Bibliot3ca FERNANDO PESSOA

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1773: 250 anos atrás – Da primeira Grande Loja ao Grande Oriente da França

O Iluminismo Inspirador

Tradução José Filardo

-por Pierre Mollier

Antigo templo de Dole (Jura) – 1785 - Foto: Ronan Loaëc

A maçonaria moderna dita “especulativa” surgiu em Londres entre 1717 e 1730. Estabeleceu-se em Paris em meados da década de 1720. A partir de 1740, as Lojas se multiplicaram e surgiram nas grandes, médias e pequenas cidades do reino. Originalmente, elas constituem umas as outras. A Loja de Toulouse fundou a Loja de Carcassonne… que, por sua vez, transmite a luz maçônica a Narbona e assim por diante. No entanto, os maçons franceses tiveram um senso de sua unidade muito cedo e aspiraram manifestar a existência de uma comunidade maçônica. Isso exigia o reconhecimento de uma autoridade reguladora centralizada…

Mas, na realidade, esta nova autoridade luta para se impor. Uma primeira Grande Loja da França nasceu em meados da década de 1730, mas levaria várias décadas – com a formação do Grande Oriente de França em 1773 – até que finalmente existisse uma obediência ou potência no sentido que entendemos hoje. Esses anos de debates sobre a organização da Maçonaria trouxeram à tona noções e conceitos que ultrapassaram as fronteiras do mundo das Lojas.

Ali descobrimos as tensões e novas ideias que atravessariam o Iluminismo e entrariam para a história em 1789.

Quem foi a primeira autoridade maçônica francesa?

Os primórdios da maçonaria francesa – entre 1725 e 1740 – ainda guardam muito mistério. Quais foram as primeiras Lojas? Quando surgiu a primeira autoridade maçônica? Todas essas são questões sobre as quais o historiador tem pouquíssimas informações. Finalmente, devemos voltar ao mais antigo documento maçônico francês conhecido: Os Deveres de Todos os Maçons, um manuscrito datado de 1735 e preservado nos arquivos da Ordem Maçônica Sueca em Estocolmo. É uma tradução livre de passagens das Constituições de Anderson – às vezes um pouco adaptadas à situação francesa.

A certificação que conclui e autentica o manuscrito apresenta inequivocamente o Duque de Wharton como tendo sido o Grão-Mestre dos maçons na França. Wharton, que teve uma vida complicada, só viveu em Paris em 1728. Podemos, portanto, deduzir que a mais antiga autoridade maçônica francesa é atestada em 1728 na pessoa de Philip de Wharton. Recorde-se que ele tinha sido grão-mestre em Londres em 1723 e que, nessa qualidade, foi ele quem promulgou as Constituições de Anderson.

Em 1735, quando o manuscrito foi redigido, o grão-mestre era o jacobita James-Hector McLean, e ele claramente se apresentou como se fosse da linhagem de Wharton. Esta linhagem foi continuada por seus sucessores, o Conde de Derwentwater (1736-1738), o Duque de Antin – o primeiro Grão-Mestre francês – (1738-1743) e, finalmente, o Conde de Clermont, eleito em 1743 e que permaneceria Grão-Mestre até sua morte em 1771.

Mas o outro interesse do manuscrito de 1735 é que vemos pela primeira vez a expressão “Grande Loja” e menciona vários Grão-Oficiais que auxiliam o Grão-Mestre. É por isso que o aparecimento da primeira Grande Loja da França é geralmente datado de 1735, sendo o próprio termo “Grande Loja da França” atestado apenas em 1737.

A autoridade incerta e contestada da “primeira Grande Loja da França”

É realmente com a eleição do Conde de Clermont que o historiador começa a ter traços substanciais da atividade da “primeira Grande Loja da França”. Isso consistia essencialmente na concessão de patentes para a constituição de lojas e, a seu pedido, na emissão de diplomas maçônicos reconhecidos em todo o reino aos Irmãos que deles necessitassem.

Mas, uma vez constituídas – e além destes possíveis pedidos de diplomas – as lojas já não têm uma relação regular com a Grande Loja e vivem de forma bastante autônoma. Embora apreciem o fato de terem cartas constitutivas impressionantes ou belos diplomas com selos de uma instituição sediada na capital, elas parecem ter pouca consideração por sua autoridade.

No final, elas consideravam a Grande Loja como uma espécie de cartório da maçonaria francesa. É preciso dizer que a primeira Grande Loja da França é composta apenas por lojas parisienses e que as lojas provinciais não intervêm de forma alguma nem na designação dos grandes oficiais que a compõem, nem no seu funcionamento.

Numa época em que as comunicações eram demoradas e por vezes difíceis – uma diligência levava 12 dias para chegar a Paris partindo de Toulouse – era uma prática bastante difundida. Assim, por exemplo, as comunidades comerciais parisienses tradicionalmente representavam os ofícios às autoridades reais. Mas quanto mais avançamos no século, mais difícil é aceitar este estado de coisas. Assim, os irmãos Lyon se referem a ela como a “Grande Loja dos Mestres de Paris conhecida como França”, que diz tudo! Além disso, alguns desses Mestres de Paris não eram mais eleitos, mas consideravam sua venerança como um cargo do qual eram proprietários e não prestavam contas a ninguém.

No final da década de 1750 e início da década de 1760, a Grande Loja experimentou fortes tensões internas que levaram a divisões. A partir de 1761, dois e depois três grupos de mestres parisienses apresentaram-se como “a Grande Loja”. Essas divisões também foram o resultado de rivalidades entre organizações de alto escalão: o Conselho dos Cavaleiros do Oriente, o Conselho dos Imperadores do Oriente e do Ocidente, o Colégio dos Grandes Escoceses de Santo André da Escócia, etc.

Diante dessa situação caótica, em 1766 a Grande Loja teve que cessar seus trabalhos e ficar adormecida “por ordem do governo”, sem dúvida por iniciativa de uma de suas facções temendo que um grupo rival prevalecesse. Além disso, apesar de várias reformas – em 1745, 1755, 1760 e 1763, -, a  primeira Grande Loja da França não conseguiu ter sua autoridade aceita pelas lojas do reino.

A única autoridade que eles realmente reconheciam era a do Grão-Mestre. É ele quem manifestava a unidade da maçonaria francesa. Mas é mais fácil multiplicar sinais de fidelidade a ele porque ele nunca intervinha na gestão da ordem. O mestrado de Louis de Bourbon-Condé, conde de Clermont, é apenas um patrocínio simbólico e bastante distante, muito à maneira do Antigo Regime. No entanto, foi sua morte, em 16 de junho de 1771, que marcou o início de um novo episódio nas tentativas de organização da maçonaria francesa: foi a origem da formação do Grande Oriente da França.

1771-1773: A formação do Grande Oriente da França

A morte do Grão-Mestre tornou necessário eleger seu sucessor. Maçons que lamentavam a crise institucional que a ordem vivia há anos e que aspiravam  finalmente ter uma autoridade reguladora, reconhecida e prestigiada, viram nela uma oportunidade para desbloquear a situação. Entre eles, um homem desempenhará um papel essencial e, finalmente, organizará nos bastidores uma operação bem preparada que ele implementará meticulosamente. Este homem era Charles de Montmorency-Luxembourg, um maçom muito empenhado desde pelo menos 1762.

Embora fizesse parte da mais alta aristocracia – os Montmorencys remontavam à Idade Média e ocupavam seu lugar logo abaixo das famílias dominantes na hierarquia do Ancien Régime –, ele desembarcou na arena da maçonaria onde a burguesia dominava e entrava em um verdadeiro jogo de aparato digno de nossas modernas “S.A.s” para, pouco a pouco, fazer triunfar seu projeto por meio de  negociação com as partes envolvidas. A primeira fase da manobra foi garantir uma inegável autoridade. Pouco depois da morte do Conde de Clermont, foi anunciado que a Grande Loja havia se reunido e que havia eleito – respeitando os últimos desejos do falecido que os teria expressado em seu último suspiro – o Duque de Chartres como Grão-Mestre. O primo mais próximo do rei, o jovem Luís Filipe de Orleães, Duque de Chartres e futuro Duque de Orleães, era uma das personalidades mais importantes do reino.

Ninguém poderia contestar, ou mesmo expressar a menor reserva, sobre esta eleição… o que, por consequência, legitimava quem a organizou. O Duque de Montmorency-Luxemburgo foi oficialmente designado como seu “adjunto”, ou seja, o homem que exercia a autoridade maçônica em nome do Grão-Mestre. Ao mesmo tempo, a Grande Loja adotou – mais uma vez – novos estatutos. Mas o processo fica atolado muito rapidamente por dois motivos:

No início, Louis-Philippe d’Orléans demorou a aceitar o posto de Grão-Mestre que lhe foi oferecido e, assim, não pôde ser instalado. Ele estava, de fato, em uma situação delicada. Tendo se oposto ao rei sobre a reforma dos parlamentos, ele estava em desgraça e proibido de comparecer à corte. Seria, portanto, inadequado realizar uma grande cerimônia em sua homenagem. Outra dificuldade era que todos sabiam que não era tanto “a Grande Loja” que se unira e colocara em marcha este processo como um dos grupos que se diziam parte dela, e as suas decisões claramente não despertaram de imediato uma adesão maciça das lojas.

O primeiro turno, portanto, estava apenas meio ganho. Montmorency-Luxemburg entendia que, enquanto dependesse apenas da boa vontade dos Mestres de Paris, de suas demandas e de suas brigas, ele dificilmente conseguiria avançar em seu projeto. Depois de alguns meses, a instalação do Grão-Mestre parecia possível. Por isso, convidou as lojas do reino a enviar um representante a este grande evento maçônico. Mas ele vacilou no texto da circular ao convida-los a fazê-lo, com um parágrafo indicando que também seria desejável que esses representantes das lojas fossem revestidos de poderes que os autorizassem a discutir os assuntos da Grande Loja, se necessário.

Tratava-se, pela primeira vez, de envolver os provinciais na gestão da Grande Loja. A queda do futuro Grão-Mestre em desgraça torna as coisas mais demoradas. Montmorency-Luxemburgo aproveitou isso para neutralizar a instrumentalização das altas patentes, fundindo a Grande Loja e o Conselho de Imperadores do Oriente e do Ocidente. Era preciso dotar a nova organização – batizada há alguns meses de Grande Loge Nationale de France, o adjetivo não é escolhido ao acaso – de estatutos. Naturalmente, o Administrador Geral convocou então esses representantes das lojas, que tinham acabado de receber seus mandatos, para discutir, elaborar e votar aquele novo texto.

Foi lançado, assim, o processo que levaria à transformação da antiga Grande Loja da França no Grande Oriente de França. Os historiadores muitas vezes o apresentaram – não sem razão – como um golpe de Estado da província maçônica contra Paris, organizado por Montmorency-Luxemburgo. Por convicção filosófica – e sem dúvida também um pouco por sentido político – o Administrador Geral propôs às lojas do reino basear a nova organização em dois princípios: a representação de todas as lojas – ou seja, e não mais apenas as oficinas parisienses; e eleição para todos os cargos.

Após seis meses de debates e votações, os representantes das lojas aprovaram os “Estatutos da Real Ordem da Maçonaria na França”, que organizavam o funcionamento da nova instituição maçônica. Ela foi imediatamente chamada “Grande Oriente de França”, o que significa que, pela primeira vez, todos os Orientes do reino eram – finalmente – parte dele.

Além disso, o novo Grande Oriente inaugurou o estabelecimento de relações permanentes com as lojas. Enviou-lhes circulares para informá-los de sua gestão dos assuntos maçônicos, e elas lhe enviavam informações regulares sobre sua composição e atividades.

No espaço de poucos meses, encontros, que reuniram representantes da burguesia esclarecida – como Lalande e Guillotin – e da nobreza liberal – como Montmorency-Luxembourg e seus amigos – criaram uma organização radicalmente diferente da antiga Grande Loja. Relativa separação de poderes, eleições e representação em todos os níveis, os princípios que presidiam o novo Grande Oriente da França eram e são, sem dúvida, inspirados nas ideias do Iluminismo que receberam uma primeira aplicação na França do século XVIII.

O historiador Pierre Chevallier observou astutamente: “A Assembleia Constituinte Maçônica […] encerrou suas sessões em 1º de setembro de 1773. Sem querer instituir uma comparação que seria excessiva com os Estados-Gerais de 1789, não se pode, no entanto, deixar de notar as analogias que um estado de espírito comum explica. Além disso, alguns anos depois, o Grande Oriente enviou uma circular às lojas para dar conta de sua atividade. A introdução deste texto é particularmente significativa: “Esclarecidas quanto aos seus verdadeiros interesses, as LL⸫ sentiram a necessidade de serem governadas de maneira uniforme e de se submeterem a regulamentos extraídos da própria essência de sua associação: esse motivo as induziu a se unirem para formar um centro comum, e decidiram que o órgão que as governaria deveria ser composto por seus representantes; assim, atribuíram a este órgão o poder legislativo e o tornaram o juiz de suas diferenças. A constituição do G⸫ O⸫ é, portanto, puramente democrática: nada é decidido senão pela vontade das LL⸫, levada às Assembleias Gerais por seus representantes.”

Um programa que, 250 anos depois, ainda hoje é o do Grande Oriente de França.