Por João Anatalino Rodrigues

“No princípio Deus criou o céu e a terra. A terra, porém, estava informe e vazia, e as trevas cobriam as faces do abismo; E o Espírito de Deus movia-se sobre as águas.” Génesis, 1; 2,3.
Como era uma “Existência Negativa”,
Que estava só num espaço atemporal;
Ele tornou-se a “Existência Positiva”,
Que agasalha em Si o Todo universal.
Quem sabe esse Big-Bang dos ateus,
Que um cientista vê no seu telescópio,
Não é o justo momento em que Deus,
Está fazendo um parto em Si próprio?
A visão é bem estranha, eu reconheço;
Mas a imagem transmite boa filosofia
E fica mais fácil a ideia de um começo.
Este tema merece um pensar profundo:
Se antes do universo já um Deus havia
O que Ele era antes de ser este mundo?
O Big-Bang
Num dos seus mais interessantes trabalhos, o físico Stephen Hawking situa o início do tempo no momento de nascimento do universo conhecido, momento esse chamado de Big-Bang [1]. Assim, o tempo, para os cientistas, começou junto com o espaço e por isso o universo sempre é representado por duas linhas que começam em um ponto zero e se alongam na mesma proporção, em setas orientadas em duas dimensões: a dimensão do tempo, que nos faz pensar na eternidade e a dimensão do espaço, que nos faz pensar na infinidade.
Quando se começa a especular sobre esse tema, surge a intrigante pergunta: Se foi Deus quem fez o universo, o que Ele era e o que fazia antes de começar a fazê-lo? Ele já existia antes disso? Ou Ele “nasceu” junto com o universo?
“Há cerca de 15 bilhões de anos”, escreve Hawking ” todas (as galáxias) teriam estado umas sobre as outras, e a densidade teria sido enorme. Este estado foi denominado átomo primordial pelo sacerdote católico Georges Lemaiter, o primeiro a investigar a origem do universo que agora chamamos de Big-Bang.” A partir desse momento, segundo essa tese, o universo, que estava contido nessa região extremamente carregada de energia, tornou-se uma imensa bolha de gás que nunca mais deixou de se expandir [2].
A Bíblia, ao registrar este facto não é menos metafórica e misteriosa do que os compêndios científicos que procuram explicar como o universo nasceu. Ela fala que “no início Deus criou o céu e a terra. A terra, porém, estava informe e vazia e as trevas cobriam a face do abismo.” E então, do meio às trevas Deus fez sair a luz. E Deus viu que a luz era boa e por isso a separou das trevas [3].
O texto bíblico parece sugerir que Deus já existia antes de começar a fazer o universo. Assim, Ele não pode ser o universo, como sustentam os adeptos do panteísmo, que identificam Deus com a sua própria criação, como se esta fosse algo capaz de existir por si própria [4].
A Bíblia fala de Deus como o “Espírito que se movia sobre as águas.” Expressão enigmática que nunca pode ser explicada a contento dentro da lógica comum, já que, se o mundo ainda era pura trevas e a terra era informe e vazia, que “águas” eram essas sobre as quais o Espírito de Deus se movia? Pois, ao que parece elas já existiam antes de Deus separar a luz das trevas. Não obstante, a Bíblia dá-nos uma identificação e uma ideia do que era Deus antes de começar o mundo: Ele era “Espírito”, seja qual for o significado que o cronista bíblico quisesse dar a essa expressão. Mas não responde à segunda pergunta: O que Ele fazia antes de começar o mundo?
“Existência negativa” e “Existência positiva”
Estas especulações se tornaram tão intrigantes que os próprios rabinos, comentadores da Bíblia, tiveram que quebrar a cabeça para responder à multiplicidade de perguntas que surgiram a esse respeito. Foi então que nasceu, entre esses mestres, a chamada Grande Assembleia Sagrada, que se refere a um grupo de rabinos que se dedicaram ao estudo da personalidade do Ser Supremo, a sua natureza e os seus atributos. Das especulações produzidas por esse grupo surgiu o Sefer Ietzirá, livro que contém os comentários rabínicos a respeito da formação do mundo através das manifestações divinas. [5].
Para responder à intrigante pergunta de quem era Deus e o que fazia antes de começar a fazer o universo físico, eles desenvolveram os conceitos de “Existência Negativa” e “Existência Positiva”.
Assim, “Existência Negativa” e “Existência Positiva” são termos utilizados pelos cultores da Cabala mística para designar Deus “antes” e “depois” de fazer o mundo. Neste sistema, a essência de Deus (Ayn em hebraico), é visto como uma forma de “energia” latente, que em dado momento manifestou-se como realidade positiva (Ayn Sof, o Infinito); e a partir dessa manifestação transformou-se em pura Luz, (Ayn Sof Aur), que significa Luz Ilimitada. Esta luz concentrou-se num ponto luminoso, dando origem ao universo material, representado pela sefirá Kether. E daí espalhou-se pelo nada cósmico, numa grande explosão de Luz (O Big-Bang).
Esta visão mística do nascimento do universo também foi registrada no Zhoar com a misteriosa frase “antes que o equilíbrio se consolidasse, o semblante não tinha semblante”[6]..
Aqui está inserta a estranha ideia de que antes de fazer o mundo, ou seja, antes de Deus manifestar-se como existência no mundo das realidades sensíveis, Ele existia como potência, que embora não manifesta, já continha todos os atributos do universo manifestado. Ele era uma “Existência Negativa”, na qual a mente humana não pode penetrar justamente porque ela só pode conceber um plano de Existência Positiva, onde as acções podem ser identificadas e as suas causas recenseadas. Ele era incognoscível, informe, inatingível, impossível sequer de ser imaginado. Ele era, no dizer do mestre Halevi, o universo absoluto antes de manifestar-se como universo relativo. Ou nos seus próprios dizeres:
“A existência negativa é a zona intermediária entre a cabeça de Deus e a sua criação. É a pausa antes da música, o silêncio entre cada nota, a tela em branco antes de cada quadro e o espaço vazio pronto para ser preenchido. Sem esta não-existência nada pode ter a sua essência. É o vazio, mas sem ele e o seu potencial o universo relativo não se poderia manifestar.” [7].
Mas como podemos capturar uma realidade que está além da nossa capacidade de mentalização? Sabemos que ela existe porque as suas manifestações emanam para o plano da realidade sensível e é causa de fenómenos observáveis e mensuráveis. Quem sabe o que é um eléctron, por exemplo? Sabemos como ele se manifesta, como actua e até já aprendemos a usá-lo para as nossas finalidades, mas o que ele é nenhum cientista, ou filósofo, até agora, ousou definir. É neste sentido que os cientistas falam do eléctron como sendo a “torção do nada negativamente carregado”, expressão enigmática que sugere a existência de uma forma de energia que está além de toda realidade manifesta, mas que, no entanto, emite sinais detectáveis da sua existência pelos efeitos que projecta sobre a realidade observável [8].
“Antes que o equilíbrio se manifestasse, o semblante não tinha semblante” é uma forma metafórica de explicar aquilo que a nossa linguagem não consegue articular num discurso lógico. Ou seja, que o universo já existia mesmo antes de ele ser manifestado, e que ele já estava perfeitamente planeado na Mente do seu Criador antes de ele se manifestar. Ele apenas não tinha forma e leis que regulavam o seu desenvolvimento.
A Cabala diz que quando Deus se manifestou como Existência Positiva (a sefirá Kether, ou a Singularidade do Big-Bang), o universo, que estava na sua Divina Mente, passou a existir, mas ainda não tinha uma forma. Pois como diz a Bíblia, “a terra (ou seja, o mundo) era informe e vazia”. E como dizem os cientistas, quando o universo saiu do Big-Bang, tudo era um caos. O Caos Primordial, dos filósofos gnósticos. Um todo informe. Para por ordem nesse caos, Deus criou as leis naturais. Uma lei para regular a expansão da matéria no vazio cósmico, que é a relatividade, e outra lei para organizá-la em sistemas, que é a gravidade. Assim a Cabala recorre à metáfora, ou ao símbolo, para dizer que Deus já existia antes de o universo ser “feito”. E que o universo também já existia antes de ser “organizado”.
Ou como diz Rosenroth “o universo inteiro é a vestimenta da Divindade: Ele não apenas contém tudo, mas também Ele mesmo é tudo e existe em tudo.” Esta é outra maneira de dizer que Deus, na sua Existência Negativa, é o “Espírito que se move sobre as águas” e na sua “Existência Positiva”, ele é o próprio universo embora com ele não se confunda essencialmente [9].
O Grande Arquitecto do Universo
Não é sem razão, pois, que a estrutura simbólica da Maçonaria tivesse sido desenvolvida em cima da tradição da arquitectura e que um dos seus mais significativos símbolos seja a construção e a reconstrução do primeiro Templo de Jerusalém, o chamado Templo de Salomão. É que este edifício, inspirado e orientado na sua construção pelo Grande Arquitecto do Universo, segundo a Bíblia, é o arquétipo fundamental que reflecte a estrutura do próprio Cosmo. É um edifício que simboliza não só os planos de Deus para a arquitectura cósmica, como também a construção, a destruição e a reconstrução, ao longo do tempo, da própria humanidade, susceptível, na sua marcha evolutiva, a uma série de ascensões e quedas. Isto, pelo menos é o que nos quis fazer acreditar o Dr. Anderson nas suas Constituições, no que foi seguido por uma plêiade de escritores maçons de orientação esotérica [10].
A alegoria que mostra Deus como Grande Arquitecto e anjos e homens como seus mestres e pedreiros é uma clara inspiração cabalista, mas também foi utilizada por outros pensadores. São Tomás de Aquino, por exemplo, usou a simbologia dos “anjos construtores” do universo para ilustrar os seus pensamentos. Na sua obra mais conhecida, “A Cidade de Deus”, ele se refere a Deus como a “primeira causa do universo, aos anjos como a causa secundária visível e aos homens a sua causa final”. Todos trabalhando, nas suas relativas esferas de acção, para construir o edifício universal. Como bem assinala Halevi, foi Tomás de Aquino que trouxe para o universo da lógica aristotélica, na qual toda a teologia da Igreja medieval se fundamentava, a ideia de havia uma influência angélica no mundo das plantas, dos animais e dos homens, através de um fluxo intermitente de emanações.
“Deste conceito cabalístico”, diz o citado autor”,
“vieram as nove ordens de hierarquia da Igreja. Até os construtores das grandes catedrais foram influenciados. Erigidas por pedreiros que se baseavam no Templo de Salomão, o lado oeste de cada igreja possuía duas torres representando as colunas gémeas de cada lado do véu do Templo” [11].
Eis aí, portanto, a Cabala ditando sabedoria a um doutor da Igreja e servindo de inspiração aos maçons medievais, de quem a Maçonaria moderna emprestou a forma e a estrutura da sua Organização.
Assim, em analogia à visão cabalística do nascimento e desenvolvimento do universo, poderíamos dizer que o Big-Bang dos cientistas equivale ao momento em que Deus “separou a luz das trevas”, ou seja, o momento em que o Grande Arquitecto do Universo iniciou a construção do mundo físico, na tradição maçónica. As fases posteriores dessa construção se desenvolvem segundo um plano de evolução, que na Cabala é retratado na Árvore da Vida e na ciência moderna nas diversas tentativas dos cientistas de integrar numa teoria as descobertas já realizadas nos campos da física, da astronomia, da química e da biologia, e assim, construir, como diz Hawking, uma teoria do tudo [12].
Esta visão está na base da formidável especulação que a inteligência dos sábios rabinos de Israel concebeu e que a sensibilidade mística dos espíritos que não se contentam em viver no estreito território que a linguagem lógica nos obriga a permanecer, adoptou. Entre estes estão os maçons espiritualistas, que vêem na sua Arte muito mais do uma mera prática social derivada de uma tradição que incorpora ideais estéticos, filosóficos, sociais e especulações metafísicas.
O conceito de Deus como sendo um arquitecto tem sido empregado em muitos sistemas de pensamento e o Cristianismo místico o tem adoptado em várias das suas manifestações. Ilustrações da Divindade como o Grande Arquitecto do Universo podem ser encontradas nas nossas Bíblias desde os primeiros séculos da Idade Média e tem sido regularmente empregadas pelos doutrinadores cristãos de todas as tendências.
Na Cabala, como já foi dito, os planos de construção do universo e o seu resultado são demonstrados nos chamados Quatro Mundos da Criação e no desenho mágico-filosófico da Árvore da Vida, ou Árvore Sefirótica, símbolo de extraordinário conteúdo esotérico, que se presta às mais diversas analogias e ilações, unindo a mística das antigas religiões do Oriente com as modernas descobertas da física atómica [13] e que, por uma estranha coincidência, é reproduzida na planta do Templo maçónico.

Notas
[1] Stephen Hawking – Uma Breve História do Tempo – Círculo do Livro, 1988.
[2] Stephen Hawking – O Universo Em Uma Casca De Noz, citado, pg. 22.
[3] Génesis, 1: 3.
[4] O panteísmo é a crença de que Deus é a própria natureza e não se distingue dela como entidade. Neste sentido, Deus (theos) é o “tudo”(pan), e só existe como um princípio, uma energia, que dá geração a tudo que existe, mas não tem existência independente da sua própria criação.
[5] Este livro descreve com larga profusão de detalhes, inclusive astrológicos e cosmológicos, como Deus construiu o cosmo a partir das vinte e duas letras do alfabeto hebraico e depois os distribuiu pelas dez esferas da Árvore da Vida. E dentro do grande Cosmo, o macro, como nasceu o homem, o micro. A Cabala e o Seu Simbolismo, citado, pg. 202.
[6] Idem, pg. 65
[7] Shimon Halevi – A Árvore da Vida-Cabala, citado, pg. 25.
[8] Esta definição foi dada pelos cientistas Léon Brillouin e Robert Andrews Mullikan. Ver, a este respeito Pawels e Bergier- O Despertar dos Mágicos, Ed. Bertrand Russel, 26º Ed. pg. 204. Foi esta intuição que também levou Thomas Alva Edison a produzir a primeira lâmpada eléctrica em 1879. Edison, que era Maçom, interessava-se por astrologia e acreditava que um fenómeno luminoso estava na origem do cosmo, e que a “faísca eléctrica”, produtora de luz, quando pudesse ser capturada e usada como energia iria mudar o mundo. Daí a sua obstinação em produzi-la. Ver, a esse respeito, David Ovason, A Cidade Secreta da Maçonaria, Ed. Planeta, 2007.
[9] A Kabbalah Revelada, op. citado, pg. 63.
[10] Cf. Alex Horne – O Templo de Salomão na Tradição Maçónica – Ed, Pensamento, 1972.
[11] A Árvore da Vida-Cabala, op citado, pg. 17.
[12] O Universo Numa Casca de Noz – citado.
[13] Na Imagem, Deus, o Grande Arquitecto, traça os planos do Universo. Gravura de Willian Blake – O Ancião dos Dias. Galeria de Arte Huntington – Inglaterra. Fonte: Jung e o Tarot, Sallie Nichols.
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