o capítulo X desta série) para convertê-los em decididos guerreiros defensores de Cristo e da fé católica. A dúvida não tem espaço no final dos Exercícios Espirituais; aquilo que ensinaram o discípulo crer, ele agora sabe, e uma fé irremovível o prepara inclusive para o martírio.

Os jesuítas se propunham, no plano coletivo, a converter o mundo inteiro à fé católica. Devido ao fato de que eram mais inteligentes que algumas outras ordens, compreendiam que era melhor fazer isso com sigilo que com violência e fogueira. Por esse motivo, os jesuítas ensinavam celebrando a glória e variedade do mundo criado por Deus. Apoiando-se na natural curiosidade dos jovens, estimulavam os efeitos teatrais (que são um ramo da imaginação) e as ciências aplicadas. Em tempos de liberalidade religiosa, até os protestantes enviavam seus filhos às escolas dos jesuítas. Os missionários de Inácio, que integraram a primeira organização de caráter mundial, aprenderam os idiomas e as religiões de seus países anfitriões, e logo adaptavam convenientemente suas estratégias para convertê-los. Às vezes quase “chegavam a ser autóctones” à medida que se infiltravam, e seus informes são uma fonte valiosíssima de caráter histórico-etnográfico. Mas sempre dominava a firme vontade de se levar a cabo uma única intenção; e se utilizou isso, dizem os críticos dos jesuítas, para justificar meios duvidosos e sinistros. Também nos perguntamos se tem alguma validade o “conhecimento” obtido mediante os Exercícios Espirituais, ou se é apenas uma fanática sobre estimulação de respostas receitadas para questões eternas.

Apenas podemos comparar a poderosa ordem jesuíta com as combinações caseiras de alguns amigos que lançaram o movimento Rosacruz no segundo decênio do século XVII. Não obstante, os dois tratados, a Fama e a Confissão dos Irmãos da Rosa-Cruz, caíram no fértil solo de uma Europa ávida de alimento espiritual que estivera por cima e além do que as igrejas tinham que oferecer. Assim foi que se criou um novo mito, o de uma irmandade secreta de sábios iniciados que autenticamente desejavam o melhor para a humanidade e que, nos bastidores, trabalhavam para gerá-lo. Eram muitas, e ainda o são, as pessoas que creem nisso.

Os manifestos rosa-cruzes circularam em manuscritos desde 1611 e logo apareceram impressos em 1614 e 1615, seguidos em 1616 por seu complemento, a novela fantástica as Bodas Químicas de Christian Rosenkreutz. Os manifestos tratavam os temas míticos de um viajante que leva para a Europa os ensinamentos secretos do Oriente, da sepultura de seu cadáver e de sua sabedoria, e da abertura de sua abóbada cento e vinte anos depois, a fundação de uma ordem de sábios que, após viajarem incógnitos pelas nações como médicos que curavam o corpo, também se empenharam em curar a alma da Europa; e em anunciar que já era tempo de renascer.

Os escritos rosa cruzes são produto de um meio luterano com influências de Paracelso e da alquimia. Afirmam que os Irmãos obtiveram sua sabedoria de duas fontes: da Bíblia e do Livro da Natureza, e conclamam o mundo a agir da mesma maneira. A hierarquia católica não é considerada e não ligam para a condenação eterna. As Bodas Químicas combina a teosofia cristã com o culto de Vênus como Deusa da Natureza e patrona da alquimia. A epopeia do ressurgimento pagão, a Hypnerotomachia Poliphili, de Francesco Colona, exerceu forte influência sobre este texto.

A iniciativa rosacruz pertence ao movimento conhecido como Pansofia (literalmente, “sabedoria total”). Combina as ciências naturais com as sobrenaturais, e seu propósito é melhorar o mundo. John Dee foi um dos fundadores da corrente pansófica, e instou os artesãos ingleses a estudar matemática, em prol de um maior domínio da técnica, e logo prosseguiu seus próprios estudos “conversando com os anjos”. Paracelso fez outro tanto, e sua concepção acerca de uma Natureza viva, impulsionada pelas influências celestiais e sensível à alquimia, combinou-se com um sólido conhecimento do herbanário, da química e das Escrituras. Praga foi um campo fértil para a Pansofia; ali o Imperador Rodolfo II (que reinou de 1576 até 1611), permitiu toda a diversidade religiosa e estimulou todas as artes e ciências, especialmente as de caráter Hermético.

A genialidade do grupo rosacruz, deliberada ou não, consistiu em acertar os ingredientes de um mito durável. O paroxismo final das Guerras Religiosas, a Guerra dos Trinta anos (1618-1648), interrompeu esse mito, mas não o extinguiu. Os rosa cruzes podiam se fazer passar nos países protestantes como uma espécie de ordem jesuítica oposta: sem repressões nem dogmas, e acessível aos poderes ocultos que tanto assustavam as Igrejas. Não obstante, a Pansofia também chegou a ser contraria ao que era científico, no sentido de que ofereceu uma opção ante uma ciência que era cada vez mais positivista e materialista.

Um bom exemplo do dilema filosofal é a corrida de Elias Ashmole (1617-1692). Interessado, desde a sua juventude, nas ciências ocultas, especialmente na astrologia, iniciou como advogado e servidor público de futuro. Mas, havendo servido a Carlos I, teve que passar os anos seguintes na obscuridade. Durante quinze anos estudou a fundo as ciências naturais, especialmente alquimia, medicina e botânica; e também tópicos próprios de antiquários: heráldica, genealogia, numismática e história das ordens cavalheirescas. Em 1660, com a ascensão de Carlos II, Ashmole se dispôs novamente a ser um servidor público e se converteu em uma espécie de Mestre de Cerimônias da monarquia. Escreveu uma extensa história da Ordem da Jarreteira, dirigiu seus ritos e exerceu sua autoridade em todo assunto atinente à tradição e à ordem hierárquica.

Ashmole era como um chefe druida ou um Pontifex Maximus, nascido fora de época, sobretudo porque cada decisão sua era regida pela astrologia horária. Seu trabalho constituiu um monumento ao conceito tradicional e hierárquico de uma sociedade ordenada, governada por um rei ungido. Mas longe de ter visão estreita, era também um voraz colecionador de antiguidades e objetos curiosos de todo o mundo, tanto naturais como artísticos. Como o jesuíta Atanásio Kircher, que armou sua coleção etnográfica com a contribuição de missionários, Ashmole foi fundador de um dos primeiros museus. Também foi membro fundador da Sociedade Real. Em conformidade com o ideal pansófico de educação universal, doou suas coleções à Universidade de Oxford, que estariam posteriormente à disposição do público como o Ashmolean Museum.

Os sábios como Ashmole não são necessariamente piedosos ou santos, nem compartilham sempre dos ideais morais e igualitários correntes. Não se trata de quem tem razão ou não: fazem o que têm que fazer, porque veem com mais claridade e profundidade que o resto de nós. E talvez sirvam a deuses distintos dos nossos.

No século XVIII apareceu uma nova ordem Rosacruz. O primeiro que a descreveu foi “Sincerus Renatus” (Samuel Richter) em 1710, ficando institucionalizada em meados daquele século. Diferentemente da original, esta “Ordem da Rosa-Cruz de Ouro” era totalmente pública, e alguns de seus membros, encabeçados pelo Rei Frederico Guilherme II, da Prússia, exerciam efetivamente o poder. Da mesma forma que os demais “déspotas ilustrados” de seu tempo, viram com bons olhos a liberdade religiosa e algumas liberdades civis para as massas. Quanto aos seus próprios membros, a ordem empregava um detalhado sistema de rituais, graus, títulos e símbolos com os quais ascendiam os degraus da iniciação. A alquimia e, inclusive, uma sorte de evocação mágica despertavam muito interesse.

O novo rosacrucianismo abandonou suas polêmicas com o papa e sua igreja, que haviam sido características na Confissão original e, com o espírito do novo século, abriu suas portas tanto aos católicos como aos protestantes de diversas denominações. Manobrando entre os riachos gêmeos da religião sectária e o cientificismo, evitou a rivalidade existente entre ambos que, segundo a limitada descrição dos historiadores, caracterizou o Século das Luzes.

A Rosa-Cruz de Ouro estava estreitamente conectada com o ala mais hierárquica e cerimonial da Franco-Maçonaria, cuja história também ilustra nosso tema. Sabe-se que Elias Ashmole foi o primeiro iniciado em uma loja maçônica como membro não-operativo que se tem noticia. Isto ocorreu em 1646. Não parece difícil entender por que essa loja o atraiu. Segundo a lenda, tal como estudos recentes tendem a confirmar, quando a ordem dos cavaleiros Templários foi suprimida, e seu Grão Mestre, Jacob de Molay morreu, em 1307, na fogueira, alguns cavaleiros fugiram a Escócia e conservaram ali viva, secretamente, a tradição dos Templários. Naturalmente, tiveram que interromper o trabalho público que os havia convertido nos primeiros banqueiros internacionais e que assegurava que quem peregrinasse para a Terra Santa chegaria sãos e salvos. Por uma compreensível afinidade, se aliaram com a corporação escocesa de maçons e arquitetos, cujos mitológicos ofícios remontavam ao mais famoso de todos os edifícios da antiguidade, o Templo de Salomão. A corporação utilizou lendas sobre o templo e seus construtores para seus ritos iniciáticos e como recurso alegoricamente moralizador. Por exemplo, comparavam ao ser humano com uma pedra bruta e sem forma, recém-tirada da pedreira, a qual devia ser entalhada, modelada e polida para ser digna de ocupar seu lugar no edifício terminado. Implicitamente, a sociedade é um templo em processo de edificação.

As três iniciações, de Aprendiz, Companheiro e Mestre são, na Franco-Maçonaria tradicional, ritos quase sacramentais que produzem uma transformação na pessoa. Operam não só mediante alegorias (que consiste em substituir os nomes das coisas), mas também mediante símbolos. Um símbolo não tem significado único, como a Estátua da Liberdade: tem múltiplos significados e serve de elo entre os planos da realidade. Por exemplo, o piso com os quadrados brancos e negros do tabuleiro de damas, utilizado em alguns rituais maçônicos, não só significa a mistura do bem e do mal no mundo, mas também as duas forças complementares com as quais o cosmos foi criado. Estas forças se manifestam como a expansão e a contração, o dia e a noite, o homem e a mulher, e muitos mais pares de opostos. Conseguir compreender isso efetivamente é chegar a entender como o “Grande Arquiteto do Universo” opera desde o topo até o fundo de sua criação. Isso encerra também um profundo ensinamento sobre o bem e o mal.

Junto às ordens iniciáticas e hierárquicas, se desenvolveu outra espécie de Franco-Maçonaria, em compasso com as correntes secularizantes, progressistas, otimistas e igualitaristas. Para este modo de pensar, cujas raízes não reconhecidas se achavam nos Evangelhos, os obstáculos à fraternidade universal eram uma Igreja que ainda queria se aferrar a seu poder temporal, e as monarquias absolutistas. Algumas lojas, devido a sua reserva, sigilo e vastas ramificações, foram caldo de cultivo de livres-pensadores e, posteriormente, naquele mesmo século, de revolucionários. Por esta razão, periodicamente eram fechadas e proibidas pela lei, tal como ocorreu com os jesuítas. Ambos os movimentos representavam um fanatismo intolerável para quem procurava manter a sociedade em um frágil equilíbrio.

No início do século XIX, o ala socialmente progressista da Franco-Maçonaria havia substituído a ala iniciática e hierárquica, o que gerou várias ordens mágicas e maçônicas marginais. Por conseguinte, na atualidade, rosa cruzes e franco-maçons trocaram virtualmente suas posturas originais. Enquanto os rosa cruzes de 1614 queriam renovar o mundo, os grupos modernos que navegam nominalmente sob sua bandeira não têm repercussão social, mas brindam os indivíduos, por meio do ocultismo, de ensinamentos e práticas de aprimoramento pessoal. Enquanto a primitiva Franco-Maçonaria foi cavalheiresca e iniciática, agora é secular e filantrópica, sem perspectiva de transformação pessoal que vá além do plano ético. Sua influência, nos Estados Unidos de América, se acha diluída entre muitas outras fraternidades cujo conteúdo tradicional é ainda menor. Em resumo, os filósofos que deveriam se ver obrigados a nos reger ou, pelo menos, a ser o poder por trás do trono, fizeram suas malas e partiram.

Tradução: Héctor V. Morel, in http://www.symbolos.com/s21godwin_dilema_filosofal.htm

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