Por Ivan A. Pinheiro e Marco A. Piva[1]

Um estudo aplicado e comparado: Rito Escocês Retificado x Rito Moderno
INTRODUÇÃO
O objetivo principal deste texto é demonstrar que o MGA&IS (Pinheiro, 2023) é uma ferramenta com aplicação e utilidade, senão a todos, a vários Ritos maçônicos; em síntese, um instrumento de gestão para planejar e organizar a elaboração e a apresentação dos trabalhos (em resposta às Instruções ou sobre temas livres), bem como os debates subsequentes, em outros termos: uma ferramenta auxiliar à operacionalização da agenda da Loja e dos estudos, individuais ou em grupos. Considerando que uma das definições mais usuais do que é a Maçonaria informa que ela “é um sistema de Moral, velado por alegorias e ilustrado por símbolos” (GLMERGS, 2007, p. 7), o MGA&IS oferece 3 (três) alternativas ou modelos organizados em 4 (quatro) níveis de análise para desvelar as alegorias e interpretar os mais diversos símbolos, sejam estes apresentados na forma de texto, imagens, objetos ou apreciados conjuntamente. O esquema básico pode ser visto no Quadro 1, a seguir:
Quadro 1: Níveis de Leitura e Interpretação de Textos & Símbolos
| Níveis de Leitura Adler & Van Doren | Níveis de Interpretação Bension | Sentidos de Interpretação McGrath |
| elementar (parte) | peshat (realidade) | literal (realidade) |
| inspecional (superficial) | remez (entendimento) | alegórico (interpretação) |
| analítica (profunda) | darash (metáfora) | tropológico (moral) |
| sintópica (descoberta) | sod (revelação) | anagógico (elevação) |
O exercício que segue, uma aplicação do MGA&IS, foi desenvolvido a partir de um símbolo – o templo – considerado na perspectiva de 2 (dois) Ritos: o Regime (Rito) Escocês Retificado (RER) e o Rito Moderno (RM), também referido como Francês, razão pela qual também são 2 (dois) os autores, o primeiro mais familiarizado com o RER, enquanto que o segundo, com o RM.
No caso em apreço serão utilizados os “Sentidos de Interpretação de McGrath” organizados em 4 (quatro) categorias: literal; alegórico; tropológico; e, anagógico. Acerca do quarto sentido de interpretação – o anagógico – é importante esclarecer que no texto original McGrath refere ao sentido “analógico”; todavia, por analogia com as tipologias “de mesmo nível” empregadas por Adler & Van Dore e também por Bension, a expressão (em português) que melhor traduz o sentido[2] correspondente é “anagógico”[3], justificando-se, assim, a alteração promovida. Na expressão textual do autor (McGrath, 2005, p. 17):
O método aceito pela Igreja para a interpretação bíblica […] Quadriga[4], ou do “sentido quádruplo das Escrituras”. A origem desse método é a distinção entre os sentidos literal e espiritual […]
- sentido literal, no qual o texto é recebido como está escrito;
- sentido alegórico[5], que interpreta certas passagens das Escrituras com a finalidade de estabelecer doutrinas. Trata-se de passagens pouco compreensíveis ou possuidoras de sentido literal inaceitável pelos leitores, por razões teológicas;
- sentido tropológico ou moral, que interpreta passagens destinadas à orientação moral para a conduta cristã; e,
- sentido analógico, que interpreta passagens indicativas dos fundamentos da esperança cristã, voltadas para a consumação futura das promessas divinas na Nova Jerusalém.
Quanto ao enquadramento, este texto é um ensaio analítico-crítico, produto do entendimento formado pelos autores a partir das suas experiências, bem como lastreado na literatura referenciada. Todavia, para assegurar a característica intersubjetiva que distingue os Ritos maçônicos, ambos solicitaram que, inicialmente, as suas respectivas leituras e interpretações fossem apreciadas por outro Irmão praticante do mesmo Rito, o que pode ser considerado como uma estratégia de “validação” das premissas que subsidiam as análises no âmbito de cada um dos Ritos; o que, em absoluto, reitera-se, afasta o caráter e a responsabilidade individual das respectivas leituras. Na sequência os colaboradores foram convidados a opinar sobre o conjunto da obra, das partes consolidadas, do que resultou o texto a seguir que, se não é consensual, também não é exclusivamente pessoal, tendo sido submetido, da forma esclarecida, ao olhar de experientes estudiosos. Os autores agradecem a disponibilidade e as contribuições dos Irmãos Alexander Varejão[6] (RER) e José Filardo[7] (RM).
Ao invés de apreciarem todas as categorias dos Sentidos de Interpretação de McGrath, Rito a Rito, os autores optaram pela seguinte estrutura de apresentação: a cada Sentido de Interpretação (o literal, o alegórico, etc.), trouxeram a leitura do “templo” a partir do olhar de cada Rito. A intenção foi, pela via da aproximação, ressaltar as semelhanças mas também os contrastes entre 2 (dois) Ritos que, contemporâneos de origem[8], expressam tanto a efervescência intelectual quanto as cosmovisões que disputavam os corações e as mentes do seu tempo, o séc. XVIII – o final da Modernidade e o auge do Iluminismo -, expresso no embate em que de um lado se posicionaram aqueles que, em síntese[9], Pinheiro (2021) designou como “os homens de ciência” e, do outro, “os homens de fé”. Antes, todavia, o templo é apresentado em suas características mais gerais (seção 1), seguido de um brevíssimo histórico dos Ritos (seção 2). O exercício propriamente dito, o contraste entre os Ritos a partir das categorias de análise especificadas se dá, então, na seção 3 – MGA&IS: um estudo comparado. Em Breves Considerações & Desdobramentos (seção 4), ancorados nas leituras e nas interpretações precedentes, primeiramente chama-se a atenção para os riscos e os perigos das posições extremadas, para logo a seguir avançar em especulações e conjecturas, conferindo, assim, atualidade e valor prático ao tema em foco. Finalmente, nas Considerações Finais, algumas questões foram problematizadas com vistas a motivar novos estudos.
1 TEMPLO (lato sensu)
A expressão templo remete, senão a uma construção edificada, a um espaço físico diferenciado (a exemplo de uma tenda, uma gruta, o interior de uma caverna ou mesmo uma clareira na floresta) em razão do caráter sagrado que lhe é associado, o que implica e autoriza a natureza das atividades, de caráter ritualístico, aí desenvolvidas: recolhimento, reflexão, adoração, meditação, oração, oferendas e mesmo sacrifícios, realizadas pelos seguidores das mais diversas crenças[10], algumas transformadas em religiões; sendo habitual, em meio as religiões monoteístas abraâmicas a referência ao templo como a Casa do Senhor. Ao longo da História, em resposta às suas demandas específicas (regionais) ou contingenciais, cada povo criou, modificou, mesclou ou extinguiu práticas ritualísticas executadas nos respectivos templos.
Todavia, em que pese o legado da Antiguidade, no contexto da Maçonaria, é importante ressaltar que o templo é tanto uma ideia como uma construção Moderna, que emerge aos poucos e sobretudo pós-1717 (fundação da Primeira Grande Loja, a de Londres e Westminster – GLLW) pois, até então, como largamente mencionado na literatura, no Medievo os maçons (pedreiros de ofício) se reuniam nos salões das guildas (rooms, na maçonaria anglo-saxã), nos canteiros (também referidos como oficinas) das obras de toda natureza[11], bem como em outros espaços, a exemplo dos salões das igrejas e das tabernas, como no caso da reunião que selou o ato fundador da GLLW. O primeiro templo maçônico que mais se assemelha aos contemporâneos só viria a ser inaugurado na segunda metade do séc. XVIII; assim, de regra, o usual no contexto da Maçonaria Especulativa (também referida como Simbólica) é que a menção ao templo evoque o local aonde, hoje e de hábito, se reúne a Loja, daí porque também eventualmente referido como Sala de Reuniões, ou ainda como Oficina (de trabalho), numa clara alusão aos tempos da Maçonaria Operativa – conforme, e por motivos que adiante ficarão mais claros, a opção por uma ou outra expressão, em alguma medida expressa as características de cada Rito, não sendo usual, por exemplo, no contexto do RER, o emprego da palavra oficina para referir ao templo.
É nesse curso da História, no século XVIII, que a Maçonaria Operativa cedeu em definitivo o espaço à Especulativa e tiveram início grandes transformações, a exemplo do surgimento do Terceiro Grau, o de Mestre Maçom, e da Lenda de Hiram, eventos, grosso modo concomitantes e que, combinados à nova natureza das atividades – a especulação – ocasionariam profundas mudanças na doutrina e na ritualística maçônica e, como subproduto, alavancariam a criação e a disseminação, tanto de Ritos quanto de Graus, em meio aos quais a Lenda teria continuidade. Por analogia, a Lenda faz a função do termo médio do silogismo: conecta a atividade operativa (a construção física propriamente dita, bem como os instrumentos utilizados) à especulativa (sob a égide do simbolismo, a reconstrução[12] ética-individual e moral-social), dando assim, corpo e vida às doutrinas maçônicas então emergentes.
Por ora, em razão dos objetivos, o tema impõe uma primeira delimitação, um foco; assim, para os Iniciados na Maçonaria a palavra templo de imediato remete ao Templo de Salomão e, por extensão, a toda a carga de significados históricos e teológicos, reais ou imaginários que, não livre de exageros (Coil, 1961, p. 649-51; Guerra, 2023), acompanham a expressão. Por consequência, é impossível pensar o Templo descolado de uma historiografia mais abrangente: a do povo hebreu. Assim, praticamente qualquer que seja o tema, muito do que refere aos eventos antecedentes, bem como à cadeia de consequências, às causas e aos efeitos, tem sido pensado e explicado tendo o Templo como referência. E bem a propósito, antes de tecer novas especulações, cabe arguir: qual dos Templos de Salomão?
- o Primeiro, projetado por David e construído por seu filho, o Rei Salomão, em 950 a.C.[13] e destruído pelos Babilônios (Nabucodonosor II) em 586 a.C.;
- o Segundo, a reconstrução do I conduzida por Zorobabel, Esdras e Neemias quando do retorno do exílio na Babilônia, 516 a.C.; ou,
- o Terceiro (denominação questionada por muitos)[14], produto da reforma do II conduzida por Herodes, o Grande, no I séc. a.C., e destruído logo a seguir, em 70, pelos mesmos romanos?
Um milênio separa o I do III, tempo suficiente para a ocorrência de uma infinidade de eventos que no todo ou em parte (história, personagens, eventos, arquitetura, decoração, utensílios, atividades em geral, etc.) o tenham (o Templo) como palco ou epicentro a partir do qual irradiam uma igualmente infinidade de símbolos associados às situações do cotidiano que, diretamente ou por derivação, expressam lições e regras morais extraídas das mensagens cifradas na forma de metáforas, alegorias, fábulas, parábolas, aforismos, etc., difundidas a partir das religiões monoteístas abraâmicas (judaísmo, cristianismo e islamismo) que, por sua vez, foram as fontes de inspiração para as doutrinas de várias instituições a exemplo da Maçonaria Especulativa. Assim, muito do que dá forma e conteúdo à maçonaria contemporânea – organização, doutrina, ritualística, lendas, mitos, símbolos, alegorias, etc. –, ainda que apresente variações conforme o Rito, direta ou indiretamente relaciona-se ao Templo e, em perspectiva ampliada, à tradição judaica-cristã.
Portanto e em meio a tanto, não só as semelhanças, mas também as diferenças (de origem e as subsequentes interpretações) podem ser largamente exploradas: além da herança do Primeiro, o II Templo possui carga própria de significados – por exemplo, todo o simbolismo associado ao Muro das Lamentações só adquire sentido a partir dos eventos que levaram à destruição do Primeiro, e este, mas não o III e nem o II, não pode ser pensado à margem de toda a carga de significados provenientes dos eventos que circunscreveram o Tabernáculo, do projeto (divisão tripartite) aos construtores e operadores (sacerdotes), à finalidade (guarda da Arca da Aliança, das Tábuas da Lei, “local de encontro”, etc.), entre outros aspectos.
Finalmente, um dos landmarks mais usuais, a compilação de Albert G. Mackey[15], embora não adotado por todos os Ritos, estabelece praticamente como uma cláusula pétrea da maçonaria contemporânea[16], quando da passagem pelo Terceiro Grau, o estudo da Lenda de Hiram[17] que, por sua vez, é indissociável do I Templo; deste modo, tudo o que ao conjunto (I Templo, Terceiro Grau e Lenda de Hiram) refere ou dele deriva por simbolismo, aproxima os Ritos, ainda que diferentes sob outros aspectos. Todo o simbolismo, ou seja, os 3 (três) primeiros graus do Rito Moderno, remete ao I Templo, porque trata do Aprendiz que talha a pedra e a transporta ao canteiro, onde o pedreiro, ou os Companheiros, a moldam e colocam no seu devido lugar nessa construção, que é chefiado e adornado pelo Mestre Hiram. O II Templo só vai aparecer nos graus filosóficos, ou Ordens de Sabedoria do Rito, com Zorobabel.
Antes de avançar, não se perde em lembrar, sobretudo aos recém-Iniciados e àqueles que desde fora observam a Ordem, que Templo e Loja são expressões que não guardam equivalência; assim, por exemplo, uma Loja[18] pode ou não (a depender da finalidade e das circunstâncias) se reunir em um Templo. Outra forma de referir à Loja é considerá-la como uma Assembleia, uma reunião de Irmãos; no RER, por exemplo, com todos os Irmãos já alocados nos seus devidos lugares no interior do Templo, o Mestre de Cerimônias anuncia: “Venerável Mestre, a Loja reunida aguarda-vos para iniciar os trabalhos” (GOB, 2018, p. 115). Ademais, por ocasião das Recepções[19], a expressão Loja ganhará significado mais específico e enriquecido que, por fugir ao escopo, que é o de salientar que Loja e Templo não se confundem, por ora não será explorado; os interessados pelo tema podem consultar, entre outros, Guerra (2020, p. 424) que, em citação de Dachez, afirma: “os textos maçônicos mais antigos não dizem absolutamente nada que a loja seja a imagem viva do templo e como consequência que seus planos se superponham”.
Uma palavra de esclarecimento e alerta: a primeira categoria de análise a ser apreciada – a interpretação literal – se pretende neutra, objetiva, ser a linguagem franca dos interlocutores, iniciados ou não na Maçonaria. Enquanto tal, o que se pretende é que o significante (símbolo[20]) seja comunicado (e entendido) com o mesmo significado pelo maior número de pessoas; não obstante, com frequência não é o que ocorre. Tome-se mesmo a expressão “templo”, cuja audição ou leitura podem suscitar notáveis diferenças semânticas e imagéticas: ao ouvi-la um cristão evocará significados e imagens diferentes, por exemplo, das de um judeu (sinagoga), de um muçulmano (mesquita) ou de um budista (pagode), e mesmo entre os cristãos (romanos, ortodoxos, reformados e outros), apesar das semelhanças, as diferenças são perceptíveis. Ademais, uma circunstância é inescapável e independe da chave de leitura (inclusive a literal) utilizada pelos não Iniciados: o simples fato de saber que os maçons designam o local das suas reuniões como “templo”, e não como castelo, mausoléu ou ainda um bunker, já traz, em si, uma carga de significados, como por exemplo a de que eles (os maçons) consideram as suas atividades, de algum modo elevadas, quiçá sagradas e por isso sigilosas, e com certeza também distintas do que, por oposição, ocorre no que então é denominado de ambiente profano.
Portanto, aos Sentidos de Interpretação apontados no Quadro 1, outras camadas e perspectivas de análise podem ser acrescidas: entre os Profanos (não-Iniciados); entre os Profanos e os Iniciados; e, mesmo entre os diferentes grupos de Iniciados que, na Maçonaria, conforme já assinalado, distinguem-se conforme o Rito e o Grau. Convém, pois, para evitar ruídos na comunicação, atentar para os quadros de referências (objetivas, subjetivas e simbólicas) próprias a cada grupo de interlocução.
2 BREVE HISTÓRICO
É então em meio ao turbilhão de eventos ocorridos no séc. XVIII que se desenvolvem, mas amadurecem e ganham forma definitiva na passagem para o XIX, os 2 (dois) Ritos ora objetos de análise, com ligeira precedência ao RM frente ao RER; assim, preliminarmente, Filardo (2024) esclarece que
Reina no Brasil uma grande confusão terminológica envolvendo o Rito Moderno. De fato, dois ritos diferentes são praticados sob a denominação de Rito Moderno: um deles é o Rito Francês conforme praticado no Grande Oriente de França, e o outro é a versão resultante da Revisão Amiable de 1887 que produziu um ritual enxuto e breve […] Na França, o Rito Francês surge em 1804 com o Regulateur du Maçon, uma cuidadosa e exaustiva compilação das práticas maçônicas do século XVIII. Era um rito que tinha por espírito preservar os conceitos revolucionários introduzidos pelos ingleses em 1717 quando constituíram a Grande Loja de Londres e Westminster […].
Ao fim e ao cabo são 2 (duas) denominações (Moderno e Francês) para o que, na verdade, corresponde a um só Rito, porém com diferentes rituais utilizados em tempos distintos. Ademais, o termo Moderno não tem patente britânica, no início era conhecido como Sistema Inglês (craft – a arte) ou, simplesmente, maçonaria, enfim, sem denominação específica no seio da GLLW, aonde e até hoje a sua sucessora, a GLUI, não o designa como Rito. Foi então, na França, que recebeu a denominação de Sistema Francês a partir da introdução do Regulador do maçom de 1801, e não se sabe exatamente quando, quanto tempo depois, passou a ser conhecido como Rito Francês.
Ambos, o RER e RM são legatários dos eventos, mas sobretudo das ideias fundadoras da GLLW, cujos protagonistas, lembre-se, foram chamados de “modernos”[21] porque, entre outras inovações, romperam com as tradições religiosas cristãs vigentes na Escócia, na Irlanda e também na antiga Grande Loja de York[22]. A GLLW, conforme se depreende de Anderson (2023), nasceu deísta, o que corresponde à crença em uma entidade criadora porém não interventora na realidade cotidiana e tampouco dotada de características demasiado humanas (sentimentos, emoções, vícios, paixões, etc.); do que resulta, para os adeptos dos Ritos alinhados com este pensamento, a inadmissibilidade de orações intercessórias, de agradecimentos, de moções de louvor, etc. destinadas a qualquer entidade sobrenatural no ambiente maçônico, no caso, o Templo. Postura que se justifica no contexto da maçonaria andersoniana em razão da ampla acolhida que esta oferece aos adeptos de todas as religiões, daí a admissibilidade explícita, por ser a convergência possível, somente da religião natural.
Todavia, e a História registra, esse posicionamento levou a uma crise, por alguns vista como cismática, que resultou na fundação, em 1751, da Grande Loja da Inglaterra de Acordo com as Antigas Instituições, ou, como é mais conhecida: a Grande Loja dos Antigos. Desde então as 2 (duas) visões coexistiram em meio a embates até 1813, quando então foram obrigadas pelo Príncipe Regente a selar a União, a Grande Loja Unida da Inglaterra (GLUI), tendo a GLLW progressivamente cedido, até a capitulação total, dos seus preceitos deítas em favor dos da maçonaria tradicional – teísta -, o que implica, por exemplo, a crença em um Deus antropomorfizado e a presença do Livro da Lei[23] em Loja. Por razões que fogem ao escopo deste trabalho, os Modernos passaram a ganhar adeptos e projeção no continente, mais especificamente no Grande Oriente de França, aonde então o RM, tendo encontrado o seu habitat, viria a se desenvolver com força e vigor, o que reforça a dupla denominação: Moderno e Francês.
Ficam, pois, na perspectiva do RM, definitivamente afastadas todas e quaisquer alusões místicas, esotéricas e transcendentes quando das especulações no contexto do simbolismo maçônico, posicionado como racional, científico, laico, adogmático e contrário, em suas reuniões, à presença de livros sagrados enquanto fontes de verdades definitivas algum dia reveladas[24].
Embora também um processo com vários eventos antecedentes, o RER só passa a ganhar forma em 1778 por ocasião do Convento de Lyon[25] (França), e a ser consolidado a partir de 1782 com a realização do Convento de Wilhelmsbad (Alemanha); já os Rituais, sobretudo o de Mestre Escocês de Santo André (MESA)[26], que encerra a fase simbólica, só ficariam definitivamente prontos mais de 2 (duas) década após. Assim, no curso da sua formação o RER encontra estruturas em andamento, experimentadas, algumas até amadurecidas e mesmo desgastadas, o que motivou os seus idealizadores (notadamente Jean Baptiste Willermoz – JBW[27]) a promoverem uma reforma em meio àquela mais ampla e em andamento: a passagem da fase Operativa à Especulativa[28]. Nasce, assim, uma maçonaria que se contrapõe, enquanto resposta intelectual e doutrinária, à exacerbação do racionalismo e empirismo secular Iluminista que se pretendia hegemônico nos demais Ritos. O RER, como visto, se posiciona mais próximo ao ideário, aos usos e costumes da Grande Loja dos Antigos.
O texto fundante do RER é um midrash (Pasqually, 2022) que, em síntese, pretende responder às questões fundamentais: narra como da Unidade foram criados o mundo e os seres (a trajetória no sentido à multiplicidade diversa) que, em razão da Queda, foram revestidos da matéria (a aparência) constituinte dos respectivos corpos, estes, efetivas prisões das centelhas espirituais remanescentes da Unidade primordial (a essência). Daí que a razão de viver encontra o seu sentido na busca pela reintegração à Unidade, na volta às origens, ao retorno da matéria ao espírito puro, ao paraíso perdido; o que implica, primeiro, na purificação, e depois, na liberação do corpo. Nessa visão, a Maçonaria em geral, sobretudo a fase simbólica, e o RER em particular, assim como as Ordens Iniciáticas, se constituem como caminhos, entre outros (alternativos) rumo ao sentido almejado.
O falecimento precoce do autor – Pasqually – antes da conclusão da obra, levou a que os seus discípulos, notadamente Louis-Claude de Saint-Martin[29], mas sobretudo JBW, não poupassem esforços no sentido a completar as lacunas e mesmo esclarecer o que restara de obscuro na obra do mestre, oportunidade na qual, e em grande parte por iniciativa deste último, o “produto final” foi cristianizado. Ambos, assim como outros, deixaram várias obras (livros, trocas de correspondências, cadernos de estudos doutrinários, etc.) que, tendo como pedra angular os Rituais[30], deram corpo e alma à doutrina do que hoje se constitui como Regime Retificado. Portanto, diferentemente do RM, o RER é teísta[31], o que significa que a entidade criadora, movida por sentimentos inescrutáveis, interfere no cotidiano da vida dos homens.
3 MGA&IS: um estudo comparado (RER x RM)
Estabelecidas as preliminares, segue-se o exercício:
- no sentido literal e em síntese, tanto para o Maçom Retificado quanto para o Moderno o significado da palavra “templo” é análogo: uma edificação – ora concluída, ora em construção ou mesmo em reconstrução; todavia, algumas diferenças não podem passar desapercebidas:
- RER – um Templo RER destaca-se pela simplicidade, como, a propósito, é a característica do Regime – o minimalismo[32]. O teto não é constelado, o piso é horizontal – inexistem degraus -, o Oriente e o Ocidente não são separados por balaustrada, não estão presentes as colunas zodiacais, tampouco as representativas das ordens arquitetônicas, e nem os demais símbolos (a exemplo de imagens, do Olho da Providência, etc.) habitualmente vistos nos templos que acolhem outros Ritos; toda a ritualística é circunscrita pelo Painel da Loja/Grau e é desenvolvida a partir do Tapete disposto ao centro e em meio às Luzes (velas – cuja quantidade varia conforme o Grau), no qual estão desenhados os elementos básicos que identificam a Ordem e os propósitos. Para aqueles que se dedicam ao estudo de Ritos comparados, principalmente os provenientes do Rito Escocês Antigo e Aceito (REAA), o mais praticado no Brasil, é notável, na literatura-RER, senão a ausência, o reduzido espaço ocupado, quer pela Lenda, quer pelo I Templo, praticamente limitados às citações, às Instruções ritualísticas e, pelos motivos mencionados, concentrados no III Grau. A propósito, é praticamente inexistente, nessas mesmas fontes, a menção à Maçonaria Operativa em geral – o foco, como aos poucos ficará mais claro, é outro. É somente no Grau de MESA que a reconstrução do que foi o II Templo, já prefigurada no painel do Primeiro Grau – Adhuc Stat[33] -, que o tema ocupa o lugar central da doutrina, quando então conecta e dá sentido às lições morais distribuídas ao longo dos Graus que o antecederam. A primeira seção do Catecismo ou Instrução do Primeiro Grau pergunta e responde: “Que representa a Loja? O Templo de Salomão reedificado misticamente pelos Maçons” (GOB, 2018, p. 225), do que resulta que o templo RER é antes interno do que externo, daí porque o minimalismo, pois o foco é introspectivo, voltado à reconstrução do templo interior a partir da “[…] coluna quebrada e truncada [corpo], mas firme em sua base [o espírito divino]”[34]. Em suma: mesmo ao nível da interpretação literal, o RER dá um salto automático no sentido ao simbolismo; para uma análise mais aprofundada do sentido literal-simbólico amalgamado da expressão templo/Templo no contexto Retificado vide, entre outros, Mazet (2023) e Var (2023). E essa lógica, a da interpretação literal trazer em si mesma o simbolismo, não se limita ao par templo/Templo, aplicando-se, por exemplo, ao termo Queda que, no contexto Retificado, de pronto remete ao pecado original, enquanto que no contexto Moderno pode sim referir a um tropeço, a um obstáculo ocasional e temporário;
- RM – Conforme mencionado, o significado mais amplo e geral é o mesmo em ambos os contextos; todavia, ao contrário do que se verifica no RER, é usual na literatura-RM a substituição da expressão “templo” por Loja, Sala de Reuniões (já referida como room) ou ainda, em associação lógica-racional, por Oficina, em uma clara alusão aos tempos (e às atividades) da Maçonaria Operativa, razão pela qual o templo RM é fisicamente dotado dos instrumentos utilizados pelos pedreiros que, por derivação de sentido ganham significados simbólicos;
- por fim, é hora de, senão notar, ressaltar, que aos argumentos de caráter mais amplo já trazidos sobre as diferentes evocações provocadas pela expressão “templo”, mesmo entre os Irmãos de Ordem, a alusão ao Templo evoca diferentes significados conforme o Rito e o Grau dos interlocutores. Por exemplo, no REAA, como a maioria dos Iniciados não frequenta os Altos Graus, aqueles que se limitam ao simbolismo não travam conhecimento com os fatos, com as especulações simbólicas e as lições morais elaboradas a partir dos eventos no entorno do II Templo, e o mesmo ocorre com os Irmãos Retificados que não ascendem ao IV Grau – em ambos os casos a expressão templo remete, com toda a sua extensão de significados, tão somente ao I Templo de Salomão;
- antes de entrar em considerações no que tange ao sentido alegórico, é importante não perder de vista as escrituras judaico-cristãs, tanto no que refere ao Velho (alguns preferem a designação Primeiro) Testamento, quanto o Novo (Segundo) não são documentos históricos, mas antes narrativas míticas[35] (Römer e Boyer, 2024). Em que pese as evidências históricas documentais[36] e materiais que corroboram determinados eventos, a Bíblia é um conjunto de livros escritos por inúmeros autores (a maioria desconhecida) e que embora redigidos de modo independente, em diferentes momentos e lugares, aos poucos foram reunidos para compor uma narrativa, uma saga-mítica-teológica[37] que inicia (Velho Testamento) com a criação ex-nihilo do mundo, dos homens e estabelece o marco fundador da História do povo escolhido por uma entidade incriada. De modo que a Lenda do Hiram maçônico foi elaborada a partir de uma lenda anterior, a do Hiram bíblico[38]; portanto, além de ambas não guardarem plena correspondência, são frequentes as camadas de representações simbólicas, simbolismos derivados, daí a dificuldade quando não a impossibilidade de encontrar a raiz (evento) originário do símbolo primário. Todavia, ao contrário de essa constatação ser um problema, pelo menos na perspectiva maçônica, é um achado de incomensurável valor. Estórias, mitos, lendas, fábulas e afins, narrativas em geral (Eliade, 2018, 2019; Harari, 2024) são instrumentos poderosos que reúnem os povos em colaboração, estabelecem e consolidam os valores (a serem preservados ou proscritos), os usos e costumes, as celebrações, as idiossincrasias, dão conta das atualizações geracionais, enfim, formam a identidade e as tradições que cimentam a unidade do povo, da comunidade de referência. Acima foi referida a historiografia do povo judeu, mas tão importante quanto esta, em si mesma, é não perder de vista que os autores (historiadores), sobretudo com interesses nacionais, não são neutros, a forma como os fatos são apresentados seguem uma estratégia para atingir determinados objetivos. De outro lado, ao deixarem lacunas, incompreensões e mesmo ambiguidades, em parte devido à sua própria elaboração histórica, as narrativas, e nisto consiste a riqueza, abrem um largo espaço às interpretações (leia-se: especulações) criativas povoadas de personagens heroicos (Campbell e Moyers, 1990) em meios aos tantos ritos de passagem (provas de superação física, intelectual e psicológica), a exemplo das Iniciações. Pela sua abrangência, praticamente não há aspecto da natureza humana que não tenha sido abordado nas Escrituras, o que é determinante para que, independentemente da historicidade fática, se constituam como fonte valiosa à especulação maçônica também comprometida com a natureza humana;
- conforme prenunciado, o fato de o local de reunião dos maçons, independentemente do Rito, ser considerado um templo já carrega na própria expressão uma carga de significados (reais ou imaginários) que, por exemplo, enquanto afasta do seu interior determinadas atitudes e comportamentos vistos com naturalidade nos espaços profanos[39] (da vestimenta à etiqueta), cria expectativas como a observação do silêncio e a atitude reverencial[40], sobretudo após o anúncio de que a “Loja está aberta” para o início dos trabalhos. E sob a orientação das “Luzes” – expressão, per se também carregada de significados em todo o corpus maçônico[41] – têm início, então, os trabalhos (simbólicos, analogados ao desbaste e à lapidação das pedras brutas, seguido do polimento e do encaixe orientado ao projeto) realizados com o auxílio do ferramental empregado pelos Maçons Operativos: o nível, o prumo, o esquadro, a régua, a trolha, o compasso[42], etc., e, não menos importante, o projeto, o plano de trabalho – todos fisicamente presentes no templo ou, como é o caso no RER, representados no Tapete da Loja. Sabe-se que tudo isso é tão somente uma representação simbólica, devendo os personagens, as ferramentas e mesmo a obra serem transpostos para o cotidiano das sociedades contemporâneas. Por exemplo, quais os instrumentos reais que, na atualidade, seja para a (re) construção (física, psíquica e intelectual) dos homens enquanto indivíduos ou sociedade desempenham as funcionalidades análogas às das ferramentas utilizadas pelos pedreiros operativos, isto é: o que é necessário para erguer a obra, desenvolvê-la com retidão, equilíbrio, solidez, etc.? A educação familiar, escolar, religiosa, as redes de apoio institucionalizadas e/ou outras? No plano social seriam as leis (lato sensu), as políticas públicas, os projetos sociais, os sistemas educacionais, as instituições em geral, a ação coordenada entre o público e o privado, entre os Poderes, entre os níveis de governo ou o quê mais? Assim, sem abandonar os primeiros símbolos e alegorias (associação: objeto-imagem-ideia-significado-metáfora-mensagem) é possível destes, por especulação, passar a outros símbolos e camadas de análise mais aderentes à contemporaneidade;
- ao se declarar cristão, o Maçom Retificado, muito mais do que admitir “àquela Religião sobre a qual todos os Homens concordam, deixando suas opiniões particulares para eles mesmos” (Anderson, 2023, Art. 1º, p. 60) ou ainda reconhecer a existência de um ser superior (o Grande Arquiteto do Universo) e a “crença em uma vida futura”[43], publicamente admite os axiomas e os postulados do cristianismo, a exemplo da crença na Trindade, no Segundo Advento de Cristo (a parusia) e no julgamento final com vistas a ocupar um lugar na Nova Jerusalém, também referida como Jerusalém Celeste. Por consequência, a Ordem Retificada não poderia ser mais clara nos seus intentos e estratégia: “Tua primeira homenagem pertence à Divindade […] Professa em todos os lugares a Divina Religião de Cristo […] O Evangelho é a base das nossas obrigações […] cultiva a tua Alma imortal e perfectível e torna-a suscetível de ser reunida à fonte pura do bem, quando ela se separar dos vapores grosseiros da matéria” (GOB, op. cit., p. 243-44-45); isto é, de regra, todas as alegorias são cristocêntricas. Sem dúvida que essas citações, acompanhadas das orações ritualísticas, de Abertura e Fechamento da Loja, confundem não apenas os que olham desde fora (Irmãos visitantes, leitores e estudiosos) mas também os internos à própria Ordem Retificada que não conseguem discernir e delimitar os domínios Maçonaria versus Igreja-Religião, o que fica patente não só pelo comportamento em Loja (a exemplo dos trabalhos apresentados e, por vezes, pelo modo como é conduzida a Loja) mas também e sobretudo pelas reiteradas manifestações nas redes sociais. Todavia, S.M.J., são claras as delimitações e não há conflito, pois não cabe e tampouco pode a Ordem oferecer a salvação das almas – função precípua da igreja cristã: primeiro, porque não é a sua competência, finalidade; segundo, porque lhe faltam os instrumentos (a oferta dos sacramentos); e, por fim, a salvação é competência exclusiva, é concessão da Graça divina[44]. Assim, a Ordem Retificada, o Templo e a Loja são, em si mesmos, espaços alegóricos complementares em meio aos quais os obreiros, sob a lição dos ensinamentos e inspirados nas condutas de Jesus, o Cristo (daí a citação acima: “O Evangelho é a base das nossas obrigações […]”), desenvolvem os seus trabalhos, “a lapidação da [sua] pedra bruta” – reflexões e debates sobre ética, moral, juízos, decisões, questões cotidianas, mudanças, proposições voltadas à beneficência, etc. Dada a premissa da perfectibilidade, há a expectativa de que quando houver a corrupção da matéria – cessar a experiência no mundo profano, o ciclo da vida -, a centelha divina até então abrigada no corpo possa ser reintegrada à Unidade Primordial – ao ideal de perfeição, à Jerusalém Celeste da qual está afastado desde a Queda. Nesse entendimento, ao contrário do que à primeira vista se afigura e sem colidir com a ortodoxia dos cânones gerais[45], a Ordem Retificada não se confunde, mas à margem colabora com as demais instituições confessionais da cristandade; não tem por objeto a salvação, mas pelas lições que oferece e pelas iniciativas que fomenta, contribui para a economia da salvação cristã; assim, não à toa, quando na Câmara de Preparação (também referida como Reflexão), fase preparatória à Iniciação, é dito ao ainda candidato: “Os vossos progressos dependerão sempre da vossa constância na via penitente e salvadora[46] que ireis iniciar” (GOB, 2108, p. 266) ou, ainda: “se alguma vez duvidares da natureza imortal da tua Alma e do teu alto destino, a Iniciação não terá frutos para ti […] (op. cit., p. 246). O verdadeiro templo, conforme já mencionado, é o interno, individual, o templo que abriga a Loja é o espaço institucional no qual o Irmão, orientado e em colaboração com os seus pares, após a representação de Hiram (III Grau), quando simbolicamente “experimenta” a passagem da matéria ao espírito em meio a construção do I Templo[47], no IV Grau ele trabalha com a planta do Templo reedificado e sob a orientação de Zorobabel, com quem aprende e deve apreender novas lições no sentido à reintegração. E por fim, cabe observar que no contexto Retificado, tal como para Platão, o mundo habitualmente designado como real é, de fato, o mundo das sombras, das réplicas imperfeitas, enquanto que o mundo real (o da perfeição) é o mundo das ideias; portanto, inverte-se o sentido: tanto o templo quanto o Templo são símbolos (imperfeitos) do mundo real, porém espaços (físicos-simbólicos) nos quais os Iniciados trabalham no sentido a eliminar as imperfeições (imanentes[48]) com vistas à perfeição ideal (no plano transcendente, na Jerusalém Celeste). Resulta, dessa inversão, que durante a trajetória (da matéria ao espírito), tanto o templo quanto o Templo são meios, pois ao final dos tempos, quando tudo estiver reintegrado (já na Jerusalém Celeste, também referida como Nova Jerusalém), não haverá a necessidade de um templo e tampouco de um Templo para distinguir o sagrado do profano, pois o primeiro (o sagrado, a Luz) já terá então compreendido por completo o segundo (o profano, as Trevas);
- no contexto do RM, a Loja, reunida no templo (room, oficina), é antes e acima de tudo um Centro de União de homens que, consoante aos ideais da GLLW têm por objetivo contribuir no sentido à evolução moral da humanidade, independentemente das suas religiões, ideologias ou simpatias políticas, o que os mantêm afastados de quaisquer fontes dogmáticas. Assim, pois, se define o mito do Templo no contexto do RM, do Primeiro ao Sétimo Grau, os 3 (três) primeiros simbólicos e os demais ao abrigo das Ordens de Sabedoria do Rito, sem nenhuma especulação misteriosa: as lendas, os personagens, os utensílios e tudo o mais que refere ao I e ao II Templo, pois o III Templo não é mencionado[49], são interpretados racionalmente, não ultrapassam a associação (representação) simbólica com os valores morais necessários e suficientes à vida em socidade, e tudo exclusivamente acordado entre as partes (a exemplo das leis civis, debatidas e votadas nos parlamentos e por representantes populares[50], sem interveniência sobrenatural;
- conforme prenunciado, o fato de o local de reunião dos maçons, independentemente do Rito, ser considerado um templo já carrega na própria expressão uma carga de significados (reais ou imaginários) que, por exemplo, enquanto afasta do seu interior determinadas atitudes e comportamentos vistos com naturalidade nos espaços profanos[39] (da vestimenta à etiqueta), cria expectativas como a observação do silêncio e a atitude reverencial[40], sobretudo após o anúncio de que a “Loja está aberta” para o início dos trabalhos. E sob a orientação das “Luzes” – expressão, per se também carregada de significados em todo o corpus maçônico[41] – têm início, então, os trabalhos (simbólicos, analogados ao desbaste e à lapidação das pedras brutas, seguido do polimento e do encaixe orientado ao projeto) realizados com o auxílio do ferramental empregado pelos Maçons Operativos: o nível, o prumo, o esquadro, a régua, a trolha, o compasso[42], etc., e, não menos importante, o projeto, o plano de trabalho – todos fisicamente presentes no templo ou, como é o caso no RER, representados no Tapete da Loja. Sabe-se que tudo isso é tão somente uma representação simbólica, devendo os personagens, as ferramentas e mesmo a obra serem transpostos para o cotidiano das sociedades contemporâneas. Por exemplo, quais os instrumentos reais que, na atualidade, seja para a (re) construção (física, psíquica e intelectual) dos homens enquanto indivíduos ou sociedade desempenham as funcionalidades análogas às das ferramentas utilizadas pelos pedreiros operativos, isto é: o que é necessário para erguer a obra, desenvolvê-la com retidão, equilíbrio, solidez, etc.? A educação familiar, escolar, religiosa, as redes de apoio institucionalizadas e/ou outras? No plano social seriam as leis (lato sensu), as políticas públicas, os projetos sociais, os sistemas educacionais, as instituições em geral, a ação coordenada entre o público e o privado, entre os Poderes, entre os níveis de governo ou o quê mais? Assim, sem abandonar os primeiros símbolos e alegorias (associação: objeto-imagem-ideia-significado-metáfora-mensagem) é possível destes, por especulação, passar a outros símbolos e camadas de análise mais aderentes à contemporaneidade;
- o sentido tropológico conecta a teoria à prática, é o que traz objetividade e materialidade às mensagens (na forma de parábolas, metáforas, alegorias, etc.) extraídas das Escrituras ou de outras fontes da cultura greco-romana (Andrade, 2024), como é o caso dos mitos e fábulas. A condição de animal social e político recomenda que todos, previamente, tenham estabelecido princípios e valores norteadores das condutas no cotidiano (na vida familiar, junto aos amigos, no ambiente profissional, em relação “ao próximo” em geral, etc.), o que é aceito e valorizado, mas também os limites do inaceitável, o que também significa a elaboração de critérios para fazer frente à miríade de escolhas, algumas efetivas decisões, que serão tomadas ao longo da vida. Essas têm se revelado conditio sine que non à vida em sociedade, o contrário, o improviso irrefletido não tem levado a bons resultados, individuais ou sociais;
- para o Maçom Retificado, conforme visto, não há dúvidas: as Escrituras emolduram o Quadro de Referência, notadamente as contidas no Novo Testamento. Embora intimista, na sua trajetória e desenvolvimento o Iniciado preocupa-se também, e sobremodo, com tudo o que o circunscreve, como não deixa dúvidas a citação: “O Universo é a pátria do maçom, e nada do que diz respeito ao Homem lhe é estranho” (GOB, op. cit., p. 248); alteridade, empatia, solidariedade e caridade são expressões-chave na Retificação, senão por outros motivos, porque o cristianismo é conhecido por ser a religião do amor, da compreensão, do perdão e da misericórdia. A destruição do I Templo, e também a do II, teriam ocorrido em razão dos reiterados desvios de conduta (das Tribos) frente às leis guardadas na Arca da Aliança abrigada no mais sagrado dos espaços do Templo, Santo dos Santos. Portanto, para evitar (novamente) o castigo, é nas Escrituras que devem ser buscadas as balizas de orientação, o que deve ou não ser permitido e estimulado ou proibido e condenado nas relações sociais. Assim, se o templo que abriga a Loja inspira e orienta a reconstrução (interna) analogada à do II Templo, o mundo profano é o templo ampliado no qual os Irmãos têm a oportunidade, que em tese para os Maçons Retificados é um dever, de vivenciar, colocar em prática os ensinamentos cristãos – ao trabalho interno se soma o externo. E é no mundo profano e em meio às vivências que eles não apenas exercitam e testam os limites dos princípios e valores, mas também, onde colhem ensinamentos e orientações para os ajustes e as correções necessárias. E é em razão da facilidade, senão a propensão da natureza humana em ceder às paixões e aos vícios de toda a natureza, a exemplo do cometido pelos construtores do I e também do II Templo, que os Retificados, em Loja e no Grau de MESA trabalham com a trolha em uma mão a espada na outra – a primeira como ferramenta-símbolo do pedreiro-construtor-trabalhador, a segunda, da força, da atenção e da defesa diuturna contra os inimigos (cometimento de injustiça, destempero, fraqueza, egoísmo, descumprimento às leis, etc.);
- em sendo a sociedade ocidental legatária do “judaísmo-cristianismo”, não surpreende que o conjunto de princípios e valores a que lança mão o Iniciado Moderno seja, senão idêntico, congruente aos encontrados em outros Ritos, pelo que se equipara ao RER, e também em meio aos não-Iniciados. E não poderia mesmo ser muito diferente, pois esses, entre outras fontes, buscam orientação e devem respeito à lei civil dos Estados que, ainda que laicos, em larga medida tiveram escritos os seus marcos regulatórios sob a inspiração das Escrituras. Quanto ao escopo de preocupação, não há grande diferença, por exemplo, entre os textos sagrados aos quais recorre o Maçom Retificado e a declaração do poeta que, por sua vez, poderia lastrear o Maçom Moderno: “Nenhum homem é uma ilha, cada homem é uma partícula do continente, uma parte da Terra. Se um torrão é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse o solar de teus amigos ou o teu próprio. A morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram, eles dobram por ti”[51], ou ainda o universalismo expresso por Demócrito[52]: “Toda terra está aberta ao sábio, porque a pátria de uma alma virtuosa é o Universo inteiro” (apud Rovelli, 2017, p. 41). Assim, sem prejuízo e abandono das primeiras alegorias (associações de objetos-imagens-ideias-significado-metáforas-mensagens) é possível àquelas associar novas, algumas nem tanto assim, o que de pronto revela que Maçonaria, em essência, se ocupa do Homem ou, nas palavras de De Maistre (2024): “Antes de arriscar algumas reflexões sobre este assunto, estabeleçamos primeiro duas proposições preliminares que não serão contestadas por nenhum maçom minimamente instruído 10: os Irmãos mais sábios de nosso Regime pensam que há fortes razões para acreditar que a verdadeira Maçonaria não é senão a Ciência do homem por excelência, ou seja, o conhecimento de sua origem e de seu destino. Alguns acrescentam que essa Ciência não difere essencialmente da antiga iniciação grega ou egípcia”;
- tais similaridades suscitam, então, um questionamento, mas cuja resposta, na ausência de evidências objetivas[53], não passa de especulação: sob a perspectiva tropológica, dado que é esta enquanto baliza de comportamento que os fazem eventualmente (re)conhecidos no mundo profano, o que difere os Iniciados Retificados dos Modernos? Por exemplo, em tese, a postura deísta dos Modernos não oferece limites que ao teísmo dos Retificados de pronto são levantados, como é o caso, por exemplo, da inaceitabilidade da pena de morte e também ao abortamento, independentemente das circunstâncias. Do mesmo modo, é de se esperar diferenças de posicionamento, por exemplo, frente à chamada agenda woke. O milenarismo, tão próprio aos Retificados, pode estar na raiz das atitudes e comportamentos menos imediatistas, bem como, quando frente aos acontecimentos inexplicáveis, postura seja mais compreensiva e alargada, o que passa pela aceitação e mesmo resignação frente aos desígnios da divindade incompreensíveis à razão. A essas, é provável que outras questões se somem para revelar diferenças axiológicas que eventualmente poderiam (quiçá) reverberar no comportamento cotidiano; seria o caso, por exemplo, da epoché, isto é: a suspensão de juízo à falta de elementos de convicção, o quê, em princípio, acometeria mais o Moderno do que o Retificado, seja em respeito, acima de tudo, às liberdades individuais, inclusive a de dar fim à própria vida – morte assistida e eutanásia –, ou pela ausência da crença em verdades pré-estabelecidas por uma entidade, no caso, a de que a vida pertence a Deus. Em síntese especulativa, enquanto que para os Modernos as relações sociais seriam predominantemente motivadas e justificadas a partir de entendimentos e resoluções debatidas, atualizadas e aprovadas nos parlamentos, os Retificados seriam dirigidos e poderiam mesmo ficar reféns dos problemas de consciência em razão dos conflitos morais emergentes a partir dos dilemas e contradições entre as contingências do cotidiano versus a palavra revelada e imutável. A propósito, senão desde antes, já em Platão[54] (2000) pode ser encontrado que os sistemas de crenças atuam como filtros adicionais para a contenção dos excessos, sem esquecer ainda as lições de Aristóteles[55] (2006), para quem a virtude está no meio, e não nos extremos. Concluindo, Epicteto (apud De Maistre, op. cit.) declara: “Todos esses Mistérios foram estabelecidos pelos antigos para regular a vida dos homens e afastar a desordem”;
- finalmente, o nível anagógico[56] é o último dos sentidos de interpretação no sistema de classificação utilizado neste ensaio. Para que se tenha mais claro o entendimento do nível anagógico, tome-se o seu paralelo, o sod, esclarecido por Bension (2006, p. 323-24): “Sod (em hebraico, secreto) é a interpretação mística ou anagógica (do grego, anagoge: “ação de lançar para cima”, “ação de elevar-se espiritualmente”, “elevação da alma em direção às coisas divinas”), encontrada nos textos da Cabalá […] Esses quatro níveis de interpretação das Escrituras Sagradas são, segundo a tradição cabalista, os quatro muros que circulam o Jardim, o “Pomar” (Pardês), o Paraíso”;
- assim, para o Maçom Retificado essa leitura não beira ao extraordinário, pois sendo a essência mesma do Regime, a crença na primazia do espírito e na imortalidade da alma, desde a Primeira Recepção modelam a sua conduta no sentido à reintegração à Unidade, sobretudo porque este plano (o terreno, o da matéria, o ciclo de vida) é visto como temporário, a primeira etapa à espera do advento. Conduta essa que, como visto, no seu aspecto externo é orientada pela caridade e pelas virtudes cardeais (justiça, temperança, prudência e força) e, internamente, pela fé e pela esperança. Atingir o objetivo (reintegração) requer um nível de compreensão e aceitação da “realidade transcendente” que embora imaginado por muitos, somente a poucos é dado atingir, e ademais é algo absolutamente pessoal, íntimo (uma “reedificação mística”) e por isto incapaz de ser comunicado posto que corresponde a uma epifania, um arrebatamento a exemplo do experimentado por São João da Cruz[57], Sto. Agostinho[58] (2003) e Sta. Teresa d`Ávila[59] (2014), a ponto de estes últimos, com frequência e humildade, se desculparem pela insuficiência da linguagem para exprimir as suas visões (do mundo “real-espiritual”) e entendimentos. São tantos os desafios (que gozam do concurso dos espíritos caídos) que se interpõem no caminho, e tamanho é o empreendimento no sentido à compreensão da totalidade, da Unidade, que o Iniciado no caminho à Retificação não hesita em solicitar a intersecção dos espíritos de luz (anjos e homens santos), nada mais natural para um cristão declarado teísta;
- para o maçom Moderno, racional, lógico e empirista, o nível anagógico escapa à sua percepção, sendo-lhe, pois, um completo estranhamento.
4 BREVES CONSIDERAÇÕES & DESDOBRAMENTOS
Para o observador externo e que desconhece a matéria, a Maçonaria é um corpus único, homogêneo – ledo engano -; enquanto que para público interno, tanto o RER quanto o RM, à semelhança de tantas outras, constituem estruturas organizacionais, doutrinárias e ritualísticas – corpo e alma – que conferem operacionalidade e funcionalidade à Ordem. E salvo melhor juízo, senão para o público externo, para o interno, a reflexão sobre as diferenças entre os Ritos, as suas causas assim como as consequências, poderiam iluminar, entre outros, também os caminhos e as estratégias de gestão, das Lojas e das Potências. Caso contrário, isto é, se o assunto for de menor importância, é possível então conjecturar sobre a existência de múltiplas redundâncias ou até mesmo que um ou outro Rito seja desnecessário, o que parece ferir o bom senso. O MGA&IS, a partir do olhar de McGrath, não só facilita como ao tempo em que organiza esse empreendimento, também ressalta as semelhanças, sem as quais, a rigor, senão por outros interesses, não poderiam os Ritos analisados (e outros) estar circunscritos à mesma Ordem.
A Maçonaria, conforme já afirmado (e o atestam a maioria dos estudos), não se confunde com a Religião em qualquer das suas expressões, ainda que as de origem abraâmica sejam fontes valiosas à atividade especulativa que desenvolve. Daí que embora a Ordem não ofereça a salvação das almas, o RER, ao implicitamente analogá-la à reintegração oferece ao Maçom Retificado um extraordinário paralelismo: ao seguir a cartilha (o catecismo, a Lei) no plano sensível, para além da sua contribuição social ele estará, simultaneamente, operando no sentido à salvação individual no plano suprassensível. Textualmente, é o que afirma o Ritual: “Tu cumprirás o teu sublime destino, tu recuperarás esta semelhança divina que foi compartilhada pelo Homem no seu estado de inocência, que é o objetivo do Cristianismo, e da qual a Iniciação maçônica faz o seu objetivo principal. Tu voltarás a ser a criatura querida do Céu” (GOB, op. cit., p. 258). Já o Moderno, alheio ao plano suprassensível, ao seguir a cartilha (o catecismo, a lei), tal qual o primeiro estará contribuindo para uma sociedade mais justa, fraterna, solidária, entre outros aspectos que lhe dão vida e vigor. Todavia, enquanto o primeiro faz a aposta de Pascal, o segundo, por opção consciente, não; e isto, é claro repercute nas respectivas atitudes internas (no Templo/templo) e externas à Loja.
De outra sorte e à parte os aspectos negativos trazidos pela polarização em detrimento ao caminho do meio, a primeira, porque mais clara, se oferece com mais propriedade à didática e a pedagogia. Do mesmo modo, a dicotomia “homens de fé” versus “homens de ciência” ou crenças vs razão, se é útil em determinados aspectos, não encerra toda a verdade, por exemplo, vide Pinheiro (2021) e a vasta bibliografia que aponta.
Invenções, inovações[60], novas tecnologias, prêmios de reconhecimento escolar, científico (vários Prêmios Nobel) e tecnológico, em praticamente todo e qualquer indicador de excelência intelectual desponta o povo judeu, reconhecidamente, um dos povos mais dedicados à fé e às tradições. Atribuir esses resultados à sorte ou apenas às iniciativas pós-instituição do Estado de Israel seria ignorar a História de um povo forjado a partir da reflexão, do questionamento, dos desafios intelectuais e do debate cuja origem, resumidamente, pode ser encontrada, entre outros, em Harari (2024, p. 101-2):
Os rabinos se tornaram a elite tecnocrática judaica, desenvolvendo suas habilidades intelectuais e retóricas ao longo de anos de debates filosóficos […] um novo livro sagrado foi canonizado no século III EC: a Mishná […] Mas, tão logo a Mishná foi canonizada e copiada, os judeus começaram a discutir sobre a sua correta interpretação. E quando se alcançou um consenso sobre a interpretação da Mishná e ela foi canonizada entre os séculos V e VI como um terceiro livro sagrado – o Talmude-, os judeus começaram a divergir sobre a interpretação do Talmude […] “Confie no livro infalível” se transformou em “confie nos seres humanos que interpretam o livro”. O judaísmo foi muito mais moldado pelo Talmude do que pela Bíblia, e as discussões rabínicas sobre a interpretação do Talmude se tornaram ainda mais importantes do que o próprio livro.
S.M.J., parece claro que para a elevação no plano secular, independentemente da contribuição que possa trazer para a elevação espiritual, e reitera-se, no contexto da Maçonaria, o que importa não é o livro (ou o Livro) e o seus conteúdos em si mesmos[61], mas o que a partir dele pode ser construído pelo uso da razão e da reflexão crítica.
E por ser o cristianismo legatário do judaísmo, e a Maçonaria brasileira essencialmente cristã, sobretudo a chamada Retificada, é imprescindível ver, então, as conexões entre a razão e a fé no contexto da cristandade, o que pode ser feito a partir do olhar de Stark (2021):
[…] as grandes conquistas científicas dos séculos XVII e XVIII não foram feitas apesar da Igreja; ao contrário, foram a culminação de um progresso científico normal, que aconteceu ao longo dos séculos nas universidades, fundadas, controladas e dotadas de pessoal pela Igreja. Com efeito, as personagens principais na “Revolução Científica” eram excepcionalmente devotas, e cerca de metade deles eram católicos, muitos deles clérigos […] A chave fundamental para a ascensão da civilização ocidental foi a dedicação de muitas das mentes mais brilhantes à busca do conhecimento. Não da iluminação. Não da ilustração. Não da sabedoria. Do conhecimento! E a base para essa fidelidade ao conhecimento foi a fidelidade cristã à teologia […] (p. 152);
Quanto à teologia, ela tem pouco em comum com a maior parte das formas de pensamento religioso, uma vez que é uma disciplina sofisticada e altamente racional[62], que tem suas raízes no judaísmo e na filosofia grega, e que ademais foi plenamente desenvolvida unicamente no cristianismo (p. 152-3);
Mas o vínculo mais convincente e influente entre fé e razão tenha sido proclamado por Clemente durante o século III: “Não penseis que dizemos que essas coisas [as doutrinas cristãs] devam ser recebidas somente pela fé, mas que também devem ser afirmadas pela razão. Porque, de fato, não é seguro encomendar essas coisas à fé nua, sem razão, porque certamente a verdade não pode estar sem a razão. E, portanto, aquele que houver recebido essas coisas fortificadas pela razão jamais poderá perdê-las; ao passo que aquele que as recebe sem provas, pelo assentimento a uma simples declaração, nem pode mantê-las com segurança, nem está certo de que são verdadeiras; porque aquele que crê com facilidade, também cede com facilidade. Mas aquele que procurou razões para as coisas em que acreditou e recebeu, como ligadas pelas cadeias da própria razão, jamais poderá ser desviado ou separado dessas coisas nas quais acredita. E, portanto, quanto mais alguém é ansioso por exigir uma razão, tanto mais firme estará no preservar sua fé.” (p. 154).
Ora, também aqui, entre os cristãos, parece claro que nada, nem mesmo a Palavra Revelada, deve (ou deveria) escapar à análise crítica da razão, conduta não só admitida como estimulada desde a Antiguidade e que, se efetivamente adotada, exige o desenvolvimento e o exercício da argumentação, o recurso ao método e o uso da retórica combinadas a outras táticas e estratégias ordenadas ao aprimoramento da mente, da cognição. E por oportuno, que não se esqueça que o próprio Vaticano estimula a leitura da Bíblia ancorada na ciência, mais especificamente, a partir do uso do método histórico-crítico[63].
Nesses termos, a Maçonaria cristã, quando por omissão – falta de conhecimento das lideranças – ou deliberadamente se esquiva das iniciativas no sentido a favorecer e a estimular as reflexões críticas, mais se afasta do que se mantém fiel às suas origens, bem como falha naquela que deveria ser a sua missão precípua: contribuir para o aperfeiçoamento integral do ser humano. Afinal, qual seria o propósito da razão[64], independentemente de quem a tenha conferido ao homem, senão a expectativa de que fosse exercida com plenitude, no limite das suas possibilidades, inclusive para perscrutar a própria origem, destino e razão de ser daquele que a abriga? Analogamente, a relutância e mesmo a dificuldade de a Maçonaria Moderna aceitar determinados fenômenos, afastando-os do interesse de estudo e pesquisa, atuam como fatores restritivos ao desenvolvimento das potencialidades humanas. Por exemplo, e mais uma vez reitera-se: não se trata de afirmar (concluir) se existe ou não vida pós-morte ou, ainda antes, as experiências de quase-morte (EQM), mas de a partir deste tema (e poderia ser outro), desafiar e exercitar a argumentação, a cognição. A propósito, as EQM já são objetos de estudo em grandes centros universitários (Diamond, 2019; Amâncio, 2021).
Curiosa e paradoxalmente, o maior expoente da análise e do pensamento crítico, bem como da construção argumentativa, encontra-se no seio da cristandade: Sto. Tomás de Aquino[65], cuja obra monumental tem sido sistematicamente esquecida, completamente ignorada, assim como a de outros tantos escolásticos. Não obstante, a Maçonaria em geral, o que por certo abarca o RER e o RM, não só têm incorporadas as Artes Liberais (o que, lembre-se, inclui a Gramática e a Retórica) nas suas doutrinas, metodologias e Instruções, como frequentemente a elas refere com algum envaidecimento. Seria de fato motivo de orgulho se, na prática, o oposto não ocorresse, o que pode ser constatado sobretudo no cotidiano das Lojas, nas palestras em formato de videoconferência (lives – 99% expositivas) e também, mas aí já há exceções[66], na produção intelectual maçônica, aonde predominam as narrativas históricas, acríticas e auto laudatórias, passando à margem e à longa distância, por exemplo, da quaestio disputata, a ferramenta escolástica por excelência, em meio a outras (a exemplo da dialética, do silogismo), todas ordenadas ao desenvolvimento integral do ser humano, o que passa, naturalmente, pelo pensamento crítico e pelo raciocínio lógico – maior detalhamento pode ser visto em Pinheiro (2021a). Por fim, para não referir e sobrevalorizar apenas os mais antigos, os Modernos, a exemplo de Pierre-Simon de Laplace[67], assim como os mais contemporâneos, como A. Einstein[68] e E. Schrödinger[69], recorreram a uma ferramenta extraordinária, à disposição de todos e aplicável aos mais variados campos do conhecimento e problemas do cotidiano: os experimentos mentais.
Por oportuno, cabe observar que embora não tenha sido objeto de reflexões neste ensaio, a rigor o próprio conjunto constituído pelo que foi denominado de as “questões fundamentais”, e que deu azo aos 2 (dois) grandes posicionamentos (homens de ciência vs homens de fé) senão representativos associados aos Ritos apreciados, não escapa à apreciação crítica, pois já carrega em si mesmo a cosmovisão e a epistemologia ocidentais que desde a Antiguidade têm confrontado 2 (dois) grupos: o “os naturalistas (fisicalistas, materialistas)” vs “os finalistas” ou, como muitas vezes apresentado: os filósofos pré-socráticos (e os seus seguidores, os filósofos da natureza, futuros homens de ciência) vs Platão, Aristóteles e outros que trouxeram a metafísica[70] para o centro dos debates. Todavia, para muitos são questões que não se colocam, são destituídas de sentido posto que o mundo é eterno, sem início, sem fim e a vida não reserva outro sentido para além do gozo do dia a dia, sendo, tudo o mais, tão somente uma criação do próprio homem para dar conta das suas inquietações frente às suas limitações (frente à natureza, ao mal, etc.) e à finitude.
Assim, o que importa no contexto da Maçonaria Especulativa e independentemente do Rito, é a reflexão crítica e o debate que estimulam o intelecto, as funções cognitivas, aprimoram e desenvolvem todos os aspectos da natureza humana – o físico, o psíquico e o social – indispensáveis ao enfrentamento das questões do cotidiano, à vida comunitária e feliz. Dada a ausência de respostas definitivas e incontestáveis às questões fundamentais, sejam proporcionadas pelos homens de ciência ou pelos homens de fé, e respeitadas as fronteiras institucionais, à Maçonaria enquanto Centro de União caberia alargar as fronteiras do pensamento, e não estreitar ao reafirmar acriticamente convicções legadas pelas tradições. Como bem chamam a atenção Sowell (2011) e Weaver (2012), as ideias têm consequências, e os seus promotores, responsabilidades.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os objetivos deste texto foram: primeiro, demonstrar que o uso de modelos conceituais, a exemplo do MGA&IS pode ser útil na organização dos trabalhos interna corporis; e, em segundo, ao fazê-lo a partir do estudo simultâneo de 2 (dois) Ritos, o RER e o RM, trazer à evidência as diferenças, mas também as similaridades entre os Ritos. O mote utilizado foi o templo (ou o Templo), por ser um dos elementos centrais e comum senão a todos, à maioria dos Ritos.
Infelizmente, dado que a Maçonaria é avessa a determinadas pesquisas, a exemplo da avaliação externa do seu papel na sociedade, mas também do impacto que lhe poderia ser atribuída como causa em cada Iniciado, algumas questões não puderam ser apreciadas senão a partir de conjecturas. Portanto, o ensaio, como toda obra especulativa, encontra-se aberto ao livre debate, ao questionamento fundamentado; neste sentido é um convite à comunidade de estudos, Iniciados ou não.
O trabalho, em razão das questões instigantes que trouxe à tona, possibilitou levantar novas questões que, entretanto, ficam à espera de estudos e especulações complementares. É o caso, por exemplo, de saber se ao chegar à Ordem o candidato possui ou não, e em caso afirmativo, com que grau de flexibilidade, uma cosmovisão metafísica e como essa se articula com os seus valores éticos e morais. A escolha do Rito foi consciente no sentido de que ele tinha plena ciência das semelhanças e diferenças entre a sua cosmovisão e as subjacentes aos tantos Ritos ofertados pelas Potências? E se todos os esclarecimentos prévios ficaram sob a responsabilidade de quem o indicou (o padrinho), é possível eliminar a hipótese de que, por erro deste, o primeiro não tenha se equivocado?
A resposta a essas, assim a tantas outras questões que este breve ensaio suscitou, poderia levar a Maçonaria a rever os seus processos de indicação, capacitação e desenvolvimento dos seus Quadros. Quem sabe se ao invés de celebrar quantitativos (aumento crescente e indefinido do efetivo e de Lojas) o foco fosse destinado à qualificação de poucos, a Maçonaria poderia resgatar não só as glórias do passado como redefinir o seu papel na sociedade contemporânea e em transformação? “Agora estamos oscilando entre o medíocre ou o ruim […]” quando, de acordo com De Maistre (op. cit.) deveríamos “escolher entre o bom e o excelente”; a causa, esclarece, é o crescimento sem limite e sem critérios.
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WEAVER, Richard M. As Ideias têm Consequências. São Paulo: É Realizações, 2012.
Notas
[1] O primeiro autor é Mestre Maçom; o segundo, MI do Quadro da ARLS Livre Pensamento, 176, GOSC, Oriente de Guaramirim, SC. Os autores não expressam o ponto de vista das Lojas, Obediências ou Potências das quais participam, tão somente exercem a sua liberdade de pensamento e expressão, daí porque muitas vezes comunicam na primeira pessoa. E-mail: respectivamente ivan.pinheiro@ufrgs.br e marcopiva58@gmail.com. Porto Alegre-RS, 21.11.24.
[2] Aqui, casualmente, nos dois sentidos: enquanto significado e como sentido de uma direção (de baixo para cima, de literal à anagógico, do material e tangível ao espiritual e inefável).
[3] Anagogia (ἀναγωγή) é uma palavra derivada do grego que sugere uma “subida” ou “ascensão”, no sentido de êxtase místico, ou arrebatamento da alma na contemplação das coisas divinas. O anagógico é um método de interpretação mística ou espiritual de símbolos, declarações ou eventos, especialmente exegese escritural, que detecta alusões à vida após a morte. Certos teólogos medievais descrevem quatro métodos de interpretação das escrituras: literal/histórico, tropológico, alegórico e anagógico. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Anagogia.
[4] Destaque no original.
[5] Conforme esclarece Cegalla (2020, p. 614): “Metáfora é o desvio da significação própria [literal] de uma palavra, nascido de uma comparação mental ou característica comum entre dois seres ou fatos”, ao que se pode acrescentar: “A alegoria é uma figura de linguagem de uso retórico que expande o significado do termo, transmitindo um ou mais sentidos além do literal. Uma alegoria não precisa necessariamente ser expressa no texto escrito, estando presente em outras formas de manifestação artística, como a pintura, o desenho, a escultura, etc. Embora funcione de modo semelhante a outras figuras retóricas, a alegoria é bem mais abrangente, envolvendo a metáfora, a sátira, o símbolo, a fábula, o apólogo, a prosopopeia, o oximoro e a ironia”. Fonte: https://www.infoescola.com/portugues/alegoria/.
[6] MM, pesquisador, autor, tradutor e editor do blog “Primeiro Discípulo – notas de um maçom retificado”, disponível em: https://maconariacrista.wixsite.com/ritoretificado/rito-escoces-retificado/categories/geral.
[7] MI, pesquisador, escritor, tradutor e editor do blog “Bibliot3ca Fernando Pessoa”, disponível em: https://bibliot3ca.com/.
[8] Não raro a datação envolve controvérsias; considerando que o RER possui 3 (três) raízes, uma Escocesa, uma Alemã e também uma Francesa, a depender de qual delas for considerada a referência, a origem poderá estar localizada nos séculos anteriores ou mesmo no século XIX, quando os Rituais foram, definitivamente, concluídos.
[9] Sugere-se a leitura do texto referido, ou mesmo qualquer outro sobre o tema, para evitar a armadilha da simplificação reducionista que a expressão síntese apresentada pode induzir.
[10] Em síntese, um conjunto de atitudes e comportamentos como produtos das primeiras respostas dos Antigos às chamadas “questões fundamentais” (de onde viemos, para aonde vamos e qual o sentido da vida) que, pela via das Tradições, chegaram à contemporaneidade. Decorrem dessas o surgimento de outras tantas que historicamente têm ocupado a filosofia, a teologia e, mais modernamente, as neurociências: a questão da dualidade mente-corpo, da predestinação-indeterminismo que, por sua vez, se desdobram em reflexões sobre o ser, o nada, o tempo, o livre arbítrio, os universais versus singulares, o nominalismo, o realismo, o idealismo, a questão da imanência versus transcendência, o problema da teodiceia e, é claro, sobre Deus (existência, natureza, manifestação, etc.).
[11] Fortificações, pontes, estradas, silos de armazenagem, etc., muito embora a mitologia maçônica ressalte o seu papel enquanto construtores de igrejas, mosteiros, abadias e catedrais que ocupavam parte expressiva da mão de obra e se estendiam por até mais de século.
[12] Senão por outros motivos, porque a Iniciação, o ingresso na Maçonaria se dá já na idade adulta.
[13] A datação, conforme a fonte-autoria, varia muito, retrocedendo ou avançando em até 50 anos ou mais. Cabe observar que a maioria dos textos bíblicos não foram escritos por testemunhas oculares, sendo antes narrativas criadas séculos após os acontecimentos e em meios às quais se combinam uma longa tradição oral com fatos (eventos, personagens, etc.) fictícios a serviço de uma mitologia heroica, a de um povo escolhido.
[14] Enquanto tal, não reconhecido especialmente pelos judeus, que veem a remodelação do Templo antes como uma profanação do que um embelezamento promovido pelos romanos.
[15] 1807 – 1881. Porque adotado pela Grande Loja Unida da Inglaterra ganhou difusão por entre as demais Potências.
[16] A propósito, no seu último e inusitado artigo, o XXV, Albert G. Mackey estabelece a inalterabilidade de todos os anteriores, algo estranho à realidade dos tempos, daí que o seu entendimento também só pode ser apreendido no contexto do simbolismo, enquanto mensagem oculta na própria norma, como, por exemplo, da inevitabilidade das eternidades imutáveis.
[17] Que, na apropriação veterotestamentária, promovida pela Maçonaria, é considerado como um dos co-construtores do I Templo.
[18] Que no Brasil, inclusive, é dotada de personalidade jurídica.
[19] Denominação que, no RER, é dada às Iniciações.
[20] Lato sensu, eis que as palavras, assim como os números através dos quais comunicações são, em si mesmos, símbolos.
[21] Por oportuno, não custa lembrar que a Inglaterra foi o berço da Modernidade. Mas os eventos que se seguem deixarão claro que se o Pensamento Moderno se tornou hegemônico, não foi sem grande resistência, a ponto de ainda hoje coabitar com ideias opostas.
[22] Em que pese ser antecedente à GLLW, esta não se equivale a de York no que tange, por exemplo, à estrutura organizacional e às finalidades.
[23] Se aberto ou fechado, depende do Rito.
[24] Não obstante, em respeito às exigências para a condição de regularidade e reconhecimento entre as Potências, a presença de um Livro da Lei, nas reuniões da oficina, é obrigatória; o que se modifica, entre os Ritos, é o simbolismo atribuído que, no caso do RER, vai ainda além. Na terceira seção da Instrução ao Aprendiz Retificado se lê: “Podeis dar-me uma explicação dos símbolos misteriosos […] de que se servem os Franco-maçons? […] Por que não incluís a Bíblia? [Porque] A Bíblia não é um símbolo, mas ela ensina-nos a Lei que foi conservada no Santuário do Templo e sobre a qual todo o Franco-Maçom deve meditar” (GOB, op. cit., p. 236-7).
[25] Também referido como Convento das Gálias.
[26] Diferentemente de outros Ritos, a fase simbólica na Maçonaria Retificada está organizada em 4 (quatro) graus e, enquanto os 3 (três) primeiros (Aprendiz, Companheiro e Mestre) estão subordinados às Potências, o último (MESA) responde ao Priorado, responsável também pelos Graus de Cavalaria: o Escudeiro Noviço e o Cavaleiro Benfeitor da Cidade Santa.
[27] 1730 – 1824.
[28] Tese amplamente aceita, porém, conforme visto em Pinheiro (2024), não é livre de controvérsias, pois cresce a convicção, lastreada em pesquisas, de que a maçonaria já nasce especulativa enquanto parte da própria natureza humana.
[29] 1743 – 1803.
[30] Quando não escritos, foram supervisionados por JBW, daí porque, de regra, é reconhecido como o mentor intelectual do Regime.
[31] O teísta distingue-se do deísta (aceito por vários Ritos) por crer em um deus onisciente, onipotente e onipresente que intervém na realidade, no cotidiano; ademais, ele é o sumo bem, dotado de amor, de bondade, de infinita misericórdia, entre outros atributos notadamente humanos, mas cujos desígnios nem sempre são dados a conhecer ex-ante. Tal concepção enfrenta grandes dificuldades quando, por exemplo, à frente do problema da teodiceia.
[32] Por exemplo, no que tange à ritualística.
[33] Adhuc Stat – “… uma coluna quebrada e truncada, mas firme em sua base …”. Fonte: https://gprbcbcs.org/publico/ha-uma-verdadeira-doutrina-no-rito-escoces-retificado/#:~:text=A%20doutrina%20do%20Rito%20Escoc%C3%AAs,%E2%80%A6%E2%80%9D%20%C3%A9%20um%20dos%20exemplos.
[34] Desde aqui, desse símbolo, inúmeras leituras interpretativas (e as respectivas lições morais derivadas) admitem possibilidade, como, por exemplo, (1) a de a coluna quebrada corresponder à natureza humana propensa às paixões e aos vícios, enquanto a base o eterno zelo do anjo bom companheiro; mas também (2) que sobre a base já estabelecida há uma obra a espera de ser feita; e, igualmente (3) que a obra quando concluída permitirá ascender (da terra) a um plano desconhecido; entre outras. Não há exatidão, o que importa é a reflexão.
[35] É importante frisar que esta fala deve ser apreciada na perspectiva maçônica, e não na de um autor religioso que escreve para religiosos, muito embora pesquisadores religiosos também afirmem o aspecto mítico-lendário dos textos ditos sagrados.
[36] A exemplo dos Pergaminhos de Qumran (também referidos como do Mar Morto), da Biblioteca de Nag Hammadi, das escavações em Nazaré, em Cafarnaum, em Dura-Europos e outros tantos sítios arqueológicos.
[37] Há inúmeros pesquisadores e estudos que analisam as dificuldades de a “Bíblia”, in totum ou mesmo partes, ser considerada como “um” livro histórico, entre outros, alinham os seguintes argumentos, vistos também como dificuldades, algumas insuperáveis: as perdas ocorridas na passagem da oralidade à escrita; a questão do anacronismo; das sucessivas traduções, dos idiomas originais aos contemporâneos; as interpolações acrescidas pelos copistas-comentadores, as glosas (de trechos, textos e livros inteiros) pelas mais diversas intenções; as motivações dos pseudo-autores, entre outros porque não se tem, aqui, propósito exaustivo. Em razão desse “processo histórico de elaboração”, resultaram textos com inúmeras contradições internas que levam o leitor ao estranhamento. Ao fim e ao cabo resta o questionamento: afinal, qual dentre as bíblias existentes deve ser considerada como referência, a portadora da “verdade”? Em não havendo uma e somente uma, a “verdade” não resiste a crítica do relativismo.
[38] Esta, por sua vez, um compósito de outras lendas, ainda mais antigas.
[39] O predicado talvez não seja o mais adequado, mas denota, por oposição, a condição sacra que circunscreve os templos em geral e, por extensão o templo maçônico.
[40] Nos espaços não maçônicos essa atitude pode ser reflexo do desconhecimento, do encantamento ou mesmo temor frente à potência (sobrenatural) que, em geral, é associada aos espaços sagrados. Desde a Antiguidade, castelos e palácios (sedes governamentais), assim como os templos (algumas majestosas edificações) têm sido identificados como símbolos, os 2 (dois) primeiros do poder secular, enquanto os últimos, do espiritual.
[41] Na interpretação analógica mais usual “luz” remete ao conhecimento, à sabedoria, à orientação, à clareza, ao discernimento, etc., de regra, “tudo de bom”, positivo, construtivo.
[42] De regra, associados a valores individuais ou sociais: equilíbrio, justiça, temperança, força, retidão, cooperação e outros.
[43] Respectivamente, o 19º e o 20º landmarks de Albert G. Mackey. Fonte: https://pael.mvu.com.br/Loja/5375/Midia/OS_ANTIGOS_LANDMARKS_DA_ORDEM_COMENTADOS(2).pdf.
[44] Ainda que o Maçom Retificado, pela via da Trindade e por ser um seguidor de Cristo (o Reparador), se considere na via da salvação e apto para enfrentar o juízo final, estas condições, se necessárias, são insuficientes. Ademais, revelaria arrogância e completo desconhecimento tanto da matéria quanto acerca da qualificação dos Mestres da Ordem enquanto condutores habilitados, ou melhor, desabilitados porque completamente destituídos dos saberes tradicionais e tampouco consagrados pela via da linhagem sucessiva – Tradição. Por fim, a questão da delimitação (Maçonaria x Religião) é tema que ainda demanda maior esclarecimento na maçonaria em geral e, sobretudo, dadas as suas especificidades, no RER em particular.
[45] Dado que as diretrizes são claras e públicas, ao delimitar o acesso, somente aos cristãos, a Ordem Retificada evita as discussões de natureza religiosa.
[46] Destaque conferido por estes autores.
[47] Guerra (2023, p. 25) declara: “Por outro lado, atingindo o clímax mítico, Hiram é mostrado como um sublime Mestre finalmente martirizado, que sobe aos heroicos altares do mitologema, no qual alguns autores quiseram ver a representação de alguns mitos universais, através da cerimônia de exaltação ao grau de Mestre Maçom, que se torna uma espécie de parusia: a morte e a reencarnação no mesmo ato do personagem hirâmico, que paradoxalmente revive uma e outra vez em cada exaltação ao grau de Mestre Maçom”.
[48] Pela via da Primeira Queda, o pecado de origem.
[49] A propósito, também não é mencionado no RER, pois não faz falta, e em nada contribuiria à narrativa mítica. A distinção entre o II e III se dá no âmbito da história-literatura; assim, quando referida a destruição do II Tempo, a rigor deveria ser à do III Templo, inclusive porque este é arquitetonicamente muito diferente do antecedente.
[50] J. Filardo opina que, na França, mais especificamente no GOdF, a maçonaria adquire uma característica de “religião civil” em que o Grande Arquiteto do Universo foi substituído pela República.
[51] John Donne: 1572 – 1631. Disponível em: https://www.pensador.com/autor/john_donne/.
[52] 460 – 370 a.C.
[53] A Maçonaria é absolutamente fechada às pesquisas!
[54] 428/427 – 348/347 a.C.
[55] 384 – 322 a.C.
[56] Que, conforme esclarecido, McGrath (op. cit.) refere como analógico.
[57] 1542 – 1591.
[58] 354 – 430.
[59] 1515 – 1582.
[60] Invenções ou soluções tecnológicas referendadas pelo mercado em razão do valor de utilidade que reúnem.
[61] Vide Nota de Rodapé número 37, aonde são apresentadas as dificuldades para escolher um livro e tê-lo como O Livro.
[62] Destaque no original.
[63] Disponível em: https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/pcb_documents/rc_con_cfaith_doc_19930415_interpretazione_po.html. Em complemento leia-se: https://www.ihu.unisinos.br/categorias/634780-como-a-igreja-orienta-interpretar-a-biblia-artigo-de-gilvander-moreira.
[64] Inteligência, cognição, consciência e termos afins, pois ora não importam as sutilezas.
[65] 1225 – 1274.
[66] É tão notável quanto merecedor de questionamento, por que a qualidade da produção intelectual maçônica, senão local, internacional e disponível inclusive gratuitamente (internet), não chega às Lojas.
[67] 1749 – 1827.
[68] 1879 – 1955.
[69] 1887 – 1961.
[70] Conforme o autor, ao longo da história esta expressão ganhou diferentes significados, sobre os quais, todavia, por ora não cabe entrar em detalhes.

