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Cabala e Maçonaria

Por João Anatalino Rodrigues

cabala

O que é a Cabala

A Cabala é um sistema iniciático que procura desenvolver os temas do Velho Testamento de uma forma esotérica, mística e transcendental. Os  seus praticantes pensam que através desta disciplina é possível o estabelecimento de uma comunicação directa entre Deus e os homens, no mesmo nível estabelecido por Moisés no Monte Sinai.

A Cabala fundamenta-se na ideia de que o alfabeto hebraico constitui uma forma de escrita proveniente directamente de Deus. Os seus sons e números, devidamente combinados, formam signos que contém as grandes verdades físicas e espirituais que formatam o universo em todas as suas dimensões. Conhecer cada combinação e os seus significados é o grande ensinamento desta tradição, ensinamento este que só pode ser repassado de forma oral aos seus iniciados.

Desenvolvida a priori pelos rabinos judeus, foi absorvida pelos esoteristas cristãos e por eles praticada a partir dos primeiros séculos do Cristianismo, tornando-se uma doutrina de profundo conteúdo metafísico e amplo sentido moral.

Dois tipos de doutrina

Ao longo do tempo, os praticantes deste sistema desenvolveram dois tipos de Cabala. Um deles, relacionado com as coisas divinas, é chamado de Cabala Sagrada. Esta é a Cabala dita religiosa. Refere-se à pesquisa do Inefável Nome de Deus, palavra sagrada, mística, impronunciável, somente conhecida de alguns poucos iniciados, que formavam um grupo selecto de mestres, denominado Mischnah. O seu conhecimento conferia ao iniciado um poder de Demiurgo, capaz de repetir o próprio acto divino de criação. Os seus aspectos estão directamente ligados à tradição judaica.

O ouro tipo de Cabala, embora profundamente impregnada de ensinamentos esotéricos, tinha, não obstante, um objectivo mais prático. A sua função era revelar aos seus iniciados os grandes segredos da natureza, mediante os quais se poderia conseguir poder sobre ela. Neste sentido equiparava-se à Alquimia, e em muitos casos, as duas tradições conviveram estreitamente, compartilhando os mesmos signos. Esta é a chamada Cabala Filosófica, desenvolvida principalmente por pensadores ocultistas cristãos, como forma de conhecimento da natureza. Foram esses filósofos cabalistas os mestres que precederam os rosacrucianos no desenvolvimento da filosofia oculta e no apostolado do livre pensamento, numa época em que discordar, ou pensar diferente dos doutores da igreja, significava a prisão e a morte nas masmorras.

Cabala Operativa e Cabala Especulativa

Da mesma forma que na Maçonaria, a doutrina da Cabala compreendia uma forma operativa e uma forma especulativa. A forma operativa congregava alquimistas e pesquisadores do oculto, na tarefa de encontrar meios de preservar a saúde, obter riqueza material, sucesso em empreendimentos profanos, ou simplesmente como processo de conhecimento. Era uma forma de aplicar o conhecimento esotérico contido nas combinações numéricas e sonoras do alfabeto sagrado para a resolução de problemas da vida real. Esta prática, embora tenha rendido aos seus cultores muitas acusações de charlatanismo, não obstante, resultou em importantes descobertas e aplicações práticas no campo das ciências e da filosofia.

Já a Cabala Especulativa tratava de construir um sistema cosmológico e ético capaz de explicar as origens, o desenvolvimento e o processo de construção do universo e a maneira pela qual o homem podia interferir nele. A esta última forma pode-se associar os nomes de alguns cientistas e filósofos famosos, como Paracelso, Cornélius Agrippa, Robert Boyle, Robert Fludd, Eliphas Levi e outros, que foram alquimistas e pesquisadores da filosofia oculta, predecessores dos modernos cientistas.

O Codificador da Cabala

A Cabala é uma tradição muito antiga, provavelmente anterior a Abraão, já que era usada pelos sacerdotes caldeus antes mesmo da emigração desse patriarca para a Palestina. Era no entanto, uma colecção de fórmulas e frases soltas, usadas principalmente nos rituais secretos presididos esses sacerdotes. A tradição confere a um sacerdote, provavelmente da seita essência, a codificação da tradição cabalística e a sua estruturação sistemática num todo organizado. O seu nome era Simão Ben Iohai, e viveu na segunda metade do primeiro século da era cristã, sendo condenado à morte no governo do imperador romano Tito, por ocasião da destruição do segundo Templo de Jerusalém.

O sentimento religioso dos judeus, que se recusavam a aceitar os deuses romanos e honrar o imperador romano como Deus foi considerado como causa principal da revolta contra Roma, revolta essa, que entre os anos 66-70 degenerou numa sangrenta rebelião que custou a destruição total de Jerusalém e a dispersão dos seus habitantes pelo mundo, no episódio que ficou conhecido como Diáspora. E foi justamente para conservar as suas tradições religiosas que os rabinos judeus, a exemplo dos essénios dois séculos antes, desenvolveram os métodos da Cabala, ocultando através de alegorias numéricas e construções metafóricas os segredos da sua religião.

Diz-se que Ben Iohai viveu durante vinte anos em cavernas, ocultando-se das tropas romanas. Neste longo período de exílio ele tornou-se um visionário, transformando as visões que tinha em símbolos numéricos e palavras, compondo significados com interacções de letras e números do alfabeto hebraico. Vivia-se uma época de intensa agitação política e religiosa, inclusive com o advento do Cristianismo e a sua disseminação por todo o Império Romano, feita principalmente pelo apóstolo Paulo e seus seguidores.

O Sepher a Zohar

Ben Iohai transmitiu a sua doutrina a poucos iniciados, seguindo a ideia de que a popularização de um conhecimento o abastarda. A tradição sustenta que o seu filho Eliezer, e o seu principal discípulo, o Rabbi Abba, teriam recolhido os seus ensinamentos e composto o livro chamado Shepher a Zohar, que significa o Livro do Esplendor.

Historicamente, porém, o Zohar só se tornou conhecido no século XIII e acredita-se que teria sido redigido por um rabino chamado Moisés Bem Schemot, judeu castelhano, a partir de ensinamentos antigos por ele coligidos de diversas fontes.

Os Métodos da Cabala

A Cabala ensina que o próprio Deus transmitiu a alguns anjos os primeiros rudimentos dessa sabedoria, e estes os transmitiram a Adão para que ele pudesse dar nomes à criação. O patrono dessa tradição era o profeta Elias, que a teria aprendido nos chamados Livros da Formação (Sefer Yetsira), atribuídos ao profeta Abraão. Alexandrian, no entanto, sustenta que tal tradição remonta ao século XII e só foi desenvolvida pelos místicos judeus como reacção ao rigorismo do Talmud judaico.

A verdade, porém, é que a Cabala, como tradição, já aparece nos escritos gnósticos desde o primeiro século da era cristã, especialmente no Apocalipse. Ela é um método de interpretação da Bíblia que combina o simbolismo dos textos hebraicos com temas relacionados com a geometria, aritmética e linguística, produzindo uma estranha exegese que se destina a compreender como o universo e o homem são materialmente constituídos.

Baseia-se em três processos originais de leitura conhecidos como gematria, notaricom e temura. A gematria consiste em aproximar duas palavras que tenha o mesmo valor numérico no alfabeto hebreu. Como nesse alfabeto cada letra corresponde a um número, as palavras formadas com as diferentes letras representam também um determinado valor e um significado, que varia segundo esse valor. Assim, diversas palavras, formadas com as mesmas letras, podem ter diferentes significados. As letras da palavra Abraão, por exemplo, corresponde ao número 248, que também significa misericórdia, piedade, etc. Da mesma forma, as letras da palavra escada corresponde ao número 130 e significa, ao mesmo tempo, Sinai, subida, ascensão etc. Daí o significado que a visão do patriarca Jacó teve em Betel assumir, uma noção de escalada, de ascensão espiritual etc., que na Maçonaria do Rito Escocês foi utilizada para representar a passagem do iniciado pelos diversos graus das diferentes Lojas.

O notaricom é uma fórmula que permite construir palavras novas a partir das letras iniciais ou finais de uma frase. Também serve para construir frases inteiras a partir de uma só palavra, à semelhança de um acróstico na arte da poesia. Já a temura consiste na substituição de uma letra por outra, de acordo com combinações alfabéticas denominadas tsirufin. Dessa forma, uma palavra como Éden, por exemplo, pode assumir diversos significados, como corpo, alma, conhecimento, eternidade etc.

Assim, de acordo com os métodos da Cabala, há uma Bíblia que pode ser lida por qualquer pessoa culta e uma outra que só pode ser entendida pelos iniciados. É nesta que está oculta a verdadeira sabedoria. Cada palavra, cada símbolo, cada alegoria, cada parábola tem o seu significado oculto.

A estranha hermenêutica da Cabala tinha, como já se disse, um objectivo bem definido. Tratava-se de descobrir quais eram os Nomes Secretos de Deus, os seus anjos e demónios, para com eles estabelecer uma comunicação directa. Esta era a verdadeira Gnose, que daria ao seu possuidor o controle do universo. Daí as fórmulas cabalísticas desenvolvidas para todas as situações da vida; para se adquirir fortuna (abre-te sésamo) e para afastar os demónios (vade retro); para fazer aparecer coisas (abracadabra) e para invocar a protecção divina ( kimaleakav yetsave lak), etc. O sábio Abuláfia, um dos mais conhecidos mestres cabalistas medievais, dizia que Deus criara o mundo presente com a letra he os mundos futuros com a letra iod .

Cabala e Gnose

Embora as grandes tradições da Gnose e da Cabala se tenham fundido a partir de um certo momento cultural, ocorrido principalmente a partir do século XIII, é preciso reconhecer que a Cabala permaneceu sempre vinculada ao Judaísmo, tentando mostrar que essa religião detinha a essência da sabedoria divina. A utilização cristã dessa tradição jamais deixou de encarecer essa posição, procurando provar que o Cristianismo nada mais era do que uma evolução da religião judaica, encarada com mais sensibilidade que razão.

Já a Gnose procurou harmonizar a doutrina de Cristo com as demais religiões da antiguidade. Cristo, na ideia gnóstica, como bem expressou Teilhard de Chardim, era a síntese de todas as divindades que já vieram a terra com o propósito de reconduzir a humanidade pecadora para o seu Criador. Mas, a despeito dessa diferença de propósitos, há similitudes que podem ser apontadas. Na Gnose, o universo é uma emanação de Deus através dos eons, enquanto na Cabala essa emanação ocorre por conta dos sefiroths, verbo hebraico que significa contar, e que representa os dez primeiros números do sistema, que são também as dez emanações do En-Sof.( A primeira manifestação positiva de Deus).

As sefiras ou séfiroths

Essas dez emanações, que podem ser entendidas como sendo os atributos da divindade, são a Coroa, (kether), a Sabedoria (chokhmah), a Inteligência (binah) a Grandeza (hesed), a Justiça (gueburah), a Beleza (tifheret), a Eternidade (nethsat), a Glória (hod), os Fundamentos (yesod) , o Reino (malcoth). Estas dez emanações do divino eram as chamadas séforas, que continham todos os fundamentos pelos quais o cosmo foi formado. Elas eram a inteligência pura de Deus, cada uma delas independente e indivisível, porém formando um conjunto único. A árvore sefirótica era a representação cósmica da criação, e entendê-la em toda a sua completude significava ter a visão completa de todo o processo pelo qual o universo foi construído.

Como veremos, a Maçonaria irá trabalhar essas ideias nos graus filosóficos, associando-as as correspondentes cristãs, que são as sete virtudes teologais, a partir das quais o homem cristão se constrói moralmente.

O sistema cabalístico

A Cabala, entretanto, não era apenas uma forma de interpretação da vontade divina através da manipulação de números e letras. Ela integrava um complexo corpo doutrinário que tinha uma cosmologia, uma hagiografia e uma escatologia, fundamentadas em concepções bastante originais. Em termos cosmogónicos, a teoria dos sefiroths justificava a formação do universo; escatologicamente, pensava-se que a alma de um defunto podia associar-se com a de um ser vivo para promover uma interacção que beneficiasse a ambos em termos de redenção. Era a doutrina do gilgoul. Esta interacção só podia ocorrer na mesma família. O gilgoul era uma doutrina que misturava a noção de reencarnação com o espiritismo.

A hagiografia cabalística era bastante diferente daquela desenvolvida pelos cristãos. Enquanto os cristãos atribuíam aos santos e aos anjos a responsabilidade pela intermediação entre os homens e Deus, actuando sempre no sentido do bem, a Cabala possuía uma angiologia e uma demonologia bastante actuante nesse sentido, mas em ambas as direcções, e de uma forma bastante directa. A interacção entre homens e criaturas celestes era constante. Adão, por exemplo, teve relações com duas demónicas, gerando filhos e filhos. Noema, filha de Cain, era mãe de muitos demónios. Os anjos eram nomeados segundo a virtude que representavam. Gadiel era o anjo da felicidade, Harasiel do destino, Hiehoel do conhecimento, Negraniel da fantasia etc.

A Cabala na Maçonaria

Como veremos ao longo do desenvolvimento dos graus superiores, todos esses simbolismos foram convenientemente adaptados ao catecismo maçónico adoptado pelo Rito Escocês. Esta é, na nossa opinião, mais uma prova da presença dos místicos judeus entre os chamados “maçons aceitos” que se imiscuíram nas Lojas Especulativas a partir do início do século XVII. Iremos encontrar esses temas, praticamente em todos os graus superiores, desde ao 4º até o 33º., entremeados com motivos cavalheirescos, herméticos e aqueles extraídos da tradição dos pedreiros-livres. (continua)

Do livro “Conhecendo a Arte Real”, Ed. Madras, São Paulo, 2007

Notas

[1] Veja-se o interessante conto de Gustavo Mirink, O Golem

[2] Deve-se principalmente a Robert Fludd o desenvolvimento da chamada Gnose Alquímica, na qual a Arte de Hermes é tratada como uma filosofia de transformação interior, em oposição ao seu carácter tradicional de arte da natureza. Nesta Gnose Alquímica, pela primeira vez se fala numa prática esotérica com sentido moral. Tratava-se, outrossim, não de transmutações metálicas, mas de uma procura da unidade da matéria, capaz de ligar a alma humana à alma do cosmos, que a Gnose, propriamente dita, considerava apartados desde a queda do homem.

[3] Alexandrian – História da Filosofia Oculta, pg. 90

[4] Idem, op citado, pg. 80

[5] Iod é letra inicial do Nome Inefável de Deus (Jeová ou Yavhé). Na Maçonaria das Lojas Simbólicas essa letra é substituída pela letra G. Todavia, nos graus filosóficos utiliza-se a palavra Iod, emoldurada por um triângulo, significando Princípio Criador, Grande Arquitecto do Universo, Verbo Divino etc.

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