Ivan A. Pinheiro[1]
Originalmente o intento era dar continuidade aos aspectos históricos, mas sobretudo doutrinários e ritualísticos, pertinentes ao grande tema em torno do qual eu tenho desenvolvido esta série: o Regime (Rito) Escocês Retificado. Mas uma notícia surpreendente me levou a uma pequena alteração nos planos, pelo que eu espero a compreensão dos leitores, senão por outros motivos porque o que se segue também está afeto ao RER e tem potencial para repercutir no dia a dia das Lojas Simbólicas.
Empreender no mercado editorial brasileiro, como autor ou editor, sempre foi um risco; há títulos, poucos, que “caem no gosto” e viram best-sellers, mas o destino da maioria é o ostracismo, se impressos, serão mais alguns nas pilhas e pilhas em estoque (custo, valores imobilizados). É difícil acertar e lucrar (não apenas como recompensa merecida pelo esforço, mas também para assegurar a continuidade do empreendimento – como se diz: “viver disto”), pois além da falta de hábito de leitura do brasileiro, as preferências, não raro contrariando as análises e inferências mercadológicas, parecem mudar conforme o vento. A realidade, à primeira vista, é desanimadora:
Em uma comparação média com outros países, o brasileiro costuma ler somente cerca de quatro livros por ano, enquanto o canadense lê 12, o que indica um índice de leitura bem abaixo da média[2].
Em um país com 203,1 milhões de habitantes, segundo o Censo 2022 do IBGE, apenas 16% das pessoas acima de 18 anos compraram livros nos últimos 12 meses. Esse é o retrato do consumo de livros no Brasil em 2023 apresentado pela Câmara Brasileira do Livro (CBL), em pesquisa realizada pela Nielsen BookData[3].
Eu poderia me estender com inúmeras citações, mas seria apenas redundante no que ora importa; ademais, a expressão “à primeira vista, é desanimadora” revela e chama a atenção para as duas perspectivas: a do pessimista que se considera impotente frente à realidade posta (a maioria) e, a do otimista, que enxerga nos obstáculos uma oportunidade para alterar a realidade a seu favor – desbravar e conquistar novos mercados.
Para os editores já há estratégias bem conhecidas: (1) além dos clássicos (nacionais ou não, e de todos os gêneros) que quando esgotados têm venda assegurada com as sucessivas reedições, (2) entre os novos autores é possível escolher aqueles já premiados; quem, por exemplo, depois de ter lido “Tudo é Rio”, de Carla Madeira, não compraria “Véspera” ou “A Natureza da Mordida”, da mesma autora? Dito e feito: ambos, embora há pouco tempo lançados, já acumulam várias edições. Mais recentemente, em razão das novas tecnologias, o que se observa, a exemplo do Clube de Autores, é o atendimento sob demanda: vendeu-recebeuproduziu-entregou, unidade ou lote; estoque zero!
Na perspectiva do autor as dificuldades são maiores: quem tem recursos próprios financia a(s) própria(s) edição(ões) na expectativa de recuperar os custos e acumular algum lucro. E quem não tem o montante para o investimento mínimo mesmo na modalidade de produção terceirizada? Há questões que devem ser ponderadas, como por exemplo a notoriedade, a autoridade (intelectual), a respeitabilidade, etc. do empreendedor e/ou eventual autor. Ponderadas essas, entre outras questões, atualmente uma das estratégias mais usuais é o levantamento dos recursos mediante a venda antecipada (promessa de entrega) do produto (no caso, um livro) que, eventualmente, tem o seu valor (real, percebido, afetivo) agregado com algum serviço, como por exemplo a menção nominal dos financiadores ou mesmo a personalização do volume. Trata-se, aqui, do chamado crowdfunding, também conhecido como financiamento coletivo, que hoje operacionalizado (intermediado) por empresas (conhecidas como plataformas) especializadas na comunicação com o público-alvo, na arrecadação dos valores, na produção, na entrega do produto, na solução de conflitos, enfim, na gestão de uma ou mais atividades pertinentes ao projeto conforme o acordado com o contratante. E esse é um ponto deveras interessante, pois o financiamento coletivo, em si mesmo, não só viabiliza economicamente um projeto, concretizando uma ideia até então brilhante, porém sem fundos, como proporciona àquele que adere (o financiador) um sentimento de participação, de colaboração, um envolvimento e importância do tipo “se não fosse eu isto não teria se realizado”. Como consta em uma das mensagens de divulgação: “Contribua agora e faça parte desta história!”. E mais: descortina com muita precisão o universo (que também pode ser identificado como mercado) de interessados (leitores) em determinado tema; quem acompanha mais de perto percebe: são sempre os mesmos que financiam determinados temas.
É chegada a hora, então, de apresentar o caso concreto que motivou este texto: o financiamento coletivo do livro “O Grau de Companheiro Maçom no RER”, uma tradução do homônimo, em francês, da autoria de Roland Bermann, e levada a efeito, no Brasil, pelos BAAII[4] Sandro Nitri e Miguel Carvalho, ambos Mestres Escoceses de Santo André (Grau 4 no RER), sob a revisão e consultoria doutrinária do BAI Wagner de Souza Ramos, Benemérito da Ordem, Mestre Instalado e Cavaleiro Benfeitor da Cidade Santa (Grau 6 no RER). A meta: em 45 dias arrecadar recursos para a produção de 300 unidades, cada quota, com direito a um exemplar entregue no domicílio, vendida a R$ 90,00.
Creio que eu fui um dos primeiros apoiadores:
- primeiro porque já há tempos tenho apontado a carência de material dessa natureza no mercado editorial brasileiro, voltado basicamente para a tradução de textos históricos, sendo raras as exceções – textos reflexivos, especulativos. Por exemplo, a meu juízo (é claro) não há análise mais completa do “Tratado da Reintegração dos Seres”, de M. de Pasqually – obra fundamental do RER – do que a “Teodicéia Psíquica”, de Ivan Correa – autor desconhecido no círculo maçônico -; não porque a obra seja efetivamente completa, mas simplesmente porque não há outra frente à qual possa ser confrontada, que lhe faça o contraponto. Para os estudiosos e pesquisadores de assuntos doutrinários e ritualísticos, da Irmandade Retificada e que não dominam o idioma francês, restam os sites nacionais, a exemplo de https://maconariacrista.wixsite.com/ritoretificado; http://www.hermanubis.com.br/, e também os trabalhos publicados na página do Grupo de Estudos e Investigações Martinistas & Martinezistas da Espanha (http://www.geimme.es/index.html). Mais recentemente foi criado o Círculo de Estudos e Pesquisas do Rito Escocês Retificado (https://cepdorer.com.br/); e,
- em segundo, porque além de a obra ser relevante, o autor já é bastante conhecido na Irmandade Retificada, onde um dos seus livros (“O Grau de Mestre Escocês de Santo André no Rito Escocês Retificado) é leitura quase que obrigatória e, finalmente, os tradutores buscaram a consultoria junto a um dos responsáveis pela introdução do RER no Brasil, fundador das primeiras Lojas e reconhecido pelo seu notório saber.
Qual não foi a minha surpresa quando, ontem, 19.08, recebi (por ter aderido ao projeto), da operadora (plataforma) Catarse, a seguinte mensagem por e-mail:
Nem tudo saiu como planejado… mas temos boas notícias!
Queridos apoiadores, infelizmente não conseguimos atingir nossa meta de 300 livros. Apesar dos nossos melhores esforços e da torcida de todos, o projeto não alcançou o sucesso desejado nesta fase. Mas nem por isso deixaremos a peteca cair!
A primeira boa notícia é que todo o dinheiro que vocês generosamente apoiaram será devolvido integralmente. A segunda (e melhor) notícia é que a história não acaba por aqui. Embora não tenhamos atingido os 300 exemplares, vamos produzir 100 unidades, e quem vai ter prioridade nessa tiragem? Exatamente, *vocês* — nossos BAI’s (Bravos Apoiadores Incríveis)!
Como já temos o contato de todos, entraremos em contato em breve para acertar os detalhes dessa nova fase. Vocês fizeram parte de algo especial e queremos que continuem com a gente.
Então, mesmo que a meta não tenha sido batida, o sonho continua vivo. Obrigado por todo apoio, e fiquem de olho na caixa de e-mails, que logo estaremos falando com vocês! Sandro Nitri
Editor – Tradutor
Lamentável! Triste! Por que isso teria acontecido? Agora há pouco eu consultei a plataforma: exatos 82 colaboradores! Fiz as seguintes contas, que imagino os empreendedores no momento oportuno também fizeram:
- (1) há no Brasil aproximadamente 65 Lojas Simbólicas que praticam o RER. Quantos Irmãos? Não sei (faltam estatísticas!), mas suponhamos que sejam 15 Irmãos/Loja, o que sinalizaria um mercado potencial de 975 adquirentes;
- (2) as próprias Lojas, s.m.j., também deveriam se empenhar na organização da sua biblioteca, ou não, isto deve ser considerado de menor importância, supérfluo até? Em caso afirmativo, isto é, havendo concordância de que uma biblioteca é essencial à Loja, então seriam mais 65 adquirentes;
- (3) e Lojas de MESA? Quantas existem? Suponhamos 25, e fazendo o mesmo cálculo, teríamos um mercado de 375 adquirentes. Vá lá, admitindo que 70% dos MESA frequentam regularmente uma Loja Simbólica, eles não comprariam em duplicidade;
- procedido o ajuste de acordo com a hipótese de (3) e somando (1)+(2)+(3) chega-se a um mercado potencial de quase 1.150 adquirentes; bem,
- por conta de erros, omissões, excesso de otimismo … o que mais? Aplique-se um redutor e admita-se, então, um mercado potencial de 550 adquirentes, menos da metade do mercado originalmente estimado (47,8%).
Ora, ora, entre 550, apenas 82 Irmãos (15%) colaboraram! Frustrante! Isso merece profundas reflexões pois, antes de mais nada, como teria dito Monteiro Lobato, “uma nação se faz com homens e livros”.
Como pode, uma Ordem, pretender transformar (aperfeiçoar, retificar) homens que, sendo modelos, tem ainda a pretensão de contribuir para o aperfeiçoamento da sociedade sem minimamente conhecer os fundamentos (estabelecidos nos três primeiros Graus) do Rito que praticam em suas Lojas?
Aonde está o espírito fraterno, aquele que faz estar ao lado das principais iniciativas e sempre “pegar junto”?
E às Potências e Secretarias Ritualísticas, não caberiam adquirir exemplares para constituir as suas bibliotecas, o acervo destinado ao estudo e à pesquisa de todos os seus Quadros, minimamente dos Ritos que oferecem? O que significa “oferecer um Rito” sem contar com um lastro bibliográfico para além dos Rituais? Tudo, então, deve ficar à conta de cada um? Em sendo a Maçonaria uma Escola, como afirmam vários autores e textos, a analogia com as escolas regulares (do sistema de ensino) parece apropriada, pelo que, cabe lembrar que nestas, para cada percentual de alunos é exigida a disponibilidade de exemplares (físicos ou digitais, conforme o caso) na biblioteca para fins de consulta dos interessados. No caso ora em tela parece-me que não há qualquer política deliberada sobre o assunto, ou se há, é iniciativa isolada. Tudo seria ao acaso, conforme a oportunidade?
Não dá para deixar de perguntar: seriam os R$ 90,00 excessivos? Não sei, cada qual sabe do seu bolso, das suas necessidades e prioridades. Mas já comentei em vários textos, o quanto me deixa perplexo verificar que para a janta (ágape?) que habitualmente sucede as sessões, não faltam R$ 30,00; R$ 40,00/per capta, por vezes mais (claro, depende da localidade, etc.), mas quando se apura o recolhimento do Tronco, aí podem ser encontradas todas as notas de R$ 2,00 ainda circulantes.
Recentemente eu tive em mãos uma lista com mais de 35 Irmãos desejosos de serem Recepcionados ao Grau de MESA em uma das Lojas do Rio Grande do Sul (nota: quase a metade dos Irmãos que aderiram ao projeto ora em tela); é provável que cada um venha a desembolsar aproximadamente de 15/20 vezes o valor da quota de participação no financiamento. Qual a mensagem e que ensinamentos é possível extrair desses fatos? Qual o nível efetivo de envolvimento, comprometimento e desejo de compreensão desses postulantes para com o Regime/Rito? O que mais importa: desvelar as nuances do Rito e as suas contribuições para o aperfeiçoamento pessoal ou ostentar os Graus e aventais? O ocorrido convida à reflexão: quantidade vs qualidade.
Estariam alguns Irmãos esperando os demais adquirirem para, então, fazerem cópia? Quero crer que não. Como, nesses termos, desejar, sem estímulos, uma produção intelectual (de qualidade), sem minimamente remunerar pela dedicação, pelo esforço e pelo risco do empreendimento? Ou erraram os produtores quando optaram por uma edição impressa quando, hoje, o que predomina é a preferência por livros digitais (e-books) e áudio-livros? Será que as novas tecnologias já dominam, de largo, o ambiente maçônico? Só quem não conhece, acredita; talvez em um segmento, o dos mais jovens.
Por fim, lembro que há outros financiamentos em curso para a tradução de obras-RER. Vamos deixar o mesmo acontecer? Além do custo já incorrido pelos empreendedores comprometidos com “O Grau de Companheiro Maçom no RER”, sim, pois se o prazo de entrega era setembro p.f., é sinal de que muito trabalho já foi realizado, muito tempo alocado, além de acordos e compromissos, a exemplo dos direitos do autor. Portanto, até aonde enxergo, s.m.j., já há algum prejuízo econômico e financeiro para os que tomaram a frente da iniciativa. Todavia, me parece que um dos efeitos deletérios mais relevantes, mas ora imperceptível, é a desmotivação para as futuras iniciativas – falta de crença em um mercado que se imaginava promissor, à imagem do que se verifica, por exemplo, na Espanha e em França -, o que antecipa a permanência do vazio intelectual-crítico no ambiente Retificado brasileiro. E isso tudo, curiosamente, no dia em que no Brasil é celebrado o Dia do Maçom, 20 de agosto.
A ver.
Notas
[1] Mestre Maçom. O autor não expressa o ponto de vista das Lojas, Obediências ou Potências das quais participa, mas tão somente exerce a sua liberdade de pensamento e expressão, daí porque muitas vezes comunica na primeira pessoa do singular. E-mail: ivan.pinheiro@ufrgs.br. Porto Alegre-RS, 20.08.24.
[2] Disponível em: https://www.unisinos.br/noticias/por-que-o-brasileiro-le-tao-pouco/#:~:text=Em%20uma %20compara%C3%A7%C3%A3o%20m%C3%A9dia%20com,alguns%20deles%20podem%20ser%20analisados. Acesso em: 20.08.24.
[3] Disponível em: https://www.negociossc.com.br/blog/livros-no-brasil-pesquisa-revela-habito-de-leitura-nopais/. Acesso em: 20.08.24.
[4] Bem-amados irmãos.
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