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Por que temos que nos contentar com as sobras?

Publicado em FREEMASON.PT

Por Rui Badaró M⸫ I⸫

olho, maçonaria

O não acesso às coisas, sentidos e a deficiência de compreensão da linguagem na Maçonaria.

Reiterar que a origem da hermenêutica está ligada a Hermes, o emblemático mensageiro dos deuses na mitologia grega, que anunciava aos mortais as palavras divinas, tornou-se uma narrativa cansativa e redundante, como bem alertou Lenio Streck (2023:17). Uma abordagem renovadora e benéfica para a elaboração de uma hermenêutica específica para a fraternidade maçónica poderia ser a consideração de que a verdadeira comunicação dos deuses jamais foi totalmente revelada; temos apenas a interpretação de Hermes sobre as declarações divinas.

O aspecto intrigante que surge é o seguinte: qual aprendizagem é possível extrair desse dom interpretativo de Hermes? Aprofundando a presente reflexão sobre a fraternidade maçónica, compreende-se que o nosso destino é inerentemente interpretativo. Efectivamente, a intermediação é uma constante; não há uma conexão direta com a essência das coisas, mas sim uma percepção mediada por interpretações e símbolos, o que confina o Maçom a um eterno ciclo de decifração e compreensão dos sinais e mensagens que são apresentados.

Assim como no antigo mito grego de Sísifo, que eternamente empurra a sua pedra montanha acima apenas para vê-la rolar para baixo repetidamente, o Maçom, na sua jornada diária, leva a sua carga até o cume, enfrentando o inevitável retorno ao ponto de partida no dia seguinte. Esta tarefa incessante simboliza a busca interminável por significado, destacando que a pedra jamais permanece no topo, pois não existe um significado final, absoluto e definitivo. A verdade é que nunca será encontrado um sentido completo que antecipe todas as respostas procuradas.

Portanto, o Maçom está destinado a interpretar continuamente, sem jamais possuir certeza absoluta. Esta constante busca por compreensão pode ser profundamente angustiante, mas é precisamente essa angústia que se torna o motor do entendimento maçónico. Hermes, na sua sabedoria mitológica, instruiu-nos sobre essa realidade, a qual é o cerne da hermenêutica: a arte e a ciência da interpretação. Se fosse possível compreender tudo diretamente, o Maçom seria uma divindade, tornando a figura de Hermes obsoleta. No entanto, a nossa realidade é marcada pela impossibilidade de acesso direto e completo às essências e significados, obrigando o Maçom a se conformar com os fragmentos que consegue desvendar.

O que resta, então, é aquilo que o Maçom consegue revelar. A palavra grega ‘Aletheia’, significando desvelamento, encapsula essa jornada de descoberta. Ao serem iniciados na fraternidade maçónica, os neófitos são apresentados a um mundo novo, repleto de conceitos e realidades anteriormente desconhecidos, mas que já possuem nomes e formas. Cabe ao Maçom, portanto, empenhar-se na tarefa de captar e interpretar esses significados. Heidegger, filósofo alemão, considerava que interpretar é, de certa forma, um ato de apropriação – uma maneira de fazer os nossos os significados dispersos pelo universo maçónico. Assim, a busca por compreensão na Maçonaria envolve um esforço constante do Maçom para desvendar e internalizar os sentidos que permeiam esse ambiente pelos mais diferentes vieses.

Os significados perseguidos pelo Maçom não se encontram nem na essência intrínseca das coisas nem no recesso da consciência ou mente individual. No âmbito da Maçonaria, observa-se que as palavras proferidas durante os rituais possuem uma natureza unívoca, ou seja, elas transmitem uma única interpretação específica, mas não capturam a plenitude da essência das coisas a que aludem. Assim, as palavras de um ritual maçónico são insuficientes; elas exigem uma compreensão mais profunda dos objetos e conceitos aos quais se referem. Desta forma, o Maçom deve reconhecer que o ritual maçónico difere do sistema de ensino maçónico (rito), indicando que o texto do ritual, por si só, não encapsula completamente o rito.

Entende-se, seguindo a analogia com o conceito de diferença ontológica proposto por Lenio Streck, que o verdadeiro significado de um ritual maçónico se manifesta apenas dentro do seu contexto específico. O texto do ritual adquire significado dentro do sistema de ensino maçónico (rito), e este sistema, por sua vez, é definido e enriquecido pelo texto do ritual. Assim, o Maçom não constrói o significado a partir do nada, mas deve engajar-se profundamente com o denominado mundo maçónico que permeia ao seu redor.

Ao Maçom cabe a ponderação sobre como se deve abordar corretamente o mundo maçónico, considerando a importância de nomear corretamente as coisas, evitando assim respostas equivocadas, arbitrárias ou ambíguas, e como executar corretamente as práticas dentro da fraternidade maçónica. Para o Maçom, o desafio é como manejar o conhecimento e as tradições maçónicas de forma que faça uma diferença significativa, realçando a necessidade de uma abordagem cuidadosa e consciente no trato com os ensinamentos e rituais maçónicos.

Como se pode libertar o Maçom da tentação de emitir julgamentos superficiais e opiniões pessoais sem antes imergir profundamente no conhecimento e nas práticas maçónicas? Esta questão leva a ponderar sobre a essência do fenómeno de especular impulsivamente. Não é viável permanecer na superficialidade das conjecturas sem entender a realidade do que acontece dentro de uma Loja Maçónica. É imperativo buscar a interpretação correta, a qual só se torna acessível ao examinar meticulosamente o contexto hermenêutico.

Ao reconstruir a narrativa institucional dos eventos e analisar cuidadosamente a linguagem utilizada, chega-se à compreensão verdadeira. O restante são apenas suposições, invenções, tentativas de preencher os vazios com palpites. Quando o Maçom se deixa levar por uma compreensão superficial da doutrina maçónica e adopta uma prática superficial, corre o risco de presumir o significado dos fenómenos maçónicos sem o devido conhecimento, baseando-se em noções preconcebidas que considera corretas. Isso pode levar a conclusões fundamentadas em conceitos genéricos, proferindo respostas que são formuladas antes mesmo da emergência de uma questão específica. Tal Maçom pode ocasionalmente acertar, semelhante a um relógio parado que indica a hora correta duas vezes ao dia, mas essencialmente, o entendimento real exige um reconhecimento dos nomes e conceitos associados às coisas.

A Maçonaria é intrinsecamente complexa e desafia simplificações; não se pode meramente memorizar uma série de informações esperando definir completamente o fenómeno maçónico. A antecipação de respostas sem as perguntas adequadas é inútil. O verdadeiro entendimento emerge da intersubjetividade, que revela a existência de premissas compartilhadas muitas vezes não percebidas pelo Maçom.

Dentro da fraternidade maçónica, não se deve ceder ao solipsismo, uma vez que a hermenêutica focada na irmandade exige uma postura antisolipsista. Isto implica que o solipsismo, a autoconcentração interpretativa, restringe a percepção do Maçom aos limites da sua própria linguagem. Assim, ele pode definir a Maçonaria apenas dentro dos seus parâmetros pessoais, o que contraria o princípio democrático da interpretação coletiva bem distancia-se da finalidade última da fraternidade. Portanto, a prática do solipsismo maçónico impede a realização de ações corretas e alinhadas com os verdadeiros princípios maçónicos.

Para exemplificar a questão do solipsismo na Maçonaria, pode-se recorrer ao conto “Ideias de Canário” de Machado de Assis, tal qual Lenio Streck o faz, onde o Canário simboliza o Maçom que adopta uma visão anti-hermenêutica, representando o solipsismo maçónico. Ao se dedicar à leitura lenta e deliberada do conto, espera-se que se desvende a essência da hermenêutica maçónica, demonstrando o papel da linguagem maçónica e os riscos associados ao solipsismo.

Este conto oferece uma perspectiva profunda sobre os perigos da adopção de uma linguagem privada, destacando a importância das contribuições de Heidegger e Gadamer ao desenvolvimento do giro ontológico-linguístico na filosofia. Machado, através da sua narrativa, antecipa discussões sobre o valor da linguagem maçónica como um meio para entender a realidade do mundo maçónico, num período em que pensadores como Hamman, Herder e Humboldt dominavam o pensamento filosófico, e o “linguistic turn” que ainda estava por vir.

No conto, o canário, confinado na sua gaiola numa loja de quinquilharias, conversa com o Sr. Macedo, questionando conceitos como o “azul e infinito” e definindo o mundo conforme a sua limitada experiência. Esta interação ressalta a visão de mundo restrita do canário, confinada à sua gaiola e à loja, que ele considera ser o universo inteiro. Posteriormente, quando transferido para uma nova residência, o canário adapta a sua percepção do mundo ao novo ambiente, um jardim que ele passa a considerar como o todo. A fuga do canário e o seu encontro posterior com o Sr. Macedo num contexto diferente, onde ele novamente redefine o mundo, ilustra a natureza maleável e subjetiva da sua compreensão da realidade.

Portanto, o texto de Machado de Assis serve como uma alegoria para o solipsismo maçónico, onde a percepção do Maçom é confinada aos limites da sua experiência imediata e linguagem. A história do canário desafia a noção de que a realidade pode ser totalmente compreendida através de uma perspectiva isolada, enfatizando a importância da intersubjetividade e da comunicação no processo de compreensão. O conto levanta questões sobre como os maçons limitam a sua compreensão da fraternidade maçónica a uma perspectiva estreita, semelhante ao canário, e destaca a necessidade de uma abordagem hermenêutica mais ampla para captar a complexidade e a profundidade da experiência maçónica, seja àquela praticada nos séculos XVIII e XIX ou a da atualidade.

Deve-se, nesse sentido, reconhecer que a essência das coisas não é inerente nem se molda unicamente aos desejos individuais; a existência das coisas é mediada pela linguagem, que transcende a posse individual, tornando-se um bem coletivo, um património compartilhado. A linguagem maçónica, especificamente, evolui e se manifesta conforme a necessidade de compreensão do universo maçónico se intensifica. É como se, no processo de aprendizagem e descoberta, o Maçom, ainda novato, tentasse nomear e entender os elementos e os símbolos que encontra dentro da Loja Maçónica, mesmo sem ter ainda o domínio completo do vocabulário e significados maçónicos pertinentes.

A Maçonaria, portanto, não se reduz a um simples agrupamento de indivíduos que se limitam a repetir mecanicamente os textos prescritos nos rituais e a decifrar a simbologia dos seus sistemas de ensino de forma superficial. Pelo contrário, ela se revela como um fenómeno intrincadamente complexo que engloba a união de pessoas com visões e pensamentos frequentemente opostos. Estas divergências, paradoxalmente, convergem num núcleo comum que articula a linguagem maçónica de maneira refinada e harmoniosa, mostrando que, dentro desse contexto, o conhecimento nunca é absoluto, mas se estabelece como tal no momento da sua apreensão e uso. Assim, seguindo o pensamento de Fichte, o saber se torna absoluto no ato do conhecimento, enfatizando a dinâmica e a natureza evolutiva da compreensão e da linguagem dentro da prática maçónica.

Rui Badaró – Ex-Venerável Mestre da Justa e Perfeita Loja de São João.

Referências

  • GADAMER, H.G. Verdade e método. São Paulo: Vozes: 1999.
  • HABERMAS, J. Facticidade e validade. São Paulo: Unesp, 2017.
  • HEIDEGGER, M. Ser e tempo. Fausto Castilho. Ed. Bilíngue. Campinas: Ed. Unicamp, 2012.
  • HERDER, J. G. Ensaio sobre a origem da linguagem. de José M. Justo. Lisboa: Antígona, 1987.
  • PARRET, H. History of Linguistic Thought and Contemporary Linguistics. New York: De Gruyter, 1975
  • STRECK, Lenio. O que é fazer a coisa certa no direito. São Paulo: Dialética, 2023