Bibliot3ca FERNANDO PESSOA

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RER – Cadernos de Estudos: VI

Ivan A. Pinheiro[1]

Introdução Problematizada

Concluídas as preleções básicas e introdutórias (Pinheiro, 2024a, b, c, d), é chegada a hora de adentrar mais a fundo no substrato que dá forma e conteúdo ao RER; antes, todavia, convém firmar alguns apontamentos – praticamente um manifesto – sobre o estado da arte, tornado público[2], do estudo do RER no Brasil[3].

Preliminarmente um esclarecimento já há muito em suspenso e ora oportuno: um Rito (por ora sem aprofundar nos detalhes acerca da sua estrutura e funcionamento), de regra, mas não necessariamente, é parte de um conjunto mais amplo, no caso denominado de Regime. Esse, por sua vez, sobretudo se distingue pela sua característica sistêmica, o que, abstraindo outros aspectos, significa que cada parte, além da sua função própria, que a identifica (por exemplo, cada Grau na trajetória maçônica), também desempenha uma função no contexto do sistema como um todo, e que é de tal relevância que a sua ausência ou limitação pode mesmo comprometer o funcionamento ou, como ora se apresenta, o entendimento do todo, do conjunto, do propósito último. Parece claro que a questão se coloca em perspectiva, o que equivale a dizer: do alcance da visão do observador, do seu conhecimento e compreensão. Assim, uma sessão também pode ser vista em perspectiva sistêmica: cada etapa, fala, gesto, elemento da decoração, etc., tem um papel próprio, mas que quando reunidos constituem um novo sentido só dado a ser apreendido pelo olhar do observador preparado, daí a relevância ímpar dos Mestres na condução dos Aprendizes, atividade irrenunciável, sobretudo pela omissão. E de acordo com as palavras de um Mestre:

La terminología Régimen Escocés Rectificado, por su parte, se relaciona con su organización estructural, quedando entendido que se trata a la vez de su corpus jerarquizado, así como, del significado espiritual que encarna. El Régimen Escocés Rectificado puede pues definirse como una pedagogía espiritual dispensada de acuerdo a una estructura jerarquizada que desvela de manera coerente y progressiva enseñanzas de tipo metafísico por medio de su Rito, es decir: sus rituales, sus instrucciones por perguntas y respuestas, al igual que sus instrucciones morales dispensadas en cada uno de sus grados (Gambirasio d´Asseus, 2021, p. 106).

Os Ritos maçônicos são produtos do espírito do seu tempo e do posicionamento dos proponentes frente às grandes questões em debate (e também das divergências interna corporis) que, em acordo, então dão forma ao arcabouço teórico-doutrinário específico, não raro com lastro histórico que se perde no tempo. Como resultado, um encadeamento de ritualísticas e liturgias que têm início a partir de um momento de grande significado, a Iniciação, se sucedem de forma escalonada e em graus crescentes de complexidade, abstração e simbolismo. Nesse sentido, Rito é parte, é etapa, é procedimento, é objetivo específico, enquanto Regime é o conjunto, o todo, o destino após a caminhada no sentido ao objetivo maior.

Na maioria das vezes a distinção – Rito x Regime – não se faz necessária, razão pela qual neste, assim como na maioria dos textos, a referência é ao Rito e/ou utilizada somente a sigla RER, mas podendo as vezes corresponder a ambos. Entretanto, e é importante ressaltar, que no RER a característica sistêmica é deveras acentuada, talvez por isto, mais do que em outros Ritos, é sempre pontuada: a cada Grau são deixadas questões pendentes a serem esclarecidas nos graus subsequentes (como os elos que dão forma à corrente), o que é determinante para que, na medida do avanço, a compreensão do Regime se dê não apenas pelo acréscimo de conhecimentos adquiridos Grau a Grau, mas também pela complementação, ampliação e ressignificação dos conteúdos anteriores. O fato de o RER estar organizado em 4 (quatro) Graus Simbólicos, no Brasil os 3 (três) primeiros administrados pelas Potências e o último (o de Mestre Escocês de Santo André) sob a jurisdição do Priorado[4], constituindo o que Gambirasio d´Asseux referiu como “organización estructural […] corpus jerarquizado” traz dificuldades adicionais à visão e à operacionalidade sistêmica. Isso, por si mesmo, já se constitui como matéria para um bom debate, oportunamente.

Feitas essas considerações iniciais, a primeira lição de todo aquele que ingressa na Ordem é (ou pelo menos deveria ser) conhecer o Rito praticado na Loja que o acolheu, seja por Iniciação (que no RER ganha o nome de Recepção), transferência ou regularização, casos nos quais a Iniciação ocorreu em outra Loja, Rito ou Potência, o que agrega questões adicionais às que a seguir serão apresentadas.

Em síntese, o estudo de um Rito abrange duas grandes trajetórias: História e Simbologia. E como vínculo entre ambas, a lógica que dá origem e concatena a doutrina, a ritualística e a liturgia que constituem o Rito, Grau a Grau. A História, é claro, pode ainda ser desdobrada em aspectos referentes à Maçonaria em geral (contexto sociopolítico, cultural, etc.), ao Rito vis-à-vis os seus congêneres, o Rito como objeto de estudo em si mesmo, o seu surgimento e expansão em determinado País, etc. A Simbologia, como já afirmaram vários autores, a exemplo de A. Pike (2011) e J. F. Newton (2000), é “a alma da Maçonaria”, daí ser impensável frequentar uma Loja/Rito sem conhecer e entender os símbolos e os significados, a começar pelo ambiente físico (espaço, objetos, utensílios, organização interna, etc.), mas também a ritualística e a liturgia de cada tipo de sessão/Grau pois, conforme amplamente difundido na Ordem: “tudo possui significado, nada é por acaso”. E tudo, desde o início, quando oportuno e da maneira adequada, orientado ao cotidiano, pois a Maçonaria não se esgota no puro diletantismo reflexivo. E por certo que a essa formação básica, com o passar do tempo outros conteúdos devem ser acrescentados: a organização da Maçonaria no mundo, no país, a legislação, a estrutura e a governança da Potência à qual a Loja está jurisdicionada; a gestão dos processos internos à própria Loja, a começar pelo planejamento de todas as atividades/sessões; os eventuais elementos estranhos ao Rito porém incorporados em razão das exigências institucionais próprias à Potência vinculante, entre outras tantas pautas.

Ademais, consta em inúmeros textos, inclusive nos Rituais, que a Maçonaria é, também, uma Escola[5], metáfora que, para o bom termo dos intentos da Ordem, aponta não só para a necessária e indispensável atuação proativa dos Mestres (notadamente das Luzes, supostos experientes e conhecedores do métier) como o largo emprego das tecnologias educacionais (planos de ensino com bibliografia, cronograma de atividades, etapas de revisão, reforço, avaliação, etc.) e abordagens pedagógicas, lembrando que, em se tratando de um público de adultos, o enfoque recomendado é o da andragogia – entre tantos, vide Pinheiro (2024e, f) e Pinheiro e Dutra (2024) -, sendo o mestre antes um orientador e esclarecedor do que um professor na acepção ordinária da palavra.

Dito isso, que me parece ser o lógico e natural, inclusive porque encontrado em vasta literatura, não sendo, portanto, uma opinião pessoal, uma das constatações que mais me surpreende na Maçonaria nacional é a ausência de iniciativas ou procedimentos consolidados no sentido à concretização do ambiente descrito acima[6]. Assim, já há vários escritos, como também nesta Série, um dos objetivos é contribuir para o preenchimento desta que eu entendo ser tanto incompreensível quanto inaceitável lacuna na maçonaria brasileira, sobretudo no curso dos 3 (três) primeiros Graus, os alicerces da construção, sobre os quais se assentam os demais.

Em meio a essa realidade, inclusive corroborando-a, é hábito já consagrado que após a Recepção[7] seja solicitado ao neófito que apresente ao Quadro da Loja um relato denominado de “As Primeiras Impressões”. Embora não tenha previsão no âmbito da doutrina e tampouco no ordenamento institucional, trata-se de iniciativa que não apenas responde à ansiedade e curiosidade naturais, como pretende estimular o estudo por parte daquele que, no caso do I Grau, recém ingressa na Ordem. Seria também a primeira oportunidade para, em complemento, as Luzes e os demais Mestres do Quadro, cada qual de acordo com as suas expertises (ou com o script planejado) esclarecessem ao neófito o significado do drama no qual foi o protagonista. Não é, infelizmente, o que eu tenho presenciado. Tem início, então, para o Aprendiz, a Era dos Mistérios: há algo (ou muito) a ser descoberto, mas tudo, é claro, no seu devido tempo, e que as expectativas não sejam demasiadas, pois o essencial é incognoscível, está além da compreensão. Tenho dito, e reitero: vejo aí um grande equívoco, pois perde-se a oportunidade de, efetivamente, Iniciar o recém Recepcionado, auxiliando-o a levantar os primeiros véus e, pela prática, a descobrir o instrumento (visto também como a estratégia pedagógica) fundamental da Ordem: a análise e a interpretação simbólica. Só assim, por exemplo, o Iniciado teria a compreensão da ritualística de Abertura da Loja (já na sessão subsequente à sua Iniciação), bem como das futuras Iniciações em meio as quais, já na condição de expectador, poderá então ter melhor entendimento, senão por outros motivos por que pela primeira vez poderá observar e refletir sobre toda a ritualística à qual foi submetido. Não vejo como sendo outros, senão esses, os primeiros passos de uma longa caminhada que, se a cada Grau agrega, também reinicia e dá novo significado aos anteriores.

Cui bono? S.M.J., aos acomodados e vaidosos: os primeiros porque não se obrigam a estudar a fundo as questões da Ordem, bem como compartilhá-las no âmbito de um programa de docência (Pinheiro, 2024f; Pinheiro e Dutra, 2024); os últimos porque, valendo-se do desconhecimento dos neófitos, então desfilam como conhecedores dos mistérios reservados somente aos Mestres.

A partir de então, por ora deixando à margem as novas Recepções, em meio às sessões administrativas e comemorativas se alternam as para a audição das Instruções prescritas nos Rituais e as para as apresentações dos respectivos trabalhos, e também os referentes aos temas livres, espontâneos ou mediante provocação. E no que tange às Instruções mediante os “catecismos”, também aqui, o que constato é que, mais uma vez se perde uma grande oportunidade de aprendizagem pois, de regra, tudo se passa não mais como uma mera formalidade burocrática, tão somente para cumprimento regimental: a leitura das perguntas e respostas sem que a esta suceda, ainda que seletivamente, debates em qualquer nível de profundidade, sequer rasas considerações. Assim, na maioria das vezes o conjunto de Instruções é considerado não mais do que um obstáculo que, sem exigências quanto à proficiência, deve ser ultrapassado durante o cumprimento do interstício mínimo para a progressão de Grau. Cui prodest?

E ao desconhecimento natural a qualquer Iniciante, logo se soma a ânsia de avançar nos Graus que constituem os Ritos, no que é acompanhado, quando não estimulado, pela Administração da Loja, também (mas não exclusivamente) em razão dos aportes financeiros que a passagem de Grau proporciona. Assim, o Aprendiz (e depois o Companheiro e também o Mestre) vai deixando para trás um rol de oportunidades de aprendizagem, perde relevantes conteúdos, notadamente o estudo e a análise minuciosa das dramatizações referentes às diversas Iniciações. Alarga-se, pouco a pouco, e hoje praticamente de modo institucionalizado em algumas Lojas, a lacuna na formação do maçom, comprometendo não apenas a sua trajetória em caráter pessoal, mas o papel que a própria Ordem dele espera enquanto agente histórico de transformação social.

E como não poderia deixar de ser, é na representação do drama da Recepção ao Primeiro Grau que são fundadas as bases doutrinárias, estabelecidos os princípios e as diretrizes que não só dão significado aos demais procedimentos no Grau, como a orientação e o sentido que o concatenam em relação aos Graus subsequentes que, em conjunto dão forma e conteúdo ao Regime. Sim, pois no RER, talvez de forma muito mais clara do que em outros Ritos, há um nexo de continuidade entre os Graus subsequentes, primeiro na Ordem Externa (maçônica, simbólica, os 4 (quatro) primeiros graus) e depois na Ordem Interna (de cavalaria, 2 (dois) graus). E, por oportuno, chamo a atenção para mais uma oportunidade perdida: era de se esperar que, àquele que ascendeu de Grau, fosse perguntado: o que é que, no Grau antecedente, agora restou mais bem esclarecido? Ou ainda: o que é que, por ampliação ou mesmo correção de entendimento, comporta ressignificação? E também: o que agora ainda resta em aberto e à espera de esclarecimento, quiçá, nos Graus subsequentes? Todavia, em absoluto, não é o que se verifica: cada Grau, provavelmente em decorrência da condução nos termos acima, é visto e tratado de modo isolado e fragmentado. Perde-se, assim, por completo, o sentido do Regime, da complementação, da ascensão, da superação das partes e das divisões que, na origem, foram concebidas como etapas da trajetória no sentido à Reintegração.

Qual seria, pois, o sentido da progressão acelerada de Graus para os que não dominam as peculiaridades simbólicas de cada Grau do Rito? A meu juízo, nada mais do que a troca de colunas, de aventais e talvez o acréscimo de algum button ou mesmo uma medalha na lapela (e alguns recursos a menos na conta bancária e em favor da Loja). A consequência está sintetizada nas palavras de um editor de A. Pike:

Lembrando que se trata de uma instituição iniciática e aceitando o motto de que é “um sistema de moral velado por alegorias e ilustrado por símbolos”, é absolutamente necessário que se desenvolvam diversas atividades simultâneas. Há que manter vivas as tradições, estudar profundamente seu simbolismo, exercitar a ritualística que mantém acesa a chama do simbolismo em nossos espíritos […] Sem trabalharmos efetivamente em tudo o que Pike nos lega, o que fazemos em Loja não passa de um teatrinho ridículo[8].

Cui bono? Cui prodest?

Há, pois, à luz do cenário descrito e a meu juízo, inúmeras lacunas; assim, o objetivo principal desta Série, reitero, é aos poucos contribuir para o seu preenchimento. E se em razão das dificuldades a seguir expostas o preenchimento não for suficiente, mas se este trabalho tiver provocado nos leitores (até mesmo por inconformidade com eventuais erros) a busca por esclarecimentos em outras fontes, o objetivo será considerado atingido.

Sendo de matriz francesa, são maiores as dificuldades que se levantam aos estudiosos do RER para a consulta às fontes primárias, razão pela qual recorro à bibliografia em espanhol (na qual se observa ampla citação dos estudiosos franceses), complementada com os esclarecimentos absorvidos a partir de autores nacionais ou tradutores dos grandes clássicos da filosofia e da literatura “vetero-neo-testamentária”. De outro lado, é preciso registrar que ao contrário do que se observa na Europa, no Brasil a intelectualidade Retificada majoritariamente tem se dedicado apenas aos aspectos históricos; dessarte, à exceção do blog “Primeiro Discípulo – notas de um maçom retificado”[9] e dos textos organizados por Marques e Vieira (2016), são praticamente inexistentes as reflexões e as discussões (tornadas públicas) acerca dos elementos doutrinários, ritualísticos ou litúrgicos, bem como estas reverberam no cotidiano dos Maçons Retificados. O fato de o RER, em comparação aos demais Ritos, ser considerado ainda recente no Brasil, é apontado como uma possível, mas certamente não é a única explicação para esse panorama. De outro lado, porque tem experimentado acelerado crescimento, tanto de Lojas Azuis quanto de Lojas Verdes, urge, penso eu, que se estabeleçam os indispensáveis esclarecimentos, instituídas políticas e diretrizes[10] atualizadas para que não se percam os fundamentos doutrinários que singularizam o Regime; e também pelo fato de ser novo, uma parte significativa do seu crescimento se dá pela incorporação de Iniciados em outros Ritos, o que alavanca o risco da sua descaracterização.

Finalmente, um esclarecimento: em meio a algumas citações, bem como alinhado com o que tenho defendido em outros trabalhos, a narrativa que se segue privilegia os comentários e a análise crítica, pois o que se pretende é antes conhecer e refletir do que reproduzir em estado de anomia, em sinal de plena concordância, com os termos do texto-fonte básico, a plataforma que dá sustentação ao Rito – o Tratado da Reintegração dos Seres. Ademais, como comentarista onisciente, um pouco mais familiarizado com o tema, no âmbito do seu projeto de texto (e da Série) e com o intuito de facilitar o entendimento do leitor menos versado, me valho de uma estratégia literária: ir e vir nos conteúdos que se encontram distribuídos no texto-fonte, por vezes antecipando eventos dos quais só adiante serão trazidas evidências mais robustas – citações.

Do ponto no centro do círculo à imensidade terrestre

Conforme amplamente disseminado na literatura específica, o RER possui 3 (três) raízes:

  1. lastreado na filosofia e na doutrina da Maçonaria Elus Cohen – criada por M. de Pasqually (MP) -, J. B. de Willermoz e outros[11], frente à realidade maçônica de então (segunda metade do séc. XVIII), vislumbraram a oportunidade de criar, senão uma Nova Maçonaria (com efetivos propósitos de retificação, de correção), um novo Rito;
  2. todavia, a partir de uma das estruturas já existentes, a Maçonaria da Estrita Observância Templária[12] – alemã e que, desde a origem, já alimentava o propósito retificador;
  3. mas sem que pudessem, é claro, renunciar aos elementos da Maçonaria Anglo Escocesa[13].

Por oportuno, um esclarecimento de R. Amadou na sua introdução ao Tratado da Reintegração dos Seres (TRS), de M. de Pasqually (2022), e que se revela fundamental a todo o estudo que se segue posto que integra a terminologia pasquallina que de regra não é usual aos leitores:

A palavra cohen significa “incorporação do ser espiritual menor”, ou seja, o homem, e sua junção com o princípio corporal de sua forma. Ela faz alusão à alma espiritual incorporada em seu templo particular, pois o corpo é um templo (op. cit., p. 37).

Após alguns anos na Maçonaria, parece-me claro que o estudo e o entendimento desta não pode ser descolado do maior empreendimento da humanidade, a busca incessante pelas respostas às chamadas questões fundamentais: de onde viemos (a origem do Universo e da vida), para aonde vamos e qual a nossa razão de ser – o sentido da vida? E em meio a tanto, 2 (duas) linhas de questionamentos inter-relacionados: 1) as incompreensões acerca das limitações e impotências frente ao mal, ao sofrimento, bem como à inexorável finitude (haveria algum tipo de imortalidade?); e, 2) se o curso da vida já está pré-definido ou se existe algum grau de liberdade, de livre-arbítrio.

As narrativas que organizaram as respostas às questões fundamentais, inicialmente na forma de lendas e mitos, foram então identificadas como cosmogonias ou teogonias, pois nem todas as cosmogonias têm (ou tiveram) o consórcio de alguma divindade. Com o passar do tempo, e no mundo ocidental a principal referência é a Grécia Antiga, por volta dos séculos VIII/VII a.C., os modelos (a maioria mecânicos) e as hipóteses baseadas em elementos naturais (água, ar, fogo, etc.) e nas evidências (algumas, na forma de combinações ou transformações havidas nos elementos naturais) passaram a ocupar os espaços até então destinados às divindades no curso da formação do Universo e, por extensão, do surgimento da vida. Todos os povos, e cada um, ao longo da história não só criou (e escolheu) a sua cosmovisão como, tendo-a incorporado aos usos e costumes, fez da sua transmissão às gerações futuras um dos principais objetivos. As tradições, inicialmente orais, aos poucos ganham registros mais estáveis e duradouros porque materiais, seja através da arquitetura, da arte (iconografias, representações e pinturas), das câmaras mortuárias e, finalmente, da escrita. Hoje, devidos aos inter-relacionamentos culturais, é praticamente impossível identificar uma cosmogonia genuína e claramente estabelecer delimitações categóricas no tempo e no espaço; assim, no seio de cada sociedade convivem diferentes narrativas, em efetiva miscigenação; mas a História é longa, daí que maiores detalhes, entre tantos, podem ser vistos também em Pinheiro (2024d) e nas referências que este indica.

Ao dar forma ao novo Rito, JBW escolheu a teogonia apresentada por Pasqually (2022) na sua (única) obra, para alguns, um clássico inacabado: o TRS, mas não sem proceder incorporações que tornassem possível o RER se autodenominar como a Maçonaria Cristã. E sendo a obra (o TRS) um midrash, é importante ter em conta que

Em contraste com a interpretação literal, subsequentemente chamada de peshaṭ, o termo midrash designa uma exegese profunda e contrária ao método de peshat, tentando penetrar e revelar o espírito das Escrituras, cercando por todos os lados, examinando, revelando às interpretações que não são óbvias na leitura superficial do texto[14].

Portanto, por definição, um midrash vai além do entendimento literal, podendo se estender pelos demais modos da exegese bíblica e habitualmente comunicados através do acróstico PaRDeS – Peshat, Remez, Darash e Sod[15]. Em razão de a expressão, per se, remeter ao estudo e à pesquisa, o produto final, qual seja, a interpretação (ao texto e à oralidade bíblica) são, em última análise, uma construção pessoal, no que se assemelha, conforme pontuado, à percepção sistêmica. Assim, o TRS é mais um, entre tantos textos de interpretação pessoal, no caso, de M. de Pasqually (2022), como aliás ele próprio deixa claro quando afirma:

139 – […] Falar-vos-ei agora da posteridade de Noé […] dez filhos, a saber, sete machos e três fêmeas. Foi sob essa posteridade que o culto do Criador foi regenerado […] (op. cit., p. 220).

140 –[…] Não é surpreendente que Noé tenha tido essa segunda posteridade, que ele chamou de homens-Deus da Terra […] Sei que a Escritura não fala dessa posteridade[16], mas não podemos ignorar que Noé nos tenha retraçado o modelo de Adão em sua primeira prevaricação […] Noé repete a mesma coisa em sua primeira posteridade de três filhos machos [Sem, Cam e Jafé], que ele teve antes de sua eleição e da manifestação da justiça (op. cit., p. 221).

Ao longo do TRS são indiscutíveis as semelhanças com as bíblias cristãs, mas, como visto acima, há também diferenças e, em termos isentos, não poderia mesmo ser de outro modo pois as cosmo-teogonias, em última análise, procuram explicar como e porque, desde o início dos tempos, a humanidade chegou até aqui, ao presente da História.

Penso que nunca é demais lembrar esse aspecto – que se trata de uma interpretação pessoal[17] –, sobretudo para evitar, baseado no TRS, afirmativas com intento categórico, porque absolutamente indevidas e tendentes a iniciar discussões intermináveis. O fato de ser um Rito autoproclamado cristão induz alguns a confundirem o espaço RER como um domínio religioso próprio à difusão da “palavra de Cristo”. A propósito, um estudo sobre como se chegou ao texto bíblico atual[18], já seria suficiente para desestimular certos posicionamentos e afirmativas, e daí com mais razão ainda a partir dos comentários e interpretações pessoais derivados. Resulta, do que foi dito, que ao contrário do que por vezes se tenta fazer crer, no domínio da Maçonaria nada está(foi) Revelado, antes, tudo se encontra aberto à reflexão, à descoberta e ao debate instrutivo e construtivo, sem que isto implique no afastamento das Escrituras como fonte de estudo.

É então no TRS que tudo tem início, é nele que a seu modo MP responde às questões fundamentais: apresenta a criação do mundo, do homem, e dá um sentido à vida, além, é claro, de fornecer os elementos que instruem o drama das Recepções no RER, sem exclusão dos demais, mas notadamente ao Grau de Aprendiz e ao de Mestre Escocês de Santo André, entre outros aspectos diluídos ao longo da ritualística, a exemplo da liturgia da Abertura das Lojas, dos princípios, das máximas e das virtudes a serem observadas e desenvolvidas no curso da Ordem Externa.

O Deus de Pasqually é um ser necessário, eterno, infinito, perfeito e imutável, combina, pois, elementos de várias tradições, a exemplo da platônica, da aristotélica, da agostiniana e da tomasiana – em que pese ser um Rito cristão, o Criador, e sobretudo o Universo de Pasqually possuem traços ecumênicos. O mesmo ocorre, a fusão de várias fontes, quando adentra em considerações sobre o mal, o livre-arbítrio, a imortalidade da alma e outros temas, quando então os pensadores da Escola de Alexandria (Egito), do período anterior ao primeiro Concílio fundador do cristianismo – durante o florescimento da patrística -, passam a ser as referências. Há, portanto, para além dos textos fundadores e em francês, uma fonte inesgotável de material inspirador à reflexão e à orientação do seguidor da Doutrina da Retificação.

Ademais, para a melhor compreensão do martinezismo, importa não perder de vista o ambiente no qual MP, um mago, um teurgo, estava imerso quando escreveu o TRS: a efervescência intelectual que em meio aos acalorados debates que não raro degeneravam em embates e que mesmo na Modernidade já avançada (Iluminismo) ainda dividia os corações e as mentes ao opor 2 (dois) sistemas de mundo: 1) o ptolomaico – defendido pela igreja católica -, concebido a partir de esferas concêntricas e harmônicas – tendo a Terra e o Homem no centro – e sobre as quais se distribuíam as estrelas (fixas) e orbitavam (em ciclos regulares) os 7 (sete) planetas[19] (sol, mercúrio, vênus, marte, júpiter, saturno e lua) vistos a olho nu; e, 2) o copernicano, também denominado de sistema heliocêntrico, à época revolucionário, marca da emergência de um novo paradigma. Claramente posicionado, não é por mero acaso que a representação do Quadro Natural (Pasqually, op. cit., p. 306) é uma sucessão de círculos concêntricos – com Deus ou a sua centelha ao centro – e tampouco que nele constem os “planetas” recém listados.

Sabe-se, também, que a Maçonaria Especulativa, institucionalmente recém (1717) instituída, desde 1753, com a fundação da Grand Lodge of England According to the Old Institutions ou Grand Lodge of the Antients, enfrentava severas fissuras que, em alguma medida, espelhavam os debates e embates no seu entorno: renovação x tradição. O nome dado à Constituição da Grande Loja dos Antigos, Ahiman Rezon, em hebraico, não deve ter passado despercebido por MP: “A tradução literal de Ahiman é “um irmão preparado”, e Rezon é “secreto”, então Ahiman Rezon literalmente significa “os segredos de um irmão preparado”” (Ismail, 2012, p. 1).

O aperfeiçoamento (por J. Kepler, G. Galilei e mais tarde I. Newton), bem como a extensão do modelo copernicano, constituíram um dos lados da moeda. Todavia, paralelamente se deu o renascimento ocultista[20] (por vezes referido como resgate neoplatônico) promovido por M. Ficino[21], G. Pico della Mirandola[22], G. Bruno e J. Böhme[23] – este um notável influenciador no desenvolvimento da maçonaria que guarda proximidade com o hermetismo. Por exemplo, Louis-Claude de Saint-Martin[24], o terceiro prócer do RER, de acordo com Marques e Vieira (2016)

[…] considerava as obras de Jacob Böhme de uma profundidade e de um valor inestimáveis e não se achava digno nem de desatar as sandálias de Jacob Böhme; entendia que seria necessário que o homem se tivesse tornado pedra ou demônio para não tirar proveito de tais obras (op. cit., p. 136);

A partir de então, sempre que se referia a Jacob Böhme dizia que o Iluminado teutônico foi a maior luz que veio a este mundo depois daquele que era a própria Luz, isto é, o Cristo (op. cit., p. 137).

Reunidos, os dois lados da moeda provocaram debates que abriram novos e revolucionários horizontes conceituais, filosóficos e teológicos (Yates, 1990; Rossi, 1992) com repercussões diretas no cotidiano mais objetivo – a vida moral ordenada a um plano espiritual, transcendental.

Esse é, pois, o ambiente no qual estava imerso MP e no qual ele e os seus seguidores claramente assumiram um dos lados; visto assim, à margem dos anacronismos, a construção pasqualina torna-se mais compreensível, ainda que hoje, para muitos, inaceitável.

Na sequência, a partir de algumas citações, as primeiras informações sobre a física e a metafísica de MP que, ao tempo em que respondem às questões fundamentais, esclarecem na compreensão da doutrina, da ritualística e da liturgia nas Lojas Retificadas. Cada tópico apresentado e brevemente comentado, per se, seria merecedor de análises complementares, mas para que este texto não se estenda em demasia, elas terão continuidade nas próximas edições desta Série. O tema não encerra dificuldades, mas a falta de habilidade do autor por vezes torna o TRS um texto confuso, daí porque, mais do que conveniente, necessário que à sua leitura individual (combinada a textos afins) suceda o debate em Loja ou em grupos de estudos; não é à toa que, em Loja, são mais desenvoltos os Iniciados ou que se dedicam ao estudo das Ordens Martinista e Rosacruz, instituições se nutrem dos conteúdos do TRS.

“Antes do tempo Deus emanou seres espirituais para sua própria glória, em sua imensidade divina” (Pasqually, 2022, p. 82).

Desde a primeira frase o TRS traz valiosas informações para a compreensão da Doutrina Retificada que, à época sequer era cogitada. A julgar apenas pela primeira frase, a emanação dos primeiros espíritos teria se dado apenas e a partir de uma motivação diletante, como se não houvesse outra razão de ser, impressão que logo a seguir se desfaz, pois, com efeito

Esses seres tinham a exercer um culto que a Divindade lhes fixara por leis, preceitos e mandamentos eternos […] não podiam negar e nem ignorar as convenções que o Criador fizera com eles […] posto que era unicamente sobre essas convenções que estava fundada sua emanação (op. cit., p. 82);

[…] foram emanados para agir segundo sua própria vontade e como causas segundas espirituais, consoante o plano que o Criador lhes traçara (op. cit., p. 84).

O “plano que o Criador lhes traçara” não despertaria maior atenção se a liberdade, o livre-arbítrio, não ocupasse um lugar central em toda narrativa pasquallina, inclusive apontada como a justificativa para a existência do mal; portanto, um breve esclarecimento. Em última análise, porque devida a obediência às leis, aos preceitos e aos mandamentos, fica afastada (dos espíritos) a liberdade em sua mais plena acepção; observar as normas (leis em lato sensu) impõe-se pois como conditio sine qua non à existência, à condição de ser emanado. Assim, embora a questão da liberdade seja um tema sempre aberto à discussão, o que MP de pronto parece chamar a atenção é para o fato de que a vida em sociedade (ainda que espiritual) implica em perdas, ora mais, ora menos, de graus de liberdade; a questão da liberdade absoluta já há muito está definitivamente afastada.

A expressão “emanou” revela as origens de MP, a sua tradição hebraica, aonde o mundo tem início a partir do tsimtsum[25]. Há muitas controvérsias sobre a biografia de MP, mas é dado como certo que era de família marrana – judeus da península ibérica que embora obrigados à conversão ao cristianismo, ocultamente, mantinham as suas crenças e tradições[26]. Ursin (2014, p. 66) comenta que “se Martinez e Saint-Martin eram “judaico-cristãos” […] Martinez era muito mais judeu, impregnado pela Cabala e pelo Talmude, do que cristão, e Louis-Claude de Saint-Martin muito mais cristão do que judeu”, assim como Jean-Baptiste Willermoz.

É sutil a diferença entre os verbos emanar e criar (ora MP os distingue, mas ora os utiliza indistintamente), este último utilizado nas bíblias, mas ao optar pelo primeiro MP sugere que os espíritos são partes do próprio Criador, não são constituídos a partir de matéria externa e pré-existente, daí que com Ele de certo modo até se confundem

(em potências, virtudes, etc.): “[…] podiam eles [os espíritos] ter conhecimento de coisas que ainda não existiam distintamente e fora do seio do Criador […] liam claramente e com plena certeza o que se passava na Divindade, assim como tudo o que estava contido nela” (op. cit., p. 83-4). O verbo emanar é também o recurso utilizado pelo autor para assegurar que tudo o mais que decorre da emanação, a começar pelos primeiros espíritos, contém uma centelha (luz) divina, o que também a tudo e a todos de algum modo os mantém conectados, como estabelece alguma condição de igualdade, de fraternidade. Observa-se que já desde a primeira frase MP pavimenta, estabelece os fundamentos de todo o caminho a ser seguido pois, afinal, como adiante ficará mais claro, somos todos espíritos revestidos por um corpo de matéria aparente.

Chega a ser intuitivo o fato de que a emanação, assim como a irradiação, evoca o afastamento a partir de um ponto central – Willermoz (s.d., p. 52) refere ao “centro divino”. Ora, se o ponto central for considerado como a expressão máxima de pureza espiritual, quanto maior o distanciamento daquele (como é o caso do diâmetro do círculo), maior a imperfeição e o esforço, para os que desejarem, retornar à origem, à Unidade. Não por acaso, simbolicamente e em Loja, enquanto a Luz está à Oriente, à Ocidente, quanto mais próximo à porta, onde se posicionam o II Vigilante e o Aprendiz “mais jovem” (Recepcionado mais recentemente), maior a escuridão; o que também explica, especificamente no RER, a economia dos diálogos entre as Luzes durante as sessões. Me parece que não há melhor analogia do que a Teoria do Big Bang.

Ademais, também ainda na primeira frase, fica clara uma delimitação: antes e após o tempo. E qual é o delimitador? A existência consciente do homem físico, sendo o tempo a medida (apreendida pelos sentidos) que expressa as mudanças e as transformações (a corrupção) às quais o corpo é submetido; parece haver aí elementos do devir platônico. A propósito, idade não se eleva a cada Recepção? Sendo eterno e infinito, para Deus não há passado e tampouco futuro, tudo é presente e imutável (não passível de corrupção), por isso onisciente.

Já passados alguns anos, é possível colher os benefícios da analogia (tão somente para fins didáticos) anterior e que poderia levar os mais afoitos e entusiasmados a ver em MP um presciente também no campo das ciências: por exemplo, não há qualquer sentido em referir ao tempo antes do Big Bang porque as leis (à época e até hoje conhecidas) da física utilizadas para descrever o funcionamento do universo conhecido não se aplicam à singularidade que identifica o princípio dos tempos.

Proposta por G. Lamaître[27] e derivada das equações da Teoria da Relatividade de A. Einstein[28], a singularidade do Big Bang (também verificada nos Buracos Negros) corresponde a um momento de densidade infinita da matéria, como se tudo o que existe no cosmos, no Universo, estivesse concentrado na cabeça de um alfinete. O tempo cósmico (hoje estimado em aprox. 14 bilhões de anos) só passa a ter existência a partir do Bang, quando se dá a expansão uniforme do Universo; portanto, nada mais apropriada, para o que simboliza, a expressão O Ponto Dentro do Círculo, tão usual na Maçonaria. Daí porque muitos autores e textos esotéricos, mas também os exotéricos, com ou sem elementos que ainda, mas outros que com certeza não serão abordados aqui, denominam esse momento (a singularidade) como sendo o Um, mas também como o Uno, o Absoluto, o Eterno (sem início e sem fim), a Mônada ou a Célula Primordial, a Causa e Efeito em Si Mesma, o Incognoscível, o Inefável, o Suprassensível, o Transcendente, entre tantas denominações[29], muitas com indiscutíveis elementos antropomórficos, a exemplo de o Criador e, como referido por MP, Deus. Esse, para MP, é um ser que pensa, têm objetivos, estratégias, é virtuoso (bom, justo, etc.), é perfeito, mas também dotado de sentimentos e que pune os que contrariam as regras, enfim, é um homem[30]. Adiante, para além do TRS, já na construção do RER, para superar as contradições apontadas, entre tantos desde os epicuristas e estoicos (escolas de pensamento que disputavam o espaço com e durante a formação do cristianismo – até o séc. IV), surgirá, então, o Homem-Deus, uma figura revolucionária notadamente movida pelo e identificado com o amor (lato sensu). Assim, conforme logo será dado a conhecer, a leitura das primeiras páginas do TRS, a julgar pelas atitudes e comportamentos dos personagens, demasiado humanos, em nada fica a dever a uma peça de literatura. Isso, per se, já deveria suscitar muitas reflexões.

Cogita-se que a Terra tenha 4,5 bilhões de anos, que as primeiras formas de vida tenham surgido há 3,5 bilhões, enquanto o homo sapiens teria surgido entre 350 e 200 mil anos. É pouco provável que MP estivesse preocupado com essa cronologia, mas antes e tão somente a partir do momento em que dos registros fósseis pré-históricos (sepulturas, pinturas rupestres, etc.) tivesse ficado claro que desde priscas eras o homem já se ocupava e preocupava com as suas origens e, sobretudo, se haveria vida após a morte, pois as evidências, a exemplo do ciclo dos astros e da vida vegetal, assim e pelo menos à primeira vista o sugeriam.

E é também razoável imaginar que esses primeiros representantes do gênero humano se questionassem sobre as agruras da vida, os riscos e as dificuldades da luta diária para a sobrevivência. Para muitos, notadamente em meio à civilização ocidental, parece ser dominante um certo atavismo: a crença de que tudo tem que ter um início e uma razão de ser explicáveis e compreensíveis. Afinal, para que serve a razão; o sentido da vida não seria levá-la aos seus limites e penetrar nos confins do inescrutável, do micro ao macrocosmo? E só chegamos aonde chegamos devido à compreensão, pela via da razão, dos fenômenos e dos mistérios da natureza, e se os motivos não se apresentarem ao entendimento a partir dos sentidos, devem então ser procurados pela via da razão e, segundo alguns, também no universo suprassensível. Em meio a tanto, conforme visto em Pinheiro (2024d), há povos que aceitam (por naturalidade ou ausência de compreensão refinada) que tudo foi, é e será eterno, infinito[31] e organizado em ciclos[32].

A questão do tempo é, pois, central para MP, corresponde à duração da vida e, por extensão, do Universo que a torna possível.

Um indispensável parêntese.

O Um (mencionado acima) não deve ser confundido com o algarismo “um”. O Um corresponde ao ente primordial, a causa primeira, incausada e incriada, necessária a todas as demais, à semelhança da Primeira Causa de Aristóteles, mas também das 3 (três) primeiras vias (provas)[33] da existência de Deus formuladas por Sto. Tomás de Aquino (McGrath, 2005; Savian Filho, 2005). Por oportuno, convém chamar a atenção para um elemento presente na Maçonaria geral, mas que na Retificada possui um papel de maior relevância: o número.

Antes de ir adiante, devo falar do princípio fundamental de toda emanação e de toda criação, que é o número. Os sábios de todos os tempos reconheceram que não poderia haver nenhum conhecimento seguro, seja da parte espiritual Divina, seja da parte universal geral terrestre, seja das particulares, sem a ciência dos números, uma vez que é por esses números que o Eterno fez todos os seus planos de emanação e de criação. O número, sendo coeterno à Divindade, já que, por toda a eternidade, Deus é, o número, tem, pois estado em toda a eternidade nele, visto que Deus tem seu número. Porque, se Deus havia podido criar o número, pareceria que ele havia podido criar a si mesmo, o que é impossível, porque nada subsiste sem o número. Ora, Deus sendo o Ser necessário, existindo por si mesmo, conteve, pois, toda a eternidade, todo número. Ele dotou todos os espíritos segundo sua infinita sabedoria e ação eterna. Nenhuma de suas obras saiu de suas mãos sem ser marcada com esse selo: tanto os espíritos emanados como a criação deste universo, tudo tem seu número (Saint-Martin, 2024, p. 6).

No Universo, tudo pois, é número; daí que pode ser expresso e comunicado dessa forma, o que explica a sua importância, e por isso a necessidade do seu estudo aprofundado na Maçonaria. Louis-Claude de Saint-Martin tem, inclusive, um livro específico dedicado ao tema: De Los Números (2008)[34][35]. É notável em MP a influência do pensamento pitagórico, o que pode ser constatado a partir do fragmento de Filolau35 trazido por Santos (1965, p. 31):

E todas as coisas, as que pelo menos são conhecidas, têm número; pois não é possível que uma coisa qualquer seja ou pensada ou conhecida sem o número. O número possui duas formas próprias: o ímpar e o par, e uma terceira, proveniente da combinação das duas outras, o par-ímpar. Cada uma dessas formas é suscetível de “formas” muito numerosas, que cada uma individualmente manifesta.

Datam desse momento histórico os primeiros registros dos números enquanto expressão da vontade dos deuses na criação e arranjo do Universo, o que inclui os seres de toda natureza; daí que não é sem motivos que alguns, a exemplo do escocês W.

Preston (2017), situam Pitágoras no epicentro das origens da Ordem. Porque fugiria em demasiado ao escopo, por ora não cabe entrar em detalhes sobre o pitagorismo, mas tão somente, em caráter introdutório, registrar as similitudes deste com a Doutrina Retificada. Ademais, conforme já mencionado, não se pode perder de vista as origens de MP, o que remete à cabala ou, mais precisamente, a gematria – ramo de estudo e interpretação que, entre outras especulações, faz corresponder a cada uma das 22 letras do alfabeto hebraico, um número; os quais, mediante operações de redução ou adição teosófica[36] podem ser reduzidos a um dos algarismos entre 1 (um) e 9 (nove)[37]. Combinada à temurah e à notarikon, a gematria permitiria aos cabalistas o acesso à Revelação. É raro o texto dedicado à Doutrina Retificada, a exemplo de Boyer (2018) e Gambirasio d´Asseux (2011), que não se estenda por algumas páginas sobre a aritmosofia que, nas palavras do primeiro “[…] es claramente una matemática pero una matemática cualitativa, no cuantitativa” (op. cit., p. 50).

Fechado o parêntese, a analogia com a ciência não vai muito longe, não resiste, por exemplo, ao Evolucionismo, logo substituído pelo Criacionismo. Por ora não se defende este ou aquele ponto de vista[38], mas tão somente ressaltar as contradições que, aliás, abundam no contexto da Maçonaria; todavia, penso, desde que devidamente exploradas, as contradições têm um importante papel no âmbito do que eu percebo como um dos objetivos mais elevados da Ordem – estimular o pensamento crítico.

É assim, pois, que MP dá início a resposta à primeira questão fundamental, a origem do mundo. E ao contrário do mito bíblico (o que confirma a caracterização do TRS como um midrash), o Criador de MP, conforme se constata a seguir, não traz a Ordem[39] ao Caos:

No princípio, criou Deus o céu e a terra. A terra era um caos informe; sobre a face do abismo, a treva. E o alento de Deus revoava sobre a face das águas (Peregrino, 2006, Gn 1:1-2);

No princípio, Deus criou o céu e a terra. Ora, a terra estava vazia e vaga, as trevas cobriam o abismo, e um sopro de Deus agitava a superfície das águas (Jerusalém, 2002, Gn 1:1-2);

No princípio Deus criou o céu e a terra. E a terra era sem forma e vazia; e trevas estava sobre a face do abismo. E o espírito de Deus se movia sobre a face das águas (KJV, 2022, Gn 1:1-2).

Portanto, o caos ou a desarmonia, no universo pasquallino, é evento posterior à emanação, causa que motivará duas novas operações divinas: e emancipação e a criação.

As 3 (três) citações “do mesmo texto” (Gn 1:1-2), a exemplo do que já fiz em outras publicações, têm por objetivo chamar a atenção para as diferentes interpretações (tão habituais na Maçonaria) que eventualmente podem resultar das diferenças nos textos fontes quando o esperado era que fossem idênticos; afinal, dizer que a “terra era um caos informe” não é o mesmo que afirmar que “a terra estava vazia e vaga” e tampouco que “era sem forma e vazia”. Do mesmo modo que “o alento de Deus revoava” não equivale a “um sopro de Deus agitava” e tampouco a que “o espírito de Deus se movia”. Essa observação não é de somenos importância quando se atenta que a essência (“a alma”) da atividade maçônica está fundada na análise e na interpretação simbólica que posteriormente devem ser levadas à prática. Portanto, demasiada cautela com leituras e interpretação bíblicas, e mais ainda frente às prescrições morais apresentadas como consequentes naturais decorrentes dessas leituras.

Dentre as 3 (três) fontes acima, é razoável imaginar que MP tivesse em mãos a Bíblia KJV (King James Version), editada em 1611 como “uma edição maçônica de uma Bíblia cristã” (KJV, 2022, p. 19), sem excluir, é claro, a possibilidade de que tenha consultado a Septuaginta (séc. III a I a.C. – primeira tradução da bíblia hebraica para o grego) e/ou a Vulgata (versão em latim compilada por S. Jerônimo no séc. V e autenticada pelo Concílio de Trento no séc. XVI).

E quais foram os primeiros seres emanados e o que os distinguia?

Antes, convém chamar a atenção para o Quadro (também referido como Figura) Universal[40] – a expressão imagética da obra de MP. O Quadro, em forma de um esquema bem sintético, apresenta a criação e a organização do Universo conforme MP, bem como as trajetórias das quedas e do caminho do Recepcionado no sentido à reintegração, ao retorno à Unidade, senão ao Ponto Dentro do Círculo, o mais próximo, pois como afirma a Primeira Máxima informada ao Aprendiz: “O homem é a imagem imortal de Deus; mas quem a poderá reconhecer, se ele próprio a desfigura?” (Ritual, 2018, p.159). Todavia, o Quadro não é autoexplicativo, o que torna indispensável, em paralelo, a leitura do TRS, bem como, para aqueles que desejarem se aprofundar, as obras de algum comentarista, a exemplo do próprio Saint-Martin (2002), mas também Boyer (2018), Gambirasio d`Asseux (2021) ou Vivenza (2023), entre outros. À guisa de ilustração, o texto da AMORC[41], no Brasil uma das editoras do TRS[42], das 394 páginas, as 80 primeiras são dedicadas aos esclarecimentos básicos. Não ler implica em participar de representações (as sessões em Loja) sem conhecer o enredo e o papel dos personagens, daí que a leitura e o estudo do TRS (combinado ao Ritual), a meu juízo, deveriam constar, desde a primeira Recepção, da agenda de estudos das Lojas, bem como do plano de atividades entregue a cada Recepcionado em todos os Graus do Simbolismo.

No Quadro Universal, por exemplo, é possível “visualizar” qual o papel e o lugar destinado aos primeiros seres espirituais; nele constam um semicírculo e 4 (quatro)[43] círculos concêntricos, parcialmente também presentes na logomarca dos Elus Cohen. Na parte superior está posicionado o Semicírculo da Imensidade Divina, correspondente ao Um já referido, e também ao algarismo 1 (um), condição necessária para que os números em geral sejam submetidos às operações (reduções e adições) teosóficas. É a partir do centro deste Semicírculo que o Eterno emana os primeiros espíritos pois, para MP só existem espíritos, o corpo físico (cujo surgimento adiante será apresentado) é, de fato, matéria aparente; em outros termos, somos espíritos (centelhas divinas) revestidos.

Logo abaixo, tangenciando (ou não, dependendo da figura-fonte consultada), o Círculo da Imensidade Supra celeste abriga os

primeiros espíritos emanados do seio da Divindade [que] distinguiam-se entre si por suas virtudes, suas potências e seus nomes. Eles ocupavam a imensa circunferência divina [imensidade supra celeste] chamada vulgarmente Dominação […] é aí que todo espírito[44] superior 10, maior 8, inferior 7 e menor 3 devia agir e operar para a grande glória do Criador (Pasqually, 2022, p. 83).

As 4 (quatro) classes de espíritos (superiores, maiores, inferiores e menores) correspondem, de acordo com MP, à natureza quátripla[45] da potência divina. Portanto, na perspectiva de MP não cabe falar em Trindade, mas antes em múltiplas manifestações do Criador (único), a exemplo do que afirmam os cabalistas. Posteriormente, lembrando que o TRS é uma obra incompleta, J. B. Willermoz irá cristianizar o RER, entre outras iniciativas, mediante o estabelecimento de uma correspondência entre as potências da divindade (Pensamento, Vontade e Ação) e as Pessoas da Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo). E se de imediato vem à mente o paralelismo com a hierarquia celeste de Dionísio (2015), é o próprio MP quem aponta:

Os nomes dessas quatro classes de espíritos eram mais fortes do que os que damos vulgarmente aos querubins, serafins, arcanjos e anjos, que só foram emancipados depois, que não haviam ainda sido emanados. Ademais, esses quatro primeiros princípios de seres espirituais tinham em si, como dissemos, uma parcela da Dominação divina, uma potência superior, maior, inferior e menor, pela qual conheciam tudo o que podia existir ou estar contido nos seres espirituais que ainda não haviam saído do seio da Divindade (op. cit., p. 83)

Assim, MP não só criou agentes para operar a vontade divina (“o plano que o Criador lhes traçara”), como os distribuiu em hierarquia, no primeiro momento, como visto, para tecerem loas à divindade, mas como o ocorrido não se deu conforme o planejado, adiante os espíritos ganhariam atribuições mais específicas, vigentes, de acordo com midrash, até hoje.

Quando o Eterno emanou os espíritos, o fez para a sua glória, mas embora livres deveriam pensar e agir tal qual a divindade, pois com ela mantinham plena identidade. A liberdade era, pois, condicional, nos estritos limites da legalidade. Entretanto, apesar das semelhanças identitárias (por emanação) com o Eterno, os espíritos não eram deuses, pois Deus só há um, o Um. Deixados livres (para glorificar o Eterno), decidiram por fazer valer o seu livre-arbítrio e ousaram pensar de modo independente e distinto do que havia sido prescrito, o que os levou a incorrer em falta – o pecado da prevaricação – na primeira queda e ao castigo que se segue.

O leitor familiarizado com as Escrituras, em especial o Velho Testamento, sabe que o ciclo “pecado-castigo-perdão-nova oportunidade” é uma constante na História do povo judeu, em meio ao qual pecar corresponde à desobediência às Leis da Aliança. Dentre tantos, o mais notável dos episódios foi o desterro para a Babilônia – considerado um castigo pelas transgressões cometidas – (Finkelstein e Silberman, 2018), cujo retorno, na sua leitura mítica-teológica-apologética será a base da lenda do IV Grau do RER.

Por oportuno, um parêntese esclarecedor: no Direito brasileiro, prevaricar significa

“Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal (Brasil, 2023, Art. 319).

E quais foram os crimes cometidos pelos espíritos, que leis foram descumpridas e quais os interesses envolvidos?

O crime deles foi condenar a eternidade divina; em segundo lugar, querer limitar a onipotência divina em suas operações de criação; e, em terceiro lugar, levar seus pensamentos espirituais ao ponto de pretenderem ser criadores de causas terceiras e quartas que eles sabiam ser inatas na onipotência do Criador, a qual chamamos de quátripla essência divina (Pasqually, 2022, p. 85).

Alternativamente, em diversos momentos dos textos que abordam o RER, a prevaricação é também referida como o pecado do orgulho (hybris, arrogância, desobediência e desafio aos deuses)[46] ao qual são contrapostas as virtudes da humildade e da obediência. E desde então, há 2 (duas) naturezas espirituais: os bons (seguidores das leis) e os maus espíritos. Explicitamente não se observa, e seria mesmo estranho encontrar no TRS qualquer alusão explícita ao dualismo, seja o de Marcião[47] ou o de Manes[48], mas este é claramente subentendido em vários trechos, como o a seguir:

Como vimos que o pensamento do crime não veio dele, mas apenas de sua vontade direta, em sua qualidade de homem livre. Como efeito, como disse antes, o pensamento vem ao homem de um ser distinto dele. Se o pensamento é santo, ele provém de um espírito divino; se é mau, provém de um demônio mau. Assim todas as vontades do homem são postas em operação e em ação tão-somente de acordo com a concepção de seu pensamento (op. cit., p. 102).

Importante salientar que o crime não foi consumado, há trechos que referem ter havido apenas o pensamento, mas já em outros que foi dado um passo além – a vontade – de qualquer modo estava assim consumada a primeira queda,

Foi como punição dessa simples vontade criminosa que os primeiros espíritos foram precipitados, pela pura potência do Criador, em lugares de sujeição, de privação e de miséria impura e contrária aos seres espirituais, que eram puros e simples por sua emanação […] (op. cit., p. 85).

Até então os espíritos estavam com e se confundiam com Deus em meio ao Semicírculo da Imensidade Divina; assim, não é por acaso que em todas as Sessões Retificadas, sobre o altar do Venerável uma bíblia cristã deve estar aberta na primeira página e versículo do Evangelho de João: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus” (Jo 1:1, KJV, 2022, p. 882). E mais uma vez o contraste entre os textos, não só esclarece como levanta novas questões: “No princípio já existia a Palavra, e a Palavra se dirigia a Deus, e a Palavra era Deus” (Jo 1:1, Peregrino, 2006, p. 2545). A partir do que já foi dito é possível estabelecer uma nova conexão e paralelismo: “Vontade (potência divina) – Filho (segunda pessoa da Trindade) – Verbo (Palavra)” que, oportunamente, será explorada.

Todavia, ato contínuo à prevaricação, é então criado o Universo (o lugar de sujeição, privação, etc.) com 2 (duas) regiões separadas pelo Eixo Central do Fogo Incriado (ECFI):

  1. a Imensidade Supra celeste – destinada aos espíritos puros, que não aderiram à rebelião (prevaricação), que não caíram; e, a outra,
  2. destinada aos maus espíritos e que, por sua vez, também foi subdividida em 2 (duas):
    • a Imensidade Celeste – correspondente à Terra enquanto planeta, com todos os recursos indispensáveis à vida; e,
    • a Imensidade Terrestre – todos os habitantes, animais, vegetais e minerais.

É na Imensidade Supra celeste que se abrigam, organizados em classes, os espíritos não caídos: Superiores, Maiores, Inferiores e Menores. Em síntese: tão logo se dá a queda, rompe-se a identidade (e a plenitude do vínculo) existente entre a divindade e os espíritos prevaricadores que, então, são punidos com o confinamento no espaço delimitado pelo ECFI, mas com livre trânsito por entre as Imensidades Celeste e Terrestre.

Feitas essas considerações, para o frequentador assíduo de uma Loja RER ficará então mais claro o significado da liturgia de Abertura das Lojas:

El ternario estructura y vivifica por completo la operatividad del rito en todas sus clases. Observamos que ya desde la entrada del Venerable Maestro en la Logia Azul […] se hace referencia a la doctrina de la Reintegración […] Ese candelabro es encendido previamente por Venerable Maestro en el atrio, fuera del Templo […] se deposita al Oriente en la mesa del Venerable […] Este viaje del ternario luminoso, que une Cielo y Tierra según indican las espadas, va desde otra parte que evoca la inmensidad divina (el atrio) hasta el Oriente que representa la inmensidade supraceleste y luego al centro del Templo, alderedor del Tapiz de Logia y de las tres antorchas que representan entonces la inmensidade celeste y por último a los tres puestos de los Vigilantes y el Secretario que representan la inmensidad terrestre […] (Boyer, 2018, p. 118-9).

Conforme se observa, a analogia com o Big Bang, no que refere ao espalhamento da luz (conhecimento, sabedoria, perfeição, etc.), do seu distanciamento do ponto focal e do seu subsequente enfraquecimento, permanece e, por consequência, as dificuldades que se levantam aos que desejam fazer o caminho inverso, o da reintegração. Os olhos mais experientes e perspicazes, a partir desta simples informação, já percebem e têm melhor compreensão não só da dinâmica da Loja (como já referido páginas atrás) como do papel representado pelos personagens nas dramatizações que organizam a ritualística dos Graus.

Uma breve pausa para a análise e esclarecimento: não cabe, em absoluto, se ater aos limites e ao rigor dos desenhos que compõem o Quadro e, induzido pelas circunferências, pensar algo como uns (espíritos) estão aqui, outros lá e eles jamais se misturam. No mundo real, no cotidiano, como adiante (em outros textos da Série) será visto e cada vez ficará mais claro, os espíritos estão operando e em trânsito em meio às Imensidades. Nessa linha, Willermoz (s.d., p. 50) esclarece:

[…] assim como as quatro classes gerais se distinguem entre si pelas designações Superiores, Maiores, Inferiores e Menores, assim também cada uma destas quatro classes tem seus Superiores, Maiores, Inferiores e Menores particulares que diferem entre si em poderes distintos, virtudes e propriedades.

Fica então esclarecido um estranhamento que salta aos olhos do observador: enquanto a expressão textual (Pasqually, 2022, p. 83) associa os Espíritos Maiores ao número 8 (oito), os Inferiores ao 7 (sete), e os Menores ao 3 (três), os seus correspondentes no Quadro Universal trazem a seguinte associação: Círculo dos Espíritos Maiores = 7, Círculo dos Espíritos Inferiores = 3 e Círculo dos Espíritos Menores = 4. Ademais, há um dinamismo que, à luz das circunstâncias (operações, se no tempo ou fora da temporalidade), altera o status dos espíritos, em especial dos pares 3 – 4 e, 7 – 8.

De volta ao tema, MP dá início à resposta a uma das maiores objeções à existência de Deus: o chamado problema do mal, também conhecido como teodicéia. Ainda que nem todos os males possam ser explicados deste modo, o mal em tela é visto como causa segunda, isto é, não proveniente de Deus, mas do livre pensamento dos seres emanados, sobre os quais não poderia agir, impedindo, porque contrariaria a sua própria lei, imutável: a liberdade concedida. Esse argumento, repetido à exaustão no TRS (e outros análogos), a meu juízo, não resiste sequer e minimamente à crítica desde dentro pois, conforme visto, já na origem a liberdade deveria se dar nos estritos limites dos poderes concedidos. Ademais, considere-se as arguições promovidas desde a Antiguidade, a de Boécio[49] e o famoso Paradoxo (também referido como Trilema) de Epicuro[50], ambas, respectivamente, citadas por Estrada (2004):

Se Deus existe, de onde provém o mal? Se Deus não existe, de onde provém o bem? (p. 33).

Ou Deus não quer eliminar o mal ou não pode; ou pode, mas não quer; ou não pode e não quer; ou quer e pode. Se pode e não quer, ele é mau, o que naturalmente deveria ser incompatível com Deus. Se não quer nem pode, ele é mau e fraco e, portanto, não é Deus algum. Se pode e quer, o que só se aplica a Deus, de onde então provém o mal ou por que ele não o elimina (p. 113)?

De qualquer modo, a estratégia pasquallina não difere muito das que outras tradições lançaram mão para enfrentar um dos aspectos mais íntimos, obscuros e controversos da natureza humana: o comportamento no sentido ao mal. Conforme adiante ficará mais evidente, MP seguiu os passos de Agostinho de Hipona[51] ao

[…] fazer recair o peso do mal no homem, em antropologizar o mal. Essa é a solução mais arraigada nas filosofias cristãs, que nela encontraram o grande recurso para eximir de Deus a responsabilidade pelo problema do mal: o pecado provoca a culpa e a consequente punição. É o mal moral que gera o sofrimento e a degeneração do universo (op. cit., p. 37).

MP recorre a uma estratégia: para eximir Deus da responsabilidade direta pelo mal, talvez inspirado no demiurgo da metafísica de Platão (2011), ele responsabiliza os agentes intermediários – os espíritos caídos – que diuturnamente agem para influenciar o pensamento, a vontade e desviar os homens que, então, incorrem no pecado, no mal moral.

Ora, há um lado positivo, pois à primeira vista, por mais difícil que seja, bastaria “trabalhar” o homem (educá-lo, capacitá-lo, orientá-lo, exercitá-lo, etc.) no sentido a ouvir os bons espíritos (a razão), para fazê-lo seguir a senda do bem – é o que intenta a Maçonaria. Muito embora nem tudo, sabe-se, seja movido pela razão; ao contrário, as emoções, as circunstâncias e as oportunidades, com muito maior frequência assumem a primazia. Não fossem os elementos cristãos introduzidos por J. B. Willermoz e Louis Claude de Saint-Martin, a exemplo da Trindade, da parusia, da graça divina, da ressurreição e da Jerusalém Celeste, a delimitação, sobretudo no RER, entre Maçonaria e a Religião, seria mais clara. Mas é isso que, como visto, deliberadamente, integra e distingue o RER. Em meio a tanto, não é dado esquecer que, preso e condenado à morte, é na Filosofia, tão cara à Maçonaria, que Boécio busca o consolo, e não no Cristianismo (Boécio, 2012), sem que isto ora signifique, à priori e in totum, juízo de incompatibilidade.

O surgimento do homem. “Adão, em seu primeiro estado de glória, era o verdadeiro par do Criador” (Pasqually, 2022, p. 87), isto é: conforme visto, no princípio Adão era e estava com Deus, de quem tudo aprendeu e, à semelhança do que este havia feito com os primeiros espíritos, também a Adão concedeu uma lei, preceitos, mandamentos, potências e virtudes para então emancipá-lo com a atribuição precípua de zelar e operar no sentido à regeneração dos espíritos que, caídos, estavam contidos pelo ECFI, o Eixo Central do Fogo Incriado.

Emancipado, Adão desceu (afastou-se da luz) da Imensidade Supra celeste para as Imensidades Celeste e Terrestre. Ao ser emancipado, para dar conta das suas atribuições, não só lhe fora conferida a potência, a virtude e a força semelhantes às dos espíritos caídos, como também o “nome augusto de homem-Deus da terra universal” (Pasqually, 2022, p. 88), isto é, uma potência adicional, a quaternária (a da criação de semelhantes), o que implicou na passagem da condição de espírito menor 3 à de menor 4, dotado de um corpo glorioso (op. cit., p. 92). Finalmente, a exemplo do que já fizera com os primeiros espíritos, Adão foi deixado ao seu livre-arbítrio, sempre na expectativa de que se conduzisse segundo a vontade (leis, princípios, etc.) do Criador. Ocorre que a História se repete[52], e desta vez é Adão, agora seduzido pelos espíritos caídos, que é levado a prevaricar (isto é, intencionar a ser tal e qual Deus) por indução daqueles que deveria submeter e regenerar. Dessa vez, porém, mais do que pensar e ter vontade, Adão age, cria; todavia, a sua obra é imperfeita, envolta pelas trevas, o que, novamente aos olhos mais perspicazes, já sinaliza os rumos da continuidade dessa narrativa.

Está, então, configurada a segunda queda, cujos desdobramentos serão explorados no próximo texto, oportunidade também para esclarecer o drama representado por ocasião da Recepção ao Aprendiz.

Referências Bibliográficas

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Anexos

Fonte: http://www.latelanera.com/viteestreme/personaggio.asp?id=280

Título do artigo: Louis-Claude de SaintMartin, il filosofo incognito

Fonte: https://sociedadmartinista.blogspot.com/2018/01/elmartinistmounatradicionliteraria.html

Título do artigo: Martinismo, uma tradição literária IV – A Mesa Natural – Parte II: Os Sinais Primordiais

Notas

[1] Mestre Maçom. O autor não expressa o ponto de vista das Lojas, Obediências ou Potências das quais participa, mas tão somente exerce a sua liberdade de pensamento e expressão, daí porque muitas vezes comunica na primeira pessoa do singular. E-mail: ivan.pinheiro@ufrgs.br. Por oportuno eu agradeço a leitura da versão preliminar deste texto realizada pelo Irmão Lucas Vieira Dutra, Mestre Maçom do Quadro da ARLS Presidente Roosevelt, 75, GLESP, Oriente de São João da Boa Vista. Porto Alegre-RS, 14.06.24.

[2] Livros, artigos, mas também os “debates” que ocorrem nos “grupos de estudos” através das redes sociais.

[3] Conforme reiteradas vezes tenho dito, na ausência de informações sistematizadas sobre o universo RER no Brasil (perfil dos integrantes, origens, práticas, etc.), restrinjo-me às observações pessoais às quais adiciono as informações apuradas junto aos demais Irmãos do meu círculo de relacionamento.

[4] Corpo que, por analogia, pode ser assemelhado aos Supremos Conselhos.

[5] Daí o Moral & Dogma, um dos clássicos da literatura maçônica, onde esta última expressão carrega o seu verdadeiro sentido: doutrina ou ensino.

[6] Reitero o que tenho manifestado em outros escritos: sem dúvida que há exceções, mas a julgar pelos inúmeros estudos e pesquisas divulgadas, as exceções tão somente confirmam que toda regra tem exceção. Falta a cultura, na Maçonaria em geral, do compartilhamento de experiências no sentido a identificar o que nos textos de gestão é referido como “as melhores práticas”. Portanto, algumas afirmações não devem ser consideradas generalizações estatísticas e tampouco com intuito normativo-prescritivo; sendo antes conveniente que o leitor se pergunte: na minha Loja é assim? E se fosse, seria pior ou melhor? O que pode ser melhorado?

[7] Sobretudo, mas não exclusivamente, no caso do Primeiro Grau.

[8] Fonte: https://fdocuments.in/document/livromoraledogmaalbertpikeemportugues.html. Acesso em:

[9] Disponível em: https://maconariacrista.wixsite.com/ritoretificado. Acesso em: 09.06.24.

[10] Por exemplo, as exigências para a Recepção ao Grau IV foram concebidas em momento e frente a uma realidade distinta da contemporaneidade maçônica brasileira.

[11] Doravante, por simplicidade, a referência será apenas a Jean Baptiste de Willermoz (JBW) que, sem dúvida, foi o principal mentor e articulador do RER, mas não exclusivo, a exemplo da importância reconhecida ao trabalho de Louis-Claude de Saint-Martin.

[12] Uma iniciativa do Barão Karl G. von Hund.

[13] A grande maioria dos autores refere apenas à vertente Escocesa, com o intuito, penso, de ressaltar a sua importância, sobretudo o pensamento da cristandade, mas ao fazê-lo inadvertidamente afastam os elementos da maçonaria andersoniana também presentes no RER, ainda que em relação a alguns aspectos contra ela este se levante.

[14] Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Midrash. Acesso em: 31.05.24.

[15] Para maiores informações, entre tantos, vide Pinheiro (2017), Boyer (2018) e Gambirasio d`Asseux (2021).

[16] Grifo deste autor

[17] Determinados midrashim até podem ser pensados como produtos da análise e interpretação de um coletivo, mas não parece ser este o caso.

[18] A rigor, em termos genéricos não há como deixar de incorrer em impropriedade de expressão posto que há inúmeras bíblias; afinal, sempre caberá a pergunta: a qual bíblia se refere?

[19] Na Antiguidade, a palavra “planeta” era utilizada para informar sobre um “astro errante”; no sistema ptolomaico, com efeito, o sol, a lua e os demais astro que só posteriormente viriam a receber a denominação de planetas (como hoje conhecidos), aparentemente orbitavam em torno da Terra (ainda hoje se diz que “o sol nasce e se põe” como se efetivamente girasse em torno da Terra).

[20] Expressão de amplo espectro, por vezes denotada como hermetismo ou esoterismo e que abrange saberes da alquimia, cabala, magia, gnose, astrologia e ciências ocultas em geral. Para um estudo mais aprofundado, rigor e delimitação conceitual, vide, entre outros, Faivre (1994). E mais uma vez não se pode perder de vista o tempo e espaço da época: “oculto” não guarda necessariamente a conotação de segredo, mas antes revela um saber que demanda uma longa trajetória de estudos para ser desvelado e cuja primeira etapa é a submissão a um processo Iniciático seguido da formação escalonada em graus até que se atinja o pleno domínio, daí porque o conhecimento dos pitagóricos só era dado a saber aos mestres. Dos Aprendizes era exigido o silêncio, a condição de ouvintes, o que explica os usos e costumes de algumas Lojas. Ao contrário da acepção de que algo oculto esconde um segredo que proporciona vantagens exclusivamente pessoais, havia a certeza de que o conhecimento anda de mãos dadas com o poder, e este, se em mãos de não preparados, pode ser destrutivo. Em síntese: os saberes devem ser acompanhados de valores morais.

[21] A partir da tradução do Corpus Hermeticum de H. Trismegisto

[22] 1463 – 1494.

[23] 1575 – 1624.

[24] 1743-1803.

[25] Tzimtzum (tb. Tsimtsum e Zimzum; lit. contração) refere-se à noção cabalística Luriânica primal da Criação do mundo por Deus; nesse primeiro ato criativo Ele contraiu Sua luz infinita (Ohr Ein Sof) gerando um espaço vazio (halal – חלל) onde pudesse vir a existir Todas as coisas, pois sem esse ato, o Tzimtzum, não haveria espaço dentro do Sem Limites (Ein Sof). Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Tzimtzum. Acesso em: 20.06.21.

[26] Uma leitura aprazível e que complementa o tema é O Último Cabalista de Lisboa, R. Zimler.

[27] 1894-1966.

[28] 1879-1955.

[29] Uma categorização mais simples, enxuta e bastante usual é separar os temas do mundo físico dos do metafísico.

[30] É por esse motivo que ao longo do TRS, mas também deste texto, tem-se a impressão de que a quem se refere é um ser humano, ao invés de Deus ou os espíritos dele emanados.

[31] Como teria dito Antoine-Laurent de Lavoisier (1743-1794), para alguns, o Pai da Química Moderna: “na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”.

[32] Os mais interessados poderão ler sobre a Teoria das Cordas e Supercordas que, ao lado dos modelos que admitem a existência de multiversos no espaço, há os que admitem multiversos no tempo, o que de certo modo vai ao encontro dos sistemas de crenças sistematizados por Eliade (2018).

[33] (1) o primeiro movimento (incausado); (2) a primeira causa eficiente (a origem de tudo); e, (3) a causa necessária às demais contingentes. As 3 (três) vias guardam muitas semelhanças, e o estudo das suas nuances foge ao escopo deste texto, devendo apenas ser ressaltado que são estratégias lógicas, produtos da razão para colocar um fim à regressão ao infinito.

[34] Oportunamente farei um texto específico sobre o tema.

[35] -385 a.C., um dos mais proeminentes discípulos da Escola Pitagórica. A exemplo de muito do que envolve Pitágoras (570 – 495 a.C.), como as datas de nascimento/morte, há dúvidas se Filolau teria ou não convivido com o Mestre de Crotona, mas se não conviveu, foi aluno de outros mestres que conviveram com o fundador; não obstante, é certo que deixou textos autênticos (hoje fragmentados) que expressam a filosofia pitagórica.

[36] Uma brevíssima introdução ao tema pode ser vista em Marques e Vieira (2016).

[37] Por exemplo, o 10 (dez), por redução (1+0) corresponde à unidade (1); o 0 (zero) não existe nas elaborações pasqualinas. Mas é claro que toda esta elaboração só se aplica ao sistema decimal …

[38] Ambas, entre tantas outras, são Teorias que têm a vida (a aceitação assegurada) somente e enquanto resistirem aos testes aos quais são permanentemente submetidas, daí que não é próprio no campo científico produzir afirmativas categóricas, com ânimo definitivo.

[39] Que, a propósito, significa cosmo.

[40] Vide anexos.

[41] Ordem Rosacruz, Grande Loja da Jurisdição de Língua Portuguesa.

[42] Além do encarte que acompanha a publicação, à p. 306 encontra-se o Quadro Universal.

[43] O número de círculos pode variar conforme se considere ou não os traços internos e externos delimitadores de cada circunferência.

[44] Ora MP os denomina como Princípios, mas também como os Primeiros Líderes.

[45] O 4 (quatro) em forma aparente de 3 (três); em alguns textos a condição é apresentada como quádrupla.

[46] Impossível não perceber a similaridade com o mito de Prometeu Acorrentado, clássico de Ésquilo (525 – 456 a.C.).

[47] Marcião de Sinope, 85 – 160, criador da escola de pensamento conhecida como marcionismo, posteriormente considerada herege.

[48] 216 – 276, criador do maniqueísmo, posteriormente considerado uma heresia.

[49] 480 – 524. Sobre Boécio e Maçonaria vide Pinheiro (2023).

[50] 341 – 270 a.C.

[51] 354 – 430.

[52] O que será um padrão, tanto no TRS quanto no que se observa na Bíblia, sobretudo no Velho Testamento; assim, e aos poucos, MP vai caracterizando a natureza, o modo de ser humano.

[53] Os originais datam, aproximadamente, da segunda década do séc. XIX.