Bibliot3ca FERNANDO PESSOA

E-Mail: revista.bibliot3ca@gmail.com – Bibliotecário- J. Filardo

A vida secreta dos rituais e seus críticos

Publicado em FREMASON.PT

26/02/2025

rituais

Sobre “gosto” e “certo”

Eu estava desde o ano passado (2024) elaborando um artigo sobre a evolução dos graus simbólicos do REAA no Brasil, quando recebi um interessante artigo chamado “Manuais do REAA Revelados: uma carta aberta sobre a confecção, enxertos, alterações e possíveis plágios dos manuais dos Rituais do Rito Escocês Antigo e Aceito nos graus simbólicos”, de autoria de Fernand-es-Quadros Hi-kon-Passos (pseudónimo). Como estava aparentemente relacionado com o tema do meu artigo, resolvi ler. E devo dizer que a leitura me levou a modificar totalmente o formato e a direcção do artigo, convertido em ensaio; não por trazer alguma informação nova; mas pelas suas conclusões acerca do assunto. Chamou-me a atenção para o facto de que precisamos falar, primeiramente, sobre os riscos do anacronismo.

Anacronismo é “julgar os factos do passado com base nos conceitos e conhecimentos do presente” [1] Como exemplo, não posso julgar um alemão que abraçou o Nazismo no início do movimento como eu julgaria um nazista actual, que sabe das atrocidades cometidas, enquanto que aquele alemão de 1930 não poderia saber daquilo que ainda não havia ocorrido.

Observado isso, vamos ao que interessa: A Maçonaria não é alienígena, nem os seus rituais. Parece óbvio, mas esse atributo deve ser o cerne de toda análise sobre qualquer ritual. Contudo, na Maçonaria brasileira, tem-se uma cultura positivista de “certo ou errado” sobre práticas ritualísticas, que não sobrevive a três segundos de raciocínio lógico, partindo dessa premissa.

A Maçonaria não nos foi concedida por uma civilização alienígena, mais evoluída intelectual, moral e espiritualmente do que a nossa. Logo, todo o seu conteúdo foi confeccionado com base em conhecimentos terrestres previamente desenvolvidos por humanos não-maçons. Do mesmo modo, nenhum ritual maçónico veio pronto de outro planeta ou foi ditado pelo anjo Gabriel a um Maçom. Logo, todos os rituais maçónicos são uma “colcha de retalhos” [2] (termo emprestado do Irmão “Hi-kon-Passos”): todos são enxertos de conteúdos de escritores, religiões, sociedades, escolas e tradições não-maçónicas anteriores, com adequações e alterações para uso maçónico. Discutir se um retalho é melhor do que o outro é como discutir o sexo dos anjos.

Além disso, diferente dos 10 mandamentos, que são leis pétreas (e nesse caso, literalmente gravadas em pedra), de carácter imutável; os rituais maçónicos são recursos culturais, educacionais, literários, artísticos, linguísticos e, acima de tudo, sociais. Eles têm hierarquia, relações sociais, relações de poder, discursos, conhecimentos, etc. Logo, os rituais não são meras colecções de palavras mortas, pois são ensinados, praticados, vivenciados e influenciam os seus adeptos. Eles são, portanto, vivos. E, como viventes, eles envelhecem e precisam renascer para não morrer. Por isso, o desejo por um ritual imutável é mais do que uma utopia. É um paradoxo. Seria como um “gato de Schrödinger”: algo nem vivo e nem morto.

Isso fica mais claro dando como exemplo um ritual brasileiro do século XIX. A língua portuguesa contida naquelas páginas não existe mais. Morreu. Ela renasceu como uma nova língua portuguesa. “Gráo” virou “Grau”, “Maçon” virou “Maçom”, “Escocez” virou “Escocês”, “Acceito” virou “Aceito”, “Symbolica” virou “Simbólica”, “Anonymo” virou “Anônimo”, “Typographia” virou “Gráfica”, “Carmesim” virou “Vermelho”, “Accôrdo” virou “Acordo”, “Systema” virou “Sistema”, “Allegoria” virou “Alegoria”, etc.

Esta mudança na língua foi uma evolução ou uma involução? Qualquer reposta para essa pergunta é um juízo de valor. O que se sabe é que, na época, muitos cidadãos não gostaram da mudança, o que é natural, pois é não apenas do ser humano, mas de todo animal, a resistência a mudanças. Por sorte, os rituais foram adequados à nova norma da língua. E digo “por sorte”, porque, se a Maçonaria tivesse resistido à adequação, nós, alfabetizados na nova língua portuguesa, rejeitaríamos o ritual, que morreria sem o devido renascimento.

Não há como parar o tempo. Leis de todos os países são revogadas (morrem) ou actualizadas (renascem). Há um esforço para que se preserve os PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS, mas há leis que simplesmente não se aplicam mais. No Brasil, por exemplo, já foi proibido vender métodos contraceptivos e dar nome de gente a pets; e actualmente, há um projecto de lei para extinguir o dinheiro físico. Quando este projecto for aprovado, circularemos o tronco de solidariedade para nada? Ou o ritual será actualizado?

Assim, deve-se considerar que muitas das alterações sofridas nos rituais tinham, na época, uma razão de ser. Eles, os seus autores e proponentes, não podem ser julgados com anacronismo, ou seja, com base no conhecimento e nos valores actuais. Tentar descobrir como, porque, onde e quando essas alterações foram feitas é algo extremamente útil à Maçonaria. Já condenar as suas existências, além de juízo de valor e imposição de gosto pessoal, é “chorar sobre o leite derramado”.

Há quem prefira um ritual mais objectivo; mas há quem goste de um ritual mais reflexivo. Há quem odeie incenso, mas há quem queima incenso até para dormir. Mas estes são gostos particulares, enquanto a Maçonaria nos ensina a sermos tolerantes e respeitosos com os pensamentos e preferências distintas das nossas. No REAA, trata-se do bom e velho “vencer as minhas paixões, submeter as minhas vontades”. Apesar de “gostos” e “certos” serem metade parecidos (“tos”), isso não os torna sinónimos. Nem tudo que é certo, eu gosto; assim como nem tudo que gosto é o certo.

Sobre esoterismo e esquisoterismos

Quem me conhece sabe que sou avesso a esquisoterismos. A palavra “egrégora”, aplicada num contexto maçónico, me causa repulsão. Desafio qualquer irmão a me mostrar a palavra “egrégora” em qualquer ritual de qualquer grau de qualquer rito sério no mundo, ou em qualquer dicionário ou enciclopédia maçónica decentes. Não existe, simplesmente porque não faz parte do conhecimento maçónico, sendo resultado de uma forte influência da Teosofia moderna (Blavatsky e Leadbeater) na Maçonaria brasileira.

O preciosismo de muitos maçons brasileiros com a espada flamígera me causa sentimento similar. Mesmo antes da loja ser aberta, muitos são os que vigiam para que um mero mortal não-instalado não arrisque sequer a triscar a manga do seu casaco nela. E isso que, assim creio, a maioria dos profissionais que as produzem e que as vendem não são Mestres Instalados.

Estes são apenas dois exemplos de uma infinidade deles, todos corroborando com a teoria de que, pela falta de educação maçónica de qualidade, formamos maçons repetidores de achismos, os quais vêm sendo transmitidos por gerações.

Contudo, não há relação alguma desse “esquisoterismo” com as características de Catolicismo, Cabala, Astrologia, Alquimia e Numerologia inseridos nos rituais franceses da chamada “Maçonaria Escocesa”. Trata-se de um processo histórico que tentarei resumir ao máximo aqui:

O Século XVIII foi o século das luzes, do Iluminismo. Na França, este Iluminismo não era apenas científico, mas sociopolítico, visto à época existir lá uma monarquia absolutista católica. Nesse sentido, Jean-Jacques Rousseau publicou, em 1762, a sua obra-prima: “Do Contrato Social”. Nela, ele propõe, dentre outras coisas, a ideia de Religião-Civil, que seria uma religião com um credo mínimo, que não tira a liberdade do cidadão, mas colabora para que ele seja uma pessoa melhor. Seriam apenas dois dogmas: crença num Ser Supremo e na Imortalidade da Alma. Então, a Maçonaria “escocesa” francesa decidiu se tornar a Religião Civil proposta por Rousseau. Tanto que foi criada a Loja “Do Contrato Social”, considerada a Loja-Mãe Escocesa da França. E um dos membros dessa Loja era o Conde de Grasse-Tilly: ninguém menos do que um dos fundadores dos Altos Graus do REAA e autor dos primeiros rituais dos graus simbólicos do REAA [3].

Ainda, nessa época, o que estava em voga na França, principalmente entre os intelectuais, eram as ciências ocultas, como Alquimia, Astrologia e Cabala, até pouco antes perseguidas pela Inquisição. Assim, para facilitar a “conversão” do profano ao Maçom, foram adoptadas na Maçonaria “Escocesa” características católicas e dessas tradições esotéricas. Em teoria, o Maçom desse sistema francês seria mais “completo” do que o Maçom do sistema inglês, pois aprenderia tudo que este aprende, além das “ciências ocultas”.

Podemos inferir que esse conteúdo esotérico não foi incluído no REAA apenas no início do século XX, como Joaquim dos Santos afirmou [4] e o nosso Irmão “Hi-kon-Passos” acreditou. Primeiro, porque foram incluídos também nos Altos Graus da “Maçonaria Escocesa”, ainda no século XVIII, e que, em 1801, comporiam o REAA [5]. Lembrando ainda que alguns dos graus adicionais, como o 31 e o 33, foram cedidos por Grasse-Tilly e eram praticados pela Loja “Do Contrato Social”. E, em segundo, porque a alquímica Câmara das Reflexões, que substituiu a simples sala de preparação, existe na Maçonaria francesa desde pelo menos, 1750 [6].

Ou seja, o facto de uma sessão do REAA, em alguns aspectos, ser mais parecida com uma missa gnóstica do que com uma aula de moralidade foi resultado de um processo histórico, motivado pelo momento que a sociedade francesa vivia. Assim como o facto de o Rito de Schroder ser tão pragmático e racionalista foi resultado de um processo de desgastes e problemas causados pela prática do Rito da Estrita Observância Templária. E assim como o facto de o Ritual de Emulação ser tão enxuto foi resultado de um processo de promulgação entre Antigos e Modernos, em que os pontos de discordância foram descartados, em vez de preservados.

O maior agravante dessa experiência do REAA talvez seja que a prática ritualística nunca veio acompanhada de uma literatura maçónica decente. E não sou eu que estou afirmando isso. Marius Lepage, importante autor maçónico francês do século XX, afirmou que os maçons franceses têm pouquíssimas possibilidades de adquirir algum conhecimento, mesmo que superficial, da Maçonaria, não havendo nem uma dezena de obras que valeriam a pena [7]. A verdade é que os irmãos adeptos do REAA têm acesso a vários elementos e mensagens alquímicas na Câmara das Reflexões, mas dificilmente aprenderão algo a respeito. O mesmo se aplica sobre Cabala, Astrologia e similares.

E como se soluciona esse problema? Se um paciente está doente, a solução é matá-lo, para livrá-lo da doença? Ou buscar formas para que fique saudável? Se você não é um psicopata, concorda que o ideal é tratá-lo. Logo, precisamos investir em pesquisa, literatura e ensino maçónico de qualidade. Uma coisa é certa: No Brasil temos ritos para todos os gostos (Destaco: “gostos” e não “certos ou errados”) e todos carecem de literatura.

Sobre uns cem anos atrás

Nesta cultura positivista da Maçonaria brasileira, tem-se muitas manifestações acerca do chamado “Ritual de Behring”. Muitos são os seus críticos que, geralmente desprovidos de estudos sobre o tema, apenas repetem o que escutaram, fazendo coro a afirmações como a de que “Behring criou outro rito”. Isso somente escancara uma má formação maçónica, desconhecendo até a básica distinção entre rito e ritual. E quando alguém, que se dedicou a pesquisar e a escrever a respeito, como, por exemplo, o irmão e historiador Cloves Gregorio, discorda dessa visão míope, baseado numa análise crítica dos rituais e documentos da época [8] a resposta a ele geralmente é em forma de “pós-verdade”.

A estes irmãos, convido-os a ler algum ritual brasileiro do REAA de antes de 1927, como, por exemplo, o de 1898 e o de 1904. Trata-se de rituais extremamente curtos, protocolares e… vazios de conteúdo. Para se ter uma ideia, cada grau tinha uma única instrução, em formato de catecismo (perguntas e respostas) e era curta. Este ritual, em vez de enxertos, havia sofrido mutilações. Então, veio a cisão de 1927 e Behring precisou elaborar novos rituais dos graus simbólicos do REAA para uso das então recém-formadas Grandes Lojas. Isso foi visto como uma oportunidade de corrigir e incrementar um ritual que era mutilado e vazio.

Aqui, devo fazer uma breve observação: credito os rituais ao Behring, ciente de que ele não fez os rituais sozinho, mas ele quem demandou, organizou, aprovou, publicou e forneceu. Por isso, refiro-me ao “Ritual de Behring”, assim como Thomas Smith Webb somente compilou e codificou rituais mais antigos e o seu trabalho é chamado de “Webb’s Monitor”. Então, por favor, quando eu mencionar Behring, lembre-se que ele não fez nada sozinho.

Retomando o raciocínio: Behring fez muitas inclusões aos rituais, mas não as tirou da cartola. Ciente de que o REAA tinha o painel do grau, e este inexistindo nos rituais anteriores (e.g. 1898 e 1904), ele recuperou a ilustração do painel do REAA, incluindo-a no ritual, ao mesmo tempo em que adoptou o painel de John Harris, utilizado no Ritual de Emulação, e que tinha por diferencial vir acompanhado da devida instrução. Behring também recuperou as colunas zodiacais, as constelações e astros específicos da abóbada, a corda de 81 nós, a cena de João Baptista e outros conteúdos típicos do REAA, mas que não estavam presentes nos rituais do REAA do GOB.

Talvez o que mais foi incrementado nos Rituais de Behring foram as instruções. Ao final do século XIX, ou seja, não muito distante de 1927, Oswald Wirth (que diferente do que o Irmão anónimo afirmou, não foi Grão-Mestre, mas sim Venerável Mestre) havia publicado três manuais, sendo um para cada grau simbólico. Apesar de ser o seu nome nas capas, esses manuais não haviam sido desenvolvidos exclusivamente por ele, mas por um grupo de maçons eruditos, liderados por ele (assim como no caso de Behring). Os manuais eram comumente utilizados por grupos de estudo maçónico e como instruções complementares em lojas. Mas o que pouca gente parece saber, incluindo o Irmão “Hi-kon-Passos”, é que boa parte desses manuais se tornaram os rituais do REAA que Wirth desenvolveu para a Grande Loja da França – GldE [9], a pedido do seu Grão-Mestre, Bernard Wellhoff, e passaram a ser adoptados por ela, em 1921 [10]. O que Behring fez foi aproveitar o conteúdo desses rituais, especialmente as instruções, que era o que havia de mais actual no REAA.

Neste sentido, acusar Behring de plágio é leviano. “Aquele que não conhece o erro do anacronismo está fadado a cometê-lo” [11]. O conhecimento, a cultura e a legislação sobre plágio não eram os mesmos de hoje. Como exemplos, pelas regras actuais, Thomas Smith Webb cometeu plágio da obra de William Preston; e Albert Pike cometeu plágio de obras de uma dúzia de autores. No caso do Behring, ele baseou-se naqueles rituais do REAA que Wirth elaborou para a GLdF. Pelo menos, tomou-se o cuidado de, por exemplo, mencionar, na introdução da Terceira Instrução de Companheiro: “Noções de Philosophia Iniciatica e de Symbologia Numerica do 2° Gráo, segundo o nosso IrA O. Wirth” [12].

Diferenciando restaurações de invenções

São muitas as críticas aos rituais de Behring, ao longo dos últimos 97 anos, sugerindo enxertos de outros ritos ou invenções, que teriam gerado certa desfiguração do REAA. Contudo, muitas delas são conceitualmente equivocadas. Para demonstrar isso, utilizarei a obra “ The Porch and the Middle Chamber: The Book of the Lodge”, de Albert Pike, publicada originalmente em 1872, ou seja, mais de meio século antes do Ritual de Behring, e antes mesmo dos rituais de 1898 e de 1904 do REAA para o Grande Oriente do Brasil. Esta obra de Pike é baseada no seu extenso e invejável acervo de manuscritos e livros antigos relacionados ao Rito Escocês Antigo e Aceito, incluindo os seus primeiros rituais dos graus simbólicos.

Cor das Paredes

Muitos afirmaram que as paredes do REAA devem ser vermelhas e que Behring inventou de pintá-las de azul, copiando outros ritos e, assim, desvirtuando o REAA. Contudo, no ritual dos graus simbólicos do REAA, publicado por Pike, em 1872, afirma-se que “As paredes da Loja devem ser cobertas do tecto ao chão com tecido azul-claro” [13]. Já no Manual do Aprendiz, de Wirth (1894), também consta que “O tecto é pontilhado de estrelas. Como o revestimento da parede, é azul como a abóbada celeste que envolve a terra por todos os lados” (grifo nosso) [14].

Corda de 81 nós

Outra “invenção” de Behring seria a corda de 81 nós, havendo, inclusive, teorias de como ele chegou ao número e o que representam. Mas, no mesmo ritual do REAA publicado por Pike (1872), tem-se que nas paredes do templo há uma “corda com nós (la houppe dentelée), com cerca de quinze centímetros de diâmetro, com borlas pendentes em cada canto. Os nós são em número de 81”. Isso difere do que consta, por exemplo, no Manual do Aprendiz, de Wirth (1894), que afirma que “os nós podem ser doze em número, para corresponder aos signos do zodíaco” [15].

Abóbada Celeste

Uma crítica feita a Behring é quanto à escolha de uma série de constelações do hemisfério norte para a Abóbada Celeste do seu ritual do REAA. Os críticos se baseiam nos rituais brasileiros do REAA adoptados anteriormente, assim como no de outros países, em que não se tem os astros específicos definidos para adornar o tecto, sugerindo que Behring fez tais escolhas. Mas o ritual do REAA que Pike publicou em 1872 traz que:

No tecto, também, estão pintadas estrelas e constelações específicas. No centro, as três estrelas do cinturão de ÓRION; e entre elas e o Nordeste, as PLÊIADES e HIADES, uma das quais é ALDEBARAN; a meio caminho entre ORÍON e o Noroeste, REGULUS em Leão; no Norte, URSA MAIOR; no Noroeste, ARCTURUS; Oeste de Regulus, SPICA VIRGINIS; no Ocidente, ANTARES; no Sul, FOMALHAUT; sobre o Leste, também, está JÚPITER, e sobre o Oeste, VÉNUS; MERCÚRIO, próximo ao Sol; e MARTE e SATURNO, perto do centro do tecto. As Estrelas do Cinturão de Órion representam o número 3; as Híades 5; as Plêiades e a Ursa Maior, 7. As cinco estrelas reais são ALDEBARAN, ARCTURUS, REGULUS, ANTARES e FOMALHAUT [16.]

Cena de João Baptista

De tanto criticarem no Brasil essa outra “invenção de Behring”, até mesmo lideranças maçónicas de algumas Grandes Lojas se renderam e passaram a defender o carácter “opcional”, ou mesmo a retirada da Cena de João Baptista do ritual. Entretanto, pelo ritual de 1872, de Albert Pike: “o Venerável Mestre bate três vezes lentamente. Na terceira batida, o Segundo Vigilante retira a venda do candidato. Na penumbra ele vê a cabeça de “João Baptista” à sua frente” [17].

Como se pode observar, esses pontos, por muitos considerados, ao longo de quase um século, como enxertos de outros ritos e invenções, mostram-se, na verdade, como um resgate da identidade do Rito Escocês Antigo e Aceito, restaurando o seu conteúdo, de modo a oferecer uma prática maçónica mais próxima da francesa (berço dos graus simbólicos do REAA) e mais condizente com a demanda dos irmãos e lojas escocistas brasileiras, em 1927/28, por mais conhecimento.

A César o que é de César

O Irmão “Hi-kon-Passos” fez um excelente trabalho no seu artigo, mas pecou ao permitir um viés cognitivo de confirmação, que é quando a sua pesquisa e análise são direccionadas a confirmar as suas crenças e opiniões iniciais sobre aquele assunto. E quando se tem “dados viciados” num jogo, você restringe todas as possibilidades a um único resultado possível. O anacronismo também pode ser uma consequência disso.

Se, por um lado, fico feliz em saber que temos aí um escritor promissor, e o GADU bem sabe o quanto ainda estamos carentes disso na Maçonaria brasileira… por outro, fico triste que ele tenha escolhido o caminho do anonimato. Não triste pela decisão dele, que é compreensível, mas pelo actual cenário maçónico do Brasil, com crescentes casos de intolerância, que provavelmente o levou a essa decisão. Contudo, o anonimato traz muitos pontos negativos e aqui destaco dois: o primeiro é que você se acovarda, pois foge da antítese, da réplica, do debate de ideias; e o segundo é que você pode se tornar imprudente e ofensivo, por não poder ser responsabilizado pelo que escreve, protegido sob o véu do pseudónimo.

A contribuição ritualística de Behring não foi apenas restaurando o conteúdo e, consequentemente, a identidade do REAA, mas dando aos rituais um aspecto mais moderno e interessante, nunca antes visto na Maçonaria brasileira. Se você analisar os rituais anteriores a 1927, independente de rito, eles eram muito mais simples. Behring inovou ao incluir o modelo alegórico de cada grau, a ilustração dos painéis, uma apresentação sobre a Maçonaria, uma planta baixa do templo com a posição de cada oficial e utensílio, uma série de informações preliminares úteis, além de ilustrações nas instruções. Hoje, os rituais brasileiros costumam seguir um padrão mínimo de qualidade, e isso foi inaugurado pela versão dele.

Pergunto-lhe: O ritual do REAA da sua potência tem colunas zodiacais? Essas colunas têm uns símbolos diferentes, dos signos dentro de triângulos para cima ou para baixo? Tem estrelas e planetas específicos na abóbada, em vez de somente um punhado de estrelas indefinidas? Tem a exposição de um painel do grau? Tem uma corda com 81 nós na parede? Tem mais de uma instrução por ritual?

Se você respondeu “sim” para uma ou mais dessas perguntas, saiba que a sua potência copiou isso do Ritual de Behring. Mas não chamemos isso de “plágio”… Apenas reflicta que, se você é um desses que defendia que Behring “criou um novo rito”, que não deveria ser chamado de REAA, mas sim de “Rito de Behring” ou algo parecido; os rituais do “REAA” da sua potência brasileira, seja ela qual for, têm muito mais dos Rituais de Behring do que de qualquer ritual do REAA que existiu no Brasil antes dos dele. Assim sendo, talvez temos o “Rito de Behring” não apenas nas Grandes Lojas da CMSB, mas também no GOB e nos Grandes Orientes da COMAB.

Se não quiser adoptar o termo “Rito de Behring” na sua potência, a outra opção é aprender a diferença entre rito e ritual, entendendo e aceitando que há diferenças entre rituais de um mesmo rito, como ocorre entre os diferentes rituais do Rito de York (Webb, Duncan, etc.) e do Rito Moderno (Amiable, Montaleau, etc.), por exemplo.

O facto é que, ao reconhecermos a adaptação dos rituais do REAA do GOB após 1928, adoptando uma série dos resgates feitos nos rituais de Behring e aproximando-se deste na prática, temos aí um indício de que houve essa demanda dos irmãos escocistas gobianos. O que é distinto da ideia afirmada pelo irmão anónimo, de que os rituais foram “piorando diferenças, com alterações ainda mais estranhas”. Se houvesse esse estranhamento, bem como uma preferência por um ritual mais curto e simples, as actualizações de Behring não teriam encontrado morada até mesmo nos rituais do REAA do GOB.

Ainda, o Irmão “Hi-kon-Passos” criticou que o Ritual de Behring foi “confeccionado por dois autores e finalizado às pressas numa sessão administrativa por votação” [18]. Na verdade, houve dois autores, os seus rituais não foram aprovados por serem longos demais, mas foram aproveitados por uma comissão de três irmãos, que utilizaram, além dos projectos dos autores, rituais do REAA de diferentes países a que tinham acesso e, principalmente, a “obra clássica de Albert Pike sobre a Maçonaria Azul” [19 ]que é exactamente a que foi usada aqui para derrubar tantos mitos e críticas acerca dos pseudo-enxertos nos rituais. E, mesmo se fosse verdade, quantos foram os rituais elaborados por apenas um irmão? Não foi esse o caso de Willermoz? De Schroder? De Webb, e de tantos outros? Duas mentes não pensam melhor do que uma? E cinco mentes? E que forma melhor de aprovar algo do que por uma votação democrática?

Sim, o REAA contém esoterismo. Assim como o RER contém cristianismo, o Moderno contém agnosticismo, e o Brasileiro contém ufanismo. Esse conteúdo esotérico no REAA não é culpa de Wirth, muito menos de Behring, nem de outro alguém específico, mas sim por conta do “quando e onde” os seus graus foram desenvolvidos. O facto de conter esoterismo, diferente do que “Hi-kon-Passos” afirma, não é algo a se corrigir ou a se declarar como “incorrigível”, pois isso parte do pressuposto de que é errado, enquanto já distinguimos “gosto” de “certo” e “errado”. E, como também já esclarecemos, a Maçonaria não é alienígena, não existindo, portanto, um conteúdo 100% maçónico. Todo o conteúdo maçónico é emprestado de algo anterior, recebendo uma “roupagem” ou “releitura” maçónica.

O facto de os graus simbólicos do REAA terem mais conteúdo sem roupagem do Operativismo do que um rito anglo-saxão não pode ser considerado como algo menos maçónico ou errado. Isso é um gigantesco juízo de valor. Como ilustração, utilizarei o Rito de York, citado pelo Irmão “Hi-kon-Passos”: Os cargos de Marechal e Capelão são de origem maçónica? Não. São de origem militar. Devemos então interpretar como um enxerto, declarar o Rito de York como “incorrigível”, sugerir a abolição de tais cargos e a migração dos membros para lojas de outros ritos? Observe que, se eu continuar com esse exercício, tudo, absolutamente TUDO na Maçonaria pode ser declarado como “enxerto” a ser “corrigido” ou até “incorrigível”.

O título deste ensaio, “A vida secreta dos rituais e seus críticos”, foi inspirado em “A vida secreta das abelhas”, título de um belo livro que aborda o tema do preconceito de género e de raça. Que possamos combater o preconceito de rito, bem como evitar o anonimato na Maçonaria.

Kennyo Ismail

Fonte

Notas

[1] Esquadro, 2021, p. 14.

[2] PASSOS, F. Q. H. Manuais do REAA Revelados: Uma carta aberta sobre a confecção, enxertos, alterações e possíveis plágios dos manuais dos Rituais de Rito Escocês Antigo e Aceito nos graus simbólicos. Jan- 2025, p. 4.

[3] ISMAIL, Kennyo. Ordem sobre o caos. Brasília: No Esquadro, 2020.

[4] DOS SANTOS, J. O Ritual de Aprendiz no REAA: Génese e Desenvolvimentos. Disponível em: https://www.academia.edu/2176260G/O_RITUAL_DE_APRENDIZ_NO_REAA_G%C3%89NESE_E_DESENVOLVIMENTOS

[5] Comprovado, por exemplo, pelo Manuscrito de Francken (1783).

[6] WIRTH, O. Le symbolisme herméttque dans ses rapports avec l’alchimie et la Franc-maçonnerie. Paris: Librairie Initiatique, 1909.

[7] LEPAGE, M. História e Doutrina da Franco-Maçonaria. São Paulo: Pensamento, 1994.

[8] GREGORIO, C. Entendendo o Rio Escocês Antigo e Aceito: Grau de Aprendiz Maçom. São João de Meriti: ed. do autor, 2023.

[9] A GLdF era regular e reconhecida pelo mainstream maçónico mundial na época.

[10] GRANDE LOJA ALPINA DA SUÍÇA. Oswald Wirth et “une certaine idée” de la franc-maçonnerie. Disponível em: https://freimaurerei.ch/fr/oswald-wirth-et-une-certaine-idee-de-la-franc-maconnerie/

[11] ISMAIL, Kennyo. Maçonaria Brasileira: a história ocultada. Vol. II. Brasília: No Esquadro, 2021, p. 14.

[12] BEHRING, M. Ritual do Gráo de Companheiro-Maçon. Rio de Janeiro: Delta, 1928, p. 48.

[13] PIKE, A. The Porch and the Middle Chamber: The Book of the Lodge. Washington: Supreme Council, SJ- USA, 1872, p. 17.

[14] WIRTH, O. Le Livre de L’Apprenti. Paris: AUX ÉDITIONS RHÉA, 1894. Disponível em: https://www.freemasonryresearchforumqsa.eom/wirth-apprentice-book.php#a12

[15] Idem, Ibidem.

[16] PIKE, op. cit., p. 20.

[17] PIKE, op. cit., p. 23.

[18] PASSOS, F. Q. H. Manuais do REAA Revelados: Uma carta aberta sobre a confecção, enxertos, alterações e possíveis plágios dos manuais dos Rituais de Rito Escocês Antigo e Aceito nos graus simbólicos. Jan-2025, p. 11.

[19] SC33. Astréa News, Ano X, N. 119, Novembro de 2020, p. 10.