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Por Rui Samarcos Lora

Alegorias e simbolismos da “tábua de traçar”: uma introdução
O significado literal da palavra “painel” não é o mais adequado para se referir ao quadro que os templos maçónicos apresentam por ocasião da abertura dos seus trabalhos. Isto porque, no cotidiano, quando se emprega a palavra “painel”, é comum associá-la à ideia de uma pintura, propaganda, anúncio pintado ou até mesmo ao quadro de funções de um automóvel. O raciocínio não é de todo equivocado. Entretanto, no contexto maçónico, o móvel que compõe um templo maçónico chamado de painel tem significado maior e mais profundo do que o representado pela palavra em si.
Por esta razão, para que se possa extrair este significado escorreito, direccionando o estudo maçónico para uma compreensão contemporânea do referido instrumento, este trabalho propõe seja utilizada a tradução do termo empregado nas lojas maçónicas de língua inglesa, isto é, tracing board. Com isso, tem-se: “tábua de traçar”. A referida tradução per se exprime com maior clareza a função desta peça maçónica de grande relevância para os trabalhos desempenhados pela maçonaria em seus graus simbólicos no REAA.
A este respeito, necessário destacar, ainda, que, por tratar-se de peça tão antiga quanto a própria história da maçonaria, a diversidade de painéis maçónicos existentes impede que o trabalho ora delineado abranja a totalidade dos muitos exemplares espalhados pelo mundo. Por esta razão, este trabalho concentrar-se-á em analisar o conjunto de painéis alegóricos dos graus simbólicos do REAA, mormente o do grau de aprendiz maçom, por ser o painel primordial para o estudo maçónico, uma vez que a simbologia se repete, de certa forma, nos subsequentes graus e, notadamente, nos painéis.
Importante mencionar que o fundador do sistema de Grandes Lojas brasileiras, Mario Behring, durante o estabelecimento da referida potência maçónica no Brasil, necessitava fornecer rituais dos graus simbólicos para que as recém-criadas Lojas pudessem trabalhar. A fim de aproximar essas Lojas brasileiras às inglesas e americanas, Mario Behring inclui diversas características dos rituais de York e de Emulação aos seus rituais do REAA. Uma dessas características incluídas foram os jogos de painéis —emprestados” dos mencionados ritos. Dessa forma, com a duplicidade de painéis, Mario Behring encontrou como solução intitular os painéis originais do REAA de painéis simbólicos e os de York e Emulação de alegóricos. Um de influência e tradição inglesa e outro de influência e tradição francesa, angariando maçons de ambas as potências. De toda forma, ambos os jogos de painéis apresentam simbologia semelhante, sem prejuízo de sua função maçónica (RIBEIRO, 2007).
Ademais, como o viés deste trabalho está relacionado às influências hebraicas no painel, importante esclarecer que o propósito deste artigo não é o de criar um consenso a respeito do tema, nem o de ir contra os muitos escritos sobre o assunto. O principal objectivo do trabalho é o de revelar os elementos típicos da tradição hebraica, a fim de melhor esclarecer o sentido das alegorias, com vistas a se obter entendimento e explicação simbólica concisa acerca do painel.
Assim, ao falar da tradição e influência hebraica, destaca-se o papel do misticismo hebreu, peculiarmente encontrado nos estudos de cabala [2]. Por esta razão, importante notar que muitos teóricos e autores maçons se utilizam da terminologia, do estudo e dos muitos escritos a respeito da cabala associando-a a outras vertentes fora do seu contexto original para justificar lendas, tradições, argumentos herméticos pouco relacionados à cabala tradicional, transformando a mística hebraica tradicional em uma miscelânea de lendas e contos que fogem do propósito e do estudo milenar levado a cabo por diversos estudiosos e cabalistas de grande renome.
A partir destas directrizes, pode-se afirmar que, do ponto de vista moral, o painel se dedica ao planeamento e à organização dos trabalhos a serem desenvolvidos em cada grau, assim como como este planeamento pode ser aplicado na vida maçónica fora dos templos, das Lojas. Já no que diz respeito ao lado espiritual e esotérico, retrata conceitos relacionados à criação do universo, à cabala e a outros elementos que serão desenvolvidos ao longo deste estudo.
Contemporaneidade histórica do painel
De acordo com Dring, verifica-se que os painéis maçónicos evoluíram com o passar do tempo, sofrendo alterações estéticas e até mesmo físicas, onde os primeiros eram traçados no chão com carvão, perpassando pela época em que foram formatados em carpetes até chegar no actual quadro emoldurado do século XIX (1916, pg. 243). Assim, pode-se dizer que a evolução histórica do painel maçónico pode ser dividida em três períodos ou fases: i) painéis traçados no chão (séc. XIII ao séc. XVII); ii) painéis de carpete (séc. XVIII ao séc. XIX); e iii) painéis emoldurados (séc. XIX até à actualidade) (DRING, 1916, pg.243).
No primeiro período, durante a maçonaria operativa (séc. XIII a séc. XVII), as tábuas de traçar eram, na verdade, desenhos feitos no chão com giz. Nelas os mestres mostravam aos obreiros a forma de se construir seus projectos. Nestes desenhos estavam contidas as informações sigilosas de cada guilda, ou seja, a forma, o cálculo e os detalhes de cada ângulo, coluna, arco, das construções, isto é, uma planta dos projectos de arquitectura da época. É por esta razão que, ao final dos trabalhos, os obreiros apagavam os desenhos como forma de preservar a maneira de se construir, fazendo deles um grupo de especialistas na arte da construção (DRING, 1916, pg.244).
Posteriormente, com a chegada do Renascimento, as construções góticas perdem importância e, por sua vez, a maçonaria operativa também. Surge, então, a maçonaria especulativa e o painel ganha formatos diferentes: primeiro como carpetes estendidos no chão – hoje ainda utilizados pelo Rito Schroeder – e, depois, emoldurados, permanecendo, assim, até os dias actuais (STEVENSON, 2005, pg.26).
Sendo assim, apesar das formas e mudanças, a ideia de planeamento tem perpassado todas as épocas, permanecendo actual até os dias de hoje, intrínseco no painel, o que o torna instrumento contemporâneo de trabalho da Ordem Maçónica. Planeamento é a palavra-chave para que se entenda uma das muitas mensagens que esta jóia fixa transmite do ponto de vista moral e prático para a vida maçónica dentro e fora dos templos.
O senso de planeamento nunca deixou de existir ao se estudar o painel. A este respeito, interessante lembrar que, de acordo com Da Camino: —Há muitas explicações para o painel. Uma delas nos diz que nenhum trabalho deve ser encetado sem antes ser planejado” (2007, pg. 75).
O painel é fonte primeira do planeamento maçónico, juntamente com o ritual que traduz o simbolismo e a ideia expressada pela jóia. Toda a ritualística da Loja e sequência de cerimónias executadas em qualquer sessão maçónica, desde a entrada ao templo, início dos trabalhos até o encerramento, etapa por etapa, tudo decorre de um planeamento adoptado pelo ritual, expresso, simbolicamente, no painel. Não obstante, o planeamento exaurido do painel está relacionado ao trabalho a ser executado em cada grau. Temos, assim, uma espécie de resumo do grau em cada painel do simbolismo. Nele é representado, por intermédio das alegorias e símbolos, o que deve ser extraído de ensinamento para o grau em que a Loja estiver trabalhando (MACNULTY, 1991).
A maçonaria, de forma geral, como organização universal, tem como um de seus propósitos o de tornar feliz a humanidade. É a partir dessa máxima que se pode extrair, mais uma vez, a importância do planeamento para a contemporaneidade da Maçonaria, ou seja, o planeamento maçónico é fundamentado no aspecto legal da Ordem, nos princípios da ética é da moral, na eficiência e na organização, na condução dos trabalhos e debates, no sigilo, nos critérios para ingresso, para correcção de erros e administração de forma geral. Assim, o planeamento é intrínseco não só ao que representa o painel, mas a forma de condução dos trabalhos da Loja e da Ordem.
Mencionado o aspecto relacionado ao planeamento, contemplado no painel da Loja, resta, ainda, apresentar o segundo item proposto para o estudo deste trabalho: a influência hebraica presente no painel. Assim, a este respeito, como visto anteriormente, no REAA, durante a passagem da maçonaria operativa para a especulativa, o painel deixou de ser desenhado a cada reunião e se padronizou dentro dos graus simbólicos, sendo adoptado pelo REAA (AQC, 1979, p.52). Na maçonaria especulativa as figuras ganharam significado mais abrangente além da noção moral de planeamento intrínseca à peça, onde o valor simbólico passou a ser aprofundado pela maçonaria especulativa, passando a ter significados muito fortes. É sobre estes significados que o próximo item do trabalho versará, abordando a alegoria hebraica e mística do painel.
A influência hebraica
Durante seu estabelecimento e formação, o REAA teve muita influência das tradições religiosas hebraicas e cristã. Apesar dessa influência girar em todos de duas grandes religiões, este trabalho tratará exclusivamente da influência hebraica. Isso porque os primeiros graus do simbolismo maçónico, as palavras e toda a ornamentação da Loja, se espelham no histórico bíblico do Antigo Testamento, ou seja, na Tanach [3]. Portanto, para se explicar a chave alegórica de interpretação esotérica do painel não se pode deixar de mencionar, em particular, o esoterismo hebraico.
Dentro da tradição hebraica, diferentemente de outros credos, o Livro da Lei não é apenas interpretado por seu conteúdo escrito, há que se levar em conta a tradição oral e a tradição mística. Além da tradição escrita, ou seja, os livros que foram escritos e de onde se extraí toda a essência da Bíblia e tradição que se conhece, também é de elevada importância a tradição oral passada de pai para filho e compilada pelos sábios tempos atrás, a preservando em escritos, a fim de que a tradição e o entendimento de metáforas não fossem perdidos com o passar do tempo, com as guerras e com os massacres e perseguições acometidos contra o povo judeu. Surge, assim, o Talmud. Uma colectânea de livros que registram as discussões rabínicas que pertencem à lei, ética, costumes e história do judaísmo. O Talmud, por sua vez, tem dois componentes: a Mishná (c. 200 d.C.), primeiro compêndio escrito da Lei Oral judaica; e a Guemará (c. 500 d.C.), discussão da Mishná e dos escritos tanaíticos que frequentemente abordam outros tópicos. O Talmud, além de ser a tradição oral relatada ao longo dos anos, representa os comentários orais e explicações de passagens do —Velho Testamento”. Por esta razão, não é tarefa simples a de interpretar o Livro da Lei sem um estudo aprofundado do Talmud e dos comentários dos sábios que o escreveram ao longo dos anos (BRIDGER, 1992).
Com isso, deve-se mencionar que, da mesma forma que o REAA foi influenciado pelos elementos e tradições hebraicas, não poderia ser diferente no que diz respeito aos painéis alegóricos, especialmente por conta de sua simbologia bíblica altamente associada ao Templo de Salomão e aos diversos componentes que os adornam, sendo que o significado e a reflexão que se faz de cada símbolo está relacionado aos escritos e aos relatos bíblicos. Não obstante, nota-se que, ao associar o significado do painel e de seus elementos, a maçonaria contemporânea nem sempre leva em conta os demais escritos e comentários a respeito do Livro da Lei, isto é, se exclui as explicações orais e místicas propostas pelos livros originais que complementam a tradição hebraica, utilizando-se somente da Torá. Sem a explicação oral e mística, não é possível extrair a essência e a parte —não revelada” de cada elemento que adorna o painel. Por esta razão, a interpretação completa do painel deve levar em consideração os demais escritos, especialmente o que diz respeito à tradição mística (ZELDIS, 2014).
Por esta razão, com vistas a responder ao tema proposto para este artigo é fundamental o estudo e um olhar profundo sobre a parte mística da tradição hebraica. Em poucas palavras, seria o estudo do —fundo branco que as letras pretas do Livro da Lei marcam” e aqui é necessário o estudo e melhor entendimento da cabala, isto é, a mística hebraica, a tradição hebraica de fato. Entretanto, difícil estudar e discorrer sobre a cabala sem uma boa noção da tradição escrita e oral do Livro da Lei, assim como do hebraico. Por isso a necessidade de se falar destes três elementos ora citados: Tanach, Talmud e Cabala, observando, assim, a complementaridade e complexidade da inseparável tríade: tradição escrita, tradição oral e tradição mística, nos levando a chamar de tradição hebraica. Somente assim podemos consolidar pleno entendimento das alegorias bíblicas presentes no painel, compreendendo e melhor interpretando a mensagem e função desta peça da Loja.
Por fim, para concluir a análise do trabalho, uma vez apresentados os elementos essenciais para o entendimento do painel, caberá ao tópico seguinte apresentar peculiaridades relacionadas ao significado esotérico cabalístico das principais alegorias desta jóia fixa.
Compreensão cabalística do painel alegórico
A cabala tem ganhado grande atenção dentro e fora da maçonaria, atraído curiosos de diversos ramos: artistas, esotéricos, professores, terapeutas, dentre outros. Ademais, ganhou a atenção de cartomantes, místicos, bruxos e herméticos ao longo dos anos. Não obstante, o domínio e o entendimento pleno da cabala só podem ser aproveitados no estudo maçónico se somado aos demais elementos apresentados anteriormente. Todavia, de nada adianta o conhecimento e o estudo se não estiver associado ao conhecimento mínimo do idioma hebraico, cerne para toda a filosofia cabalística.
A maçonaria é fortemente inspirada pelas noções e princípios da cabala. Desde os simples símbolos que adornam a Loja, perpassando pelas palavras de passe de cada grau. Por esta razão, não seria diferente ao analisar o painel, repleto de alegorias alusivas à cabala. Dentre os muitos elementos presentes, o primeiro a ser destacado neste trabalho é a Etz HaChayim, isto é, Árvore da Vida. Apesar de não estar graficamente representada no painel, com uma breve análise dos elementos e das funções da Loja se pode perceber e, até mesmo visualizar, o esforço do ornamentador em imprimir significados alusivos a este símbolo fundamental para este estudo.
Pacheco afirma que:
dos Rituais Maçónicos do REAA, em todos os Graus, encontramos referências à Cabala e à Árvore da Vida (…) sempre que se desenrola o diagrama (referência à Árvore da Vida), em termos de representação, o objectivo é reproduzir o drama da Criação Divina (2011, p. 69).
A este respeito, recorda-se que, não é o intuito deste artigo decifrar e esclarecer todo o desenrolar do estudo da cabala, mas basta para esta abordagem demonstrar que a abertura dos trabalhos no REAA poderia ser uma representação do momento de criação do universo e, por si só, alude à simbologia da Árvore da Vida. Por sua vez, remontará, também, à alegoria do painel do primeiro grau, representado pelas jóias móveis (esquadro, nível e o prumo). Toda a criação está descrita na Árvore da Vida, assim como no painel. Cabe acrescentar – apenas para se ter ideia de quão semelhantes são os credos e suas ornamentações alegóricas – que a mesma Árvore de uso cabalístico, o macrocosmo, também é muito usada para explicação dos chakras (ZELDIS, 2014), uma forma reduzida do princípio criador, isto é, em um espectro menor, no caso, o microcosmo, existente em cada ser humano, daí a famosa figura do Adam Kadmon [4].
Com esta explicação, de maneira esotérica, pode-se extrair da simbologia do painel a representação da Criação do Universo, a forma com que se deu o estabelecimento do mundo. No painel, as jóias móveis (representando o Venerável Mestre, o Primeiro Vigilante e o Segundo Vigilante) associadas aos elementos do sol e da lua (Primeiro e Segundo Diácono) ganham significado fundamental quando se remonta à abertura dos trabalhos da Loja e a circulação dos Diáconos. Assim, ao representar, ademais, o antagonismo da natureza, dia e noite, afirmação e negação, claro e escuro, positivo e negativo, masculino e feminino, também encenam a formação do Universo, isto é, a abertura da Loja.
De acordo com Pacheco:
No início de qualquer sessão, o Venerável Mestre manifesta sua vontade de instalar a sessão e profere o Fiat Lux, ou seja, liberta seu emissário o Sol (Primeiro Diácono) portando a palavra e a Luz, que percorre o caminho solar para iluminar a Coluna do Norte (Primeiro Vigilante). Da Coluna do Norte é accionada a Lua, a qual transmitirá a Luz reflectida ao Segundo Vigilante, juntamente com a Palavra (2011, p. 71).
Outro elemento presente no painel e que complementa este entendimento a respeito da Criação do Mundo e a da influência mística é o antigo símbolo do ponto e o círculo. Antes de existir a famosa e tão discutida teoria do Big Bang, acredita-se, por meio da cabala, que o Patriarca Abraão teria redigido o famoso livro místico Sefer Yetzirá [5], o Livro da Criação. Neste livro, Abraão teria narrado, em detalhes, a história de criação do mundo e, de certa forma, remonta, igualmente, à simbologia da Árvore da Vida. (CASTELLANI, 1993)
No caso específico do painel, vimos que a circulação dos Diáconos – representados pelo Sol e pela Lua – associada à transmissão da palavra pelas Joias Móveis, culminaria com a abertura do Livro da Lei, isto é, o Fiat Lux, depreendendo que, por meio da palavra divina, em hebraico, o mundo foi criado, a luz foi produzida.
Assim, temos:
Antes de todas as coisas serem criadas (…) a Luz Divina era simples e enchia toda a existência. Não havia espaço vazio(…) Quando a Sua simples Vontade decidiu criar todos os universos (…) Ele comprimiu os lados da Luz, deixando um espaço vazio (…) Este espaço era perfeitamente redondo (…) Após essa compressão ter ocorrido (…) passou a existir um lugar onde todas as coisas poderiam ser criadas (…) Ele, então, traçou uma única linha recta da Luz infinita (…) e a trouxe até aquele espaço vazio (…) A Luz infinita foi trazida para baixo por intermédio desta linha (…)(PACHECO, 2011, p. 80).
Essa narrativa se assemelha muito com a explicação de criação apresentada centenas de anos depois pela teoria do Big Bang e revela o significado que mais parece próximo para utilização do simbolismo do ponto e do círculo na Ordem. Este símbolo parece retratar o tzimtzum [6], acto de contracção que Deus fez para que o mundo pudesse ser criado. A contracção da Luz Divina deu espaço ao livre arbítrio e, consequentemente, ao espaço existente para criação do Universo, o gesto de bondade do Eterno em criar a criatura e possibilitar cada ser humano buscar a Luz, a Verdade e a Ele próprio (MECLER, 2011).
Daqui, ainda se pode fazer alusão às sefirot [7] da Árvore da Vida, as esferas, os chacras que se revestem de cortinas para os olhos humanos, impedindo que a verdadeira Luz possa ser enxergada, a essência de Deus. Por esta razão, necessário desvendar cada uma delas, como se subíssemos degraus de uma escada até atingir a Luz, a Verdade. Essa mesma escada também está representada no painel e é chamada de Escada de Yacov.
Assim, apoiada nas três grandes luzes da Maçonaria, as Jóias Móveis, como já visto, o Venerável Mestre, o Primeiro Vigilante e o Segundo Vigilante, sobre o Altar dos Juramentos, local que intermedeia o círculo e o ponto e o Livro da Lei, vê se a Escada de Yacov, de inúmeros degraus que sobe até a Estrela Flamejante, encerrando sua luz com o tetragrama sagrado ou, simplesmente, com a letra “G”, uma alusão a Deus [8].
A Escada de Yacov é alegoria extraída do Livro de Bereshit (Génesis) 28: 10-19. Pelo relato bíblico, essa escada significava o caminho que conduzia à morada de Deus e, de forma análoga, a Escada de Yacov presente no painel representa o caminho sagrado, o caminho do aperfeiçoamento moral e espiritual, o caminho da perfeição que leva toda criatura ao Criador, como se depreende dos rituais do REAA.
De acordo com o misticismo e o simbolismo representado, ao subir cada degrau, desvendando cada cortina das esferas da Árvore da Vida, a ideia que se tem é a de que se retorna à Luz, à Verdade, à essência de Deus. Assim como Ele se partiu no acto de criação para dar espaço à existência do mundo, o Painel faz alusão à necessidade de que cada maçom, como centelha do Fogo Divino, retorne à Luz, se evolua. (MECLER, 2011)
A alegoria é forte e muito profunda em cada elemento do painel que se reflecte na liturgia do ritual e do rito. Por esta razão, é muito importante que se analise e assimile a simbologia de cada elemento e do painel em si. Apesar da antiguidade desta pela, segue actual para os interesses e propósito da ordem em todos os aspectos, sejam eles morais ou espirituais, cabendo ser melhor analisado pelos teóricos e estudiosos do assunto.
Considerações finais
Muito da ritualística e alegoria maçónica é simplesmente usada por assimilação ou invencionismo que alguns passaram a chamar de usos e costumes, utilizando isso para justificar qualquer coisa que não haja explicação ou fonte. Uma forma de fugir do tema ou explicar o inexplicável. Por outro lado, a Maçonaria é singular por não pregar uma única verdade, um dogma, uma doutrina e é por esta razão que não é uma religião. A Maçonaria permite discordar, concordar e acordar diferentes formas de se enxergar a verdade, desde que haja estudo, pesquisa e riqueza de fontes.
A proposta deste trabalho não é trazer uma verdade para o debate acerca do painel, entretanto, propor discussão sobre a importância desta Joia tão relevante para os dias actuais da maçonaria, despertando e estimulando o debate e a pesquisa voltada para os elementos simbólicos que compõem o jogo de painéis alegóricos do REAA. Por esta razão, a contemporaneidade do painel é elemento vital deste trabalho. Ao concluir este estudo, importante relacionar os três principais elementos que sustentam o propósito deste artigo:
- contemporaneidade: a importância do tema para os dias actuais;
- influência hebraica: inspiração buscada nas escrituras da Tanach (Antigo Testamento); e
- influência mística: o estudo da cabala.
Do ponto de vista contemporâneo, o painel além de ensinar a necessidade de se planejar todas as acções que se pretende empregar na vida, apresentando conceitos de organização e estratégia – os mesmos utilizados pelos membros da maçonaria operativa – do ponto de vista esotérico representa a arte de saber dar para receber quando se visualiza o feito de Deus no acto de criação do universo. Isso porque o Eterno contraiu sua Luz para dar espaço à existência de tudo e, assim, poderia receber sua própria Luz, contrário do monótono vazio, ausência.
A busca incessante pela verdade está representada pela gradual ascensão na Escada de Yacov (Sefirot da Árvore da Vida) e essa só acontece quando se sabe dar para poder receber, princípio norteador da cabala. Para que isso possa ocorrer, importante saber separar a fé da vontade de estudar, de conhecer, de ler e apreender a respeito dos mistérios que rondam a maçonaria.
Rui Samarcos Lora [1]
Notas
[1] Rui Samarcos Lora é Doutorando em Ciências Políticas pela Universidade de Coimbra, Especialista em Ciências Políticas pela UnB (Universidade de Brasília, 2006), Bacharel em Relações Internacionais pelo UniCEUB (Centro Universitário de Brasília, 2004).
[2] Cabala é um método esotérico, disciplina e escola de pensamento que se originou no judaísmo.
[3] Tanach é o acrónimo utilizado dentro da tradição hebraica para denominar seu conjunto principal de livros sagrados, sendo o mais próximo do que se pode chamar de uma Bíblia judaica. O conteúdo do Tanach é quase equivalente ao do Antigo Testamento, porém com outra divisão. O Tanach consiste de vinte e quatro livros. A palavra Tanach é formada pelas sílabas iniciais das três porções que a constituem, a saber: Torá (TA), Neviim (NA) e Chetuvim (CH). Sendo a Torá a mais importante das escrituras do judaísmo, onde estão configurados os cinco livros conhecidos como Pentateuco ou, ainda, Chumash. Neviim significa “Profetas”, isto é, os oito livros escritos pelos profetas da época do Antigo Testamento.
[4] Adam Kadmon representa o Homem Arquetípico, o Homem Primordial, comparável ao Antropos do gnosticismo e do maniqueísmo. Ele é a síntese da árvore da vida, que emana do infinito cabalístico (Ein Soph).
[5] Sefer Yetzirá ou Livro da Criação é um texto antigo pertencente ao corpus da cabala judaica. O Livro é um dos livros mais antigos e está ligado a literatura cabalística. É um dos pilares que se baseia a cabala judaica.
[6] Tzimtzum no Misticismo judaico, significa “contracção” ou “constrição”. Refere-se à noção cabalística sobre a Criação, de acordo com a qual Deus “contraiu” sua infinitude com a intenção de permitir um “espaço conceituai” dentro do qual um mundo finito e aparentemente independente pudesse existir.
[7] Sefirot (também grafado Sephiroth, cujo singular é sephira ou sefira) são as dez emanações do infinito (Ain Soph) da cabala. De acordo com a cabala, Ain Soph é um princípio que permanece não manifestado e é incompreensível à inteligência humana. Deste princípio emanam os Sefirot em sucessão. Esta sucessão de emanações forma a árvore da vida.
[8] YHVH é o tetragrama hebraico יהוה comumente transliterado em letras latinas como YHWH. É o nome impronunciável de Deus e na maçonaria está simbolizado pela primeira letra yud, no alfabeto latino se usa a letra “G”.
Referências
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- BRIDGER, David. The New Jewish Encyclopedia. New York: Editora Behrman House, 1962.
- CASTELLANI, José. A Maçonaria e sua Herança Hebraica. Londrina: Editora A Trolha, 1993.
- CASTELLANI, José. Shemá Israel. São Paulo: Editora Gazeta Maçônica, 1977.
- CORTEZ, Joaquim Roberto Pinto. A Maçonaria Escocesa. Londrina: Editora A Trolha, 2009.
- DRING, E.H. (1916). “The Evolution and Development of the Tracing or Lodge Board”. Ars Quatuor Quatuor Coronati Lodge No. 2076.
- GOROVITS, David e FRIDLIN, Jairo. Bíblia Hebraica. São Paulo: Editora e Livraria Sefer LTDA. 2006.
- HATZAMRI e HATZAMRI, Abraham e Shoshana. Dicionário Português-Hebraico e Hebraico-português. Sefer, 1995.
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- MACKEY, Albert. Encyclopedia of Freemasonry And its Kindred Sciences.
- MACNULTY, Kirk. Freemasonry, A Journey through Ritual and Symbol. London: Thames and Hudson Ltd, 1991.
- MECLER, Ian. O poder de realização da Cabala. Editora São Paulo: Record, 2011.
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- RIBEIRO, João Guilherme C.: Os Fios da Meada. Rio de Janeiro: Editora Zit, 2007.
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- ZELDIS, L. The Iconography of the Tracing Boards. The Israeli Freemason Magazine, Disponível em: http://www.mastermason.com/fmisrael/tb.html. Acesso em: 2017 jul. 2017.
