Ivan A. Pinheiro[1]

Este texto foi concebido para ser lido e compreendido em si mesmo; todavia, o seu entendimento, sobretudo para os que não estão familiarizados com o Regime (Rito) Escocês Retificado, será enriquecido se contextualizado a partir dos antecedentes desta série, em especial Pinheiro (2024a).
Em síntese muito resumida, e sem perder de vista que o TRS – Tratado da Reintegração dos Seres (Pasqually, 2022) é um midrash em meio ao qual o autor se ocupa em responder as 3 (três) grandes questões que acompanham a humanidade[2], em Pinheiro (2024a) foi apresentada a cosmogênese e o que, por analogia, ora se denomina de antropogênese pasquallinas. Após a expansão pleromática e a criação (por emanação) dos primeiros seres espirituais (no que se aproxima de outras tradições metafísicas, a exemplo do gnosticismo cátaro), configura-se o que passa a ser denominado de Imensidade Divina, lugar aonde estes seres (em outras tradições referidos como éons) mantêm plena identidade, praticamente se confundem com o Criador que, entretanto, com a expansão passa a ser caracterizado a partir de 4 (quatro) essências espirituais e 3 (três) modalidades de expressão: espírito superior denário – 10; espírito maior octonário – 8; espírito inferior setenário – 7; espírito menor ternário – 3; o pensamento; a vontade; e, a ação, respectivamente. Dois pontos: 1) em que pese o insistente discurso acerca da liberdade conferida aos seres espirituais, estes, efetivamente, estavam presos aos desígnios do Criador pois, em expressão mais simples, constituíam o seu staff: só poderiam agir nos estritos limites (leis, preceitos e mandamentos) prescritos pela divindade; constatação que, per se, tem dado azo a grandes reflexões em razão do contraste com o senso comum que envolve e nos afeta no cotidiano o construto “liberdade”; ademais, 2) a emanação traz em si mesma a primeira fissura na Unidade divina que, se até então imageticamente era representada por ponto dentro do círculo, passa a corresponder a uma área – a Imensidade Divina (sem fim, sem limites, eterna).
Entretanto, nem todos corresponderam às expectativas, alguns espíritos ousaram pensar diferente, contrariando o que havia sido determinado, na expressão mais usual diz-se que prevaricaram; tem-se, desde então, a Primeira Queda pois, como a seguir se constata, os espíritos são precipitados em um novo “ambiente”. Ato contínuo, para que os espíritos caídos (referidos como maus, mas também como perversos) não influenciassem os bons (não caídos) a divindade toma 2 (duas) iniciativas: (i) – cria o Universo (desdobrado em 3 (três) partes) para separar e conter os maus espíritos; e, (ii) mediante nova emanação, cria e emancipa um novo espírito, o Menor 4 – Adão (Kadmon), a quem caberia
[…] tão somente dominar sobre todos os seres emanados e emancipados antes dele. Esse menor foi emanado somente depois que este universo foi formado pela onipotência divina para ser o asilo dos primeiros espíritos perversos e o limite de suas operações maldosas […] O homem tinha as mesmas virtudes e as mesmas potências que os primeiros espíritos, embora tenha sido emanado apenas depois deles. Ele se tornou o superior e o mais velho deles por seu estado de glória e pela força de comando que ele recebeu do Criador […] (Pasqually, 2022, p. 86).
E para o exercício das suas funções
[…] recebeu dele [o Criador] o nome augusto de homem-Deus da terra universal, porque dele deveria sair uma posteridade de Deus e não uma posteridade carnal […] Tendo o Criador visto sua criatura satisfeita com a virtude, a força e a potência inatas […] abandonoua ao seu livre-arbítrio, tendo-a emancipado numa forma distinta de sua imensidade divina com esta liberdade, a fim de que sua criatura tivesse fruição particular e pessoal, presente e futura, por uma eternidade impassível, contanto, porém, que ela se conduzisse segundo a vontade do Criador (op. cit., p. 88).
Também estes aspectos (as iniciativas do Criador) têm motivado inúmeros debates no campo filosófico (Corrêa, 2020): por quê, ao invés de confinar o mal, Deus não o eliminou em definitivo e desde a sua primeira manifestação? Seria o mal uma parte inerente à divindade (e por extensão – emanação – aos seres espirituais) ou uma evidência da imperfeição da sua obra? Pasqually, reiteradas vezes, afirma que não; todavia, não há como fugir ao debate, senão porque a Maçonaria não se confunde com o ambiente religioso (dogmático), porque, e não se perca de vista, que o TRS é tão e somente mais um midrash, uma cosmovisão pessoal no sentido a responder as já inúmeras vezes citadas questões fundamentais, portanto, não pode ficar imune à reflexão crítica. Isso posto, enquanto a crítica na seara dogmática e confessional é vista como heresia a ser afastada, no ambiente aberto à livre reflexão ela deve ser estimulada porque salutar ao desenvolvimento integral do ser humano, a começar pela cognição.
A via do questionamento é larga e não tem fim, daí que: por que, ao invés de solucionar o problema (a prevaricação) pela via direta, afinal a divindade é onipotente, onipresente e onisciente, Deus o “terceirizou” para Adão Kadmon? E se a emanação (expansão) por si mesma trouxe fragilidade à Unidade primordial, na sequência e inequivocamente ela instituiu a dupla dualidade: de natureza (bem vs mal); e, de localização (Imensidade Divina vs Universo criado). Entretanto, é somente essa, a dualidade, que pela via da alteridade conduz à completude ínsita à mônada primordial e andrógina, e diferente não poderia ser, pois como então explicar as diversidades complementares que possibilitam a vida e se identificam com a própria natureza? Assim, ao tomar distanciamento do mal, Deus não teria perdido contato com a Sophia, a Sabedoria caracterizada a partir da união dos opostos, das antinomias inerentes à Unidade primordial, a saber: bem-mal, macho-fêmea, luz-sombra, quente-frio, vidamorte, etc., e tudo em favor de um ideal de Perfeição unilateral (somente o bem)? Pasqually traz, assim, e logo de pronto na sua obra, uma das principais narrativas da Humanidade: o eterno embate entre o bem e o mal, e em meio a tanto a crença (largamente explorada pelas religiões e ideologias, não raro de forma velada) em um ideal de perfeição que, em tese, em algum ponto na linha do tempo poderá ser atingido, senão no plano terrestre, no transcendente quando chegado o final dos tempos. Não parece ser à toa que, nesse contexto, o número 2 (dois), na Maçonaria, alude à dúvida e à confusão; contudo, estas podem ser superadas, por exemplo, pelo 3 (três) ou também pelo 4 (quatro).
Um breve parêntese: conforme se observa, já desde as primeiras páginas o TRS oferece um rol expressivo de temas ao debate (liberdade, livre-arbítrio[3], sabedoria, alteridade, teodiceia, etc.) que, porque pertinentes à doutrina do RER poderiam (quiçá mesmo devessem) preencher as pautas das sessões de Instrução desde o Primeiro Grau das Lojas Azuis. Destarte, s.m.j., é completamente destituída de sentido a agenda aberta e permanentemente constituída por perguntas-respostas de oportunidade, quando não ao acaso e reiteradamente repetidas em sessões contíguas[4]. E é importante esclarecer que não se está a sugerir que a Loja reunida seja um espaço de elevadas (ou profundas) discussões filosóficas, muito embora e de acordo com a Constituição do Grande Oriente do Brasil (GOB, 2023):
Art. 24. São deveres da Loja:
[…]
III – dedicar todo empenho a instrução e ao aperfeiçoamento moral e intelectual dos membros de seu Quadro, realizando sessões de instrução sobre História, Legislação, Simbologia e Filosofia maçônicas, sem prejuízo de outros temas […];
mas, antes, oportunizar e estimular, sob a orientação das Luzes5, momentos voltados para o exercício do raciocínio analítico-crítico que perpassa os diversos níveis de leitura e interpretação, por exemplo, das Escrituras – centrais ao RER -, como visto, entre tantos, em Pinheiro (2023), mas também nos textos anteriores desta série. Ademais, o raciocínio analítico combinado ao simbolismo abstrato, tão característicos à Maçonaria, se constitui como uma alavanca para alcançar as exigências do mercado de trabalho contemporâneo, altamente competitivo (Pinheiro, 2021, 2020), e amplia os horizontes da visão compreensiva acerca da realidade social, política e econômica que a todos circunscreve; em outros termos: contribui para o pleno exercício da cidadania, o que parece ser tão necessário nos dias de hoje. Por oportuno, é importante esclarecer que a leitura crítica não carrega o propósito de desconstruir ou reinterpretar os elementos doutrinários fundamentais que embasam as ritualísticas, e tampouco enxertá-las com outras tradições, mas antes, sem se desviar do essencial, levar ao limite as possibilidades de interpretação simbólica e suas consequências na realidade concreta dos cotidianos.
Concluído o parêntese: sucede à primeira, a Segunda Queda, pois o comportamento dos espíritos perversos tornará a se repetir tendo, agora, Adão Kadmon como protagonista: mas mais do que pensar de modo distinto e contrariar o Criador, induzido pelos maus espíritos ele foi além (do que houveram os primeiros) e agiu, o que elevou a gravidade do seu crime e, por consequência, o castigo, em realidade apresentado como justiça divina (mais um tema à discussão):
Mas, longe de cumprir os desígnios do Criador, o primeiro homem deixou-se seduzir pelas insinuações de seus inimigos e pelo falso plano de operação aparentemente divina que eles lhe traçaram. Os espíritos demoníacos diziam-lhe: “Adão, tens inato em ti o verbo de criação em todo gênero, és possuidor de todos os valores, pesos, números e medidas. Por que não operas a potência de criação divina que é inata em ti? Não ignoramos que todo ser criado te é submisso: opera, então, criaturas, pois és criador. Opera diante dos que estão fora de ti! Todos eles renderão justiça à glória que te é devida” (Pasqually, 2022, p. 98).
Todavia, os resultados não corresponderam às expectativas:
Ele [Adão Kadmon] esperava ter o mesmo êxito que o Criador eterno, mas ficou muito surpreso, do mesmo modo que o demônio, quando, em lugar de uma forma gloriosa, extraiu de sua operação apenas uma forma tenebrosa e totalmente oposta à sua. Ele criou, de fato, apenas uma forma de matéria, em vez de criar uma pura e gloriosa […] Ele refletiu sobre o fruto iníquo que dela resultou e viu que havia operado a criação de sua própria prisão […] não era outra coisa senão a mudança da forma gloriosa em forma material e passiva […] sujeita à corrupção (op. cit., p. 98-9).
É de se notar que não só Adão Kadmon reproduz o comportamento dos espíritos perversos, como também o Criador adota solução análoga à aplicada ao problema anterior (assim, aos poucos, Pasqually caracteriza os “modelos” de comportamento que sucedem ao longo do TRS): mediante mais um decreto ele afasta o novo espírito caído e agora “em forma material, passiva e sujeita à corrupção” para uma distância ainda maior: situando-o na Imensidade Terrestre, a mais interior das 3 (três) divisões que compõem o Universo criado, abaixo da Imensidade Supraceleste e da Imensidade Celeste. Em outros termos, mais uma vez o mal não é eliminado, mas antes escamoteado, portanto, sempre à espreita. E se os espíritos caídos foram confinados no amplo espaço do Universo criado, o novo Adão, caído, assim como a sua descendência, está confinado: primeiro, pelo seu próprio corpo; mas também pelas adversidades em meio às Imensidades Celeste e Terrestre: trabalho (para sobreviver), dores (inclusive de parto), sofrimento, corrupção da matéria (envelhecimento, doenças, etc.), etc. Não é o que prescreve Gênesis 3:16-19?
Nesse momento, grosso modo, tem-se: o Criador, os espíritos puros (não caídos), os espíritos impuros (perversos, não caídos) e o Menor 4 transmutado em matéria, o homem. Tem-se assim, muito sucintamente, o cenário, os personagens e a narrativa básica que, conjuntamente, doravante não só organizarão o sentido à vida como inauguram a expectativa adventista para o final dos tempos. Consumada a 2ª Queda, o objetivo da posteridade de Adão será reintegrar-se ao corpo glorioso, isto é, trilhar o caminho inverso (de retorno) – da Imensidade Terrestre à Supraceleste, aonde originalmente estava situado o Menor 4: frente ao denário. Desde que Adão reconheceu e revelou arrependimento pela falta cometida, a vida, ou melhor, a dupla vida (temporal e espiritual) da sua posteridade deveria ser orientada pela retidão (às leis, preceitos e mandamentos) e pela adoração, tal como originalmente previsto. Assim, a despeito da Queda, Adão e a sua descendência não foram abandonados por Deus que, além de contar com o séquito de auxiliares (os bons espíritos) enviará os “homens de exceção”[5]
para orientá-los e auxiliá-los na jornada ascendente, papel que, na Maçonaria, caberia aos Mestres dotados de sabedoria e modelares pelas condutas (Pinheiro, 2024b). Os bons espíritos, na cristandade institucionalizada, são analogados à hierarquia celeste – serafins, querubins, anjos e outros (Dionísio, 2015). De outro lado, para cada entidade da hierarquia celeste existe a sua contraparte, porém caída, ambas coabitando a Imensidade Supraceleste, desde onde e diuturnamente não poupam esforços para induzir e conduzir a posteridade de Adão – leia-se: a humanidade – cada qual de acordo com as suas orientações. A Queda, para Adão, implicou na perda da conexão instantânea (de pensamento) que até então mantinha com a divindade:
A tristeza que Adão sentiu de ter se tornado pensante e pensativo […] e foi daí que Adão entendeu mais fortemente a grande consequência de sua prevaricação […] pelo desassossego, pela agitação e pelos diferentes combates […] ele foi fechado em seu segundo corpo, de matéria terrestre. Nesse estado, ele fez suas lamentações ao Criador, reclamou a clemência[6] […] (Pasqually, op. cit., p. 118).
Ou seja, a partir de então, em meio às dúvidas, ele terá que fazer escolhas morais no curso da sua vida temporal. Daí que atingir o objetivo – a reintegração – não será um empreendimento facilitado, ao contrário, sofrido e arriscado, um embate permanente que exigirá perseverança, temperança e força, entre outras virtudes sem as quais será grande a chance de sucumbir às paixões e aderir aos vícios. Ademais, por oportuno e também porque necessário ao que se segue de imediato, ora introduzo temas aos quais oportunamente (outros textos) retornarei à análise não só em razão da elevada carga simbólica no contexto retificado, mas também e sobretudo pela leitura que oportuniza na perspectiva do chamado (em oposição ao ambiente maçônico) mundo profano, aonde não se pode ignorar a reverberação:
Adão satisfez a vontade divina, admitiu com grande sinceridade a obra de seu pensamento maldito […] a qual devia ligá-lo com o fruto do seu trabalho por um tempo imemorial […] dando a esse fruto de sua prevaricação o nome de Huva, ou Homaça, que significa carne de minha carne, osso de meu osso, e obra de minha operação, concebida e exercida pela obra de minhas mãos maculadas (op. cit., p.118-9);
Adão e Eva […] engendraram a forma corporal de seu primeiro filho, que chamaram de Caim, que quer dizer filho da minha dor […] (op. cit., p. 126);
Mas essa resignação do primeiro pai foi apenas aparente, ele não teve a perseverança que jurara; em vez disso, concebeu com sua companheira Homaça, ou Eva, uma posteridade fêmea, que eles chamaram conjuntamente Cani 11, que quer dizer filha da confusão […]
(op. cit., p. 128).
Em tempo: ao leitor que trilha a Retificação essas brevíssimas citações devem ter-lhe despertado insights sobre elementos presentes na ritualística de todos os Graus Simbólicos. Todavia, para a melhor compreensão dos mecanismos que governam a trajetória ascendente, bem como a ação cotidiana dos espíritos maus vs bons será necessária a introdução, seguida da reflexão, de novos elementos, a exemplo da concepção tripartite do Homem – corpo, alma e espírito – e da perspectiva adventistaescatológica cristã, o que exigirá algumas páginas adicionais, razão pela qual serão deixados para outra oportunidade, provavelmente o texto subsequente a este. Assim, por opção, e também por considerar que as informações básicas já estão postas, encaminho para o encerramento com um breve comentário sobre algumas das provas, mais especificamente as viagens, às quais são submetidos os que Iniciam na Ordem Retificada pela via da Recepção ao Grau de Aprendiz.
Habituado a presença dos tantos círculos que povoam o Quadro Universal como representações do Universo e dos “planetas” (Pasqually, op. cit., p. 306; Pinheiro, 2024a, anexos), o leitor chega a estranhar que a Imensidade Terrestre seja representada na forma de um triângulo, com efeito: “Para se convencer disso deve-se observar que Adão, pelos três princípios espirituosos que compõem sua forma de matéria aparente e pelas proporções que nela reinam, é a exata figura do templo geral terrestre, que sabemos ser um triângulo equilátero […]” (Pasqually, op. cit., p. 143). Portanto, o triângulo ora referido e constituído pelos princípios espirituosos é a representação de Adão (o Menor 4, caído) e/ou, por extensão, da humanidade, é ele pois que deve ser reintegrado, ascender da Imensidade Terrestre à Supraceleste (paraíso). Ademais, cada uma das 3 (três) essências espirituosas corresponde, efetivamente, a uma combinação das demais, assim, a denominação (se enxofre, sal ou mercúrio) guarda relação com o elemento de maior proporção – nada surpreendente pois tudo tem a mesma origem, o Ponto Primordial, analogado ao Big Bang referido em Pinheiro (2024a).
Essa figura [o triângulo invertido – nabla], portanto, não representa outra coisa senão as três essências espirituosas que cooperaram na forma geral terrestre, cuja representação é esta [▼]. O ângulo inferior representa o mercúrio, o ângulo voltado para o sul representa o enxofre e o ângulo voltado para o norte representa o sal. Ora, foi tão-somente a junção do princípio espiritual, ou do número quaternário, com essas três essências que lhes deu uma ligação íntima e fez com que tomassem uma só figura e uma só forma, que representa verdadeiramente o corpo geral terrestre, dividido nestas três partes: Oeste, Norte e Sul (Pasqually, op. cit., p. 178).
Finalmente, é importante, desde já, ter em conta como se deu a tripartição da Imensidade Terrestre:
[…] tendo se tornado homem de matéria por sua prevaricação, ele teve, entre sua posteridade carnal, três filhos machos: Caim, Abel e Seth. Abel, tendo vindo unicamente por ordem do Criador e para uma simples manifestação espiritual divina, não devia usufruir nenhuma porção de matéria […] divisão da terra, que só devia ser distribuída à posteridade dos homens provindos dos sentidos da matéria […] Assim, Adão a dividiu em seu inteiro conteúdo de regiões, como se segue: o Oeste para Adão, o Sul para Caim e o Norte para Seth (op. cit., p. 183).
Depois de (mais uma vez) observar que Pasqually “es muy avaro en reseñas precisas sobre los roles respectivos de los tres princípios, así como sobre las relaciones entre princípios y elementos” Mazet (2013, p. 137) cita, então, Le Forestier[7], cujo texto, ainda que longo, merece ser lido na íntegra:
Quizás os haya sorprendido oír hablar siempre de tres elementos, en lugar de cuatro, como se admite vulgarmente para la formación y composición de los cuerpos. Efectivamente solo hay tres, al igual que solamente hay tres principios fundamentales, que denominamos filosóficamente Azufre, Sal y Mercurio, o fuego, agua y tierra. No puede haber más, porque la ley ternaria y sagrada, que presidió su creación, les imprimió su próprio número, para ser el sello indeleble de su poder y voluntad. El aire, que algunos sitúan entre los elementos, no es en absoluto uno de ellos. Les es infinitamente superior por naturaliza. Es él que, por una saludable reación, conserva la vida a todo ser vivente, vegetal o animal, al igual que acelera la disolución de estos, cuando se ven privados de su principio vital. En suma, aunque penetre em todos los cuerpos, no se mezcla en absoluto con los elementos de los que están compuestos, y no constituye en modo alguno la forma de estos cuerpos (Mazet, 2013, p. 138).
Por oportuno, conforme já manifestei em outros textos, e bem como visto acima, Mazet é mais um que se soma àqueles que percebem as insuficiências, a falta de clareza e até mesmo as ambiguidades e contradições presentes no TRS. Nesses casos é preciso, no domínio da plausibilidade, recorrer à interpretação dos estudiosos (como já recorri a J. B. Willermoz); assim, a Figura 1, a seguir, resume a equivalência apresentada por Mazet:
Figura 1: Equivalência entre as “essências espirituosas” e os elementos constitutivos do corpo
Fonte: Mazet, 2013, p. 141
A equivalência proposta por Mazet combinada à forma do corpo geral terrestre possibilita o esboço da Figura 2:
Figura 2: A disposição dos elementos estruturantes da matéria aparente no plano da Imensidade Terrestre
O leitor familiarizado com a ritualística da Recepção ao I Grau no RER já terá reconhecido o cenário da dramatização das 3 (três) viagens do candidato. A análise e a interpretação simbólica podem ser realizadas, por exemplo, com o auxílio da ferramenta MGA&IS – Modelo Geral de Análise & Interpretação Simbólica (Pinheiro, 2023). Antecipo: são amplas as considerações possíveis e, penso, que deveria ter as suas primeiras considerações apresentadas já na sessão subsequente à Recepção. Para além da análise instrumental, auxiliada pelo MGA&IS, exercícios de hermenêutica e exegese elevariam sobremodo o conhecimento não apenas sobre o mundo sensível e aplicado à realidade contemporânea, mas também acerca da cosmovisão (dos motivos, interesses, impactos, etc.) adotada pelos fundadores do Regime.
A Figura 2 pode ainda ser enriquecida considerando a distribuição territorial realizada por Adão (vide acima: “o Oeste para Adão, o Sul para Caim e o Norte para Seth”), o que, a partir dos modelos de comportamento desses personagens na narrativa mítica, ancoradas nas bíblias cristãs, abre novas linhas para a interpretação simbólica, não apenas no contexto da ritualística do I, mas também dos que circunscrevem o II e o III Graus. É de se esperar que a cada Grau ascendido, o Iniciado tenha adquirido condições de ressignificar, complementando e ampliando, os entendimentos até então adquiridos.
O que poucos atentam é que o símbolo do objetivo final, a reintegração, desde o primeiro momento já está presente no Templo, e é tarefa indelegável do Quadro de Mestres, sobretudo das Luzes, orientar os caminhantes, Aprendizes e Companheiros, na elaboração e entendimento da narrativa que vincula e aproxima o primeiro (▼) ao segundo (∆). A Figura 3, a seguir, talvez possa ser fonte de inspiração para algumas reflexões:
Figura 3: Estrela de Davi
Todavia, para tanto – a compreensão da doutrina (sua história e formação) e como ela se conecta às ritualísticas -, é necessário se debruçar, “perseverar” e mesmo
“sofrer” com a leitura do TRS, por isto surpreende escutar a recomendação de que esta obra não deve ser lida já desde o primeiro ingresso no simbolismo retificado. São posicionamentos como esse que sustém uma agenda de instruções e estudos afastados da essência do simbolismo conectada à doutrina e, quando não errática, pautada exclusivamente em aspectos históricos igualmente isolados quando não de somenos importância (chapéus, espadas, exaltação de biografias, etc.)[8]. As carências serão mais claramente evidenciadas a partir da Recepção ao IV Grau, marca que, então, não significará nada mais nada menos do que mais um avental para os colecionadores, denominados “maçons de arribação” (Pinheiro, 2024c). Em outra oportunidade já comentei que ser Recepcionado aos 3 (três) primeiros Graus, mas não ao 4º, era o equivalente a ler um livro dos quais as últimas páginas foram eliminadas, mas cabe também afirmar que ser Recepcionado ao 4º sem ter o pleno conhecimento dos antecedentes é como assistir apenas ao último capítulo da novela. Qual o sentido de ler o último capítulo de Anna Kariênina (Tolstói[9], 2017) sem, antes, ter sido envolvido pelo ambiente, mergulhado a fundo na psique dos personagens e na trama na qual estiveram envolvidos? Nesse caso, há sentido em referir a significado e entendimento?
Os elementos trazidos acima podem ser considerados como sendo apenas a ponta do enorme iceberg que representa o TRS no universo da interpretação simbólica cuja aplicação se estende por vários campos: psicologia comportamental (ética, moral), sociologia (relações humanas, indução, sedução), política (jogos de poder) e outros. Mas é preciso atentar para o fato de que, por exemplo, no que refere ao I Grau, não basta ler as primeiras páginas, pois a estratégia narrativa de Pasqually “vai-e-volta”; assim, a introdução do estudo da aritmosofia é também um convite à releitura devido as novas perspectivas que se abrem ao que já havia sido lido.
Por fim, reitero que toda a minha produção intelectual, a exemplo desta Série, é uma expressão do entendimento pessoal e produto de leituras, observações e conversas mantidas com os Irmãos de Ordem. Assim, em primeiro lugar, de modo algum e a partir dos textos eu pretendo me colocar como arauto da expressão da verdade e tampouco como intérprete do Regime; em segundo, o acervo já produzido sempre esteve aberto à crítica fundamentada e no sentido a esclarecer e contribuir para a elevação, em todos os aspectos, da Comunidade Retificada. O meu intento é, antes, compartilhar bibliografias, informações e provocar reflexões catalisadoras de novos empreendimentos e autores dedicados à doutrina, à ritualística e à liturgia Retificadas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CORRÊA, Ivan. Jung e a Sofia – imagens arquetípicas da Eterna Sabedoria. Curitiba: Appris, 2020. ISBN 978-85-473-4256-2.
DIONÍSIO, Pseudo-Aeropagita. A Hierarquia Celeste. São Paulo: Polar, 2015. ISBN 978-85-86775-19-2.
GOB. Constituição do Grande Oriente do Brasil – vade mecum versão digital de 29.06.23[10].
MAZET, Edmond. La concepción de la matéria en Martines de Pasqually y en el Régimen Escocés & Rectificado. In: G.E.I.M.M.E. De la reintegración de la matéria y de los cuerpos gloriosos. Madrid: Manakel, 2013, p. 125-189.
PASQUALLY, Martines de. Tratado da Reintegração dos Seres – em sua primeira propriedade, virtude e potência espiritual divina. Organização e apresentação de Robert Amadou. 3ª Ed. Curitiba-PR: AMORC – Ordem Rosacruz, 2022. ISBN 978-85-317-0188-7.
PINHEIRO, Ivan A. RER – Cadernos de Estudos: VI. Disponível em: https://bibliot3ca.com/2024/06/15/rer–cadernos–de–estudos–vi/. Acesso em: 21.07.24a.
______ . Mestres do Simbolismo ou “Mestres Simbólicos”? Disponível em: https://www.freemason.pt/mestres-do-simbolismo-ou-mestressimbolicos/?utm_source=mailpoet&utm_medium=email&utm_campaign=publicamos-mais-um-artigo-newsletter-post-title-freemason-pt_2, em https://bibliot3ca.com/mestres-do-simbolismo-ou-mestres-simbolicos/ e também em https://opontodentrodocirculo.wordpress.com/2023/07/11/mestres-do-simbolismo-oumestres-simbolicos/. Acesso em: 21.07.24b.
______ . RER – Cadernos de Estudos: VII. Disponível em: https://bibliot3ca.com/rercadernos–de–estudos–vii/. Acesso em: 21.07.24c.
______ . Modelo Geral de Análise & Interpretação Simbólica – MGA&IS. Disponível em: https://bibliot3ca.com/15764–2/. Acesso em: 21.07.23.
______ . Maçonaria: o problema é a evasão ou o processo de admissão? A Trolha, n. 411, janeiro 2021, II e última Parte, p. 21-8. Londrina, PR.
______ . Maçonaria: o problema é a evasão ou o processo de admissão? A Trolha, n. 410, dezembro 2020, I Parte, 18-23. Londrina, PR.
TOLSTÓI, Liev. Anna Kariênina. São Paulo: Cia. das Letras, 2017. ISBN 978-85-3592922-5.
Notas
[1] Mestre Maçom. O autor não expressa o ponto de vista das Lojas, Obediências ou Potências das quais participa, mas tão somente exerce a sua liberdade de pensamento e expressão, daí porque muitas vezes comunica na primeira pessoa do singular. E-mail: ivan.pinheiro@ufrgs.br. Por oportuno eu agradeço a leitura sempre arguta da versão preliminar deste texto realizada pelo Irmão Lucas Vieira Dutra, Mestre Maçom do Quadro da ARLS Presidente Roosevelt, 75, GLESP, Oriente de São João da Boa Vista. Porto Alegre-RS, 21.07.24.
[2] (1) de onde viemos – das origens -? (2) para aonde vamos – do final dos tempos -? (3) e qual o sentido da vida – a razão de ser, existir -?
[3] Que para os mais exigentes não podem ser consideradas expressões sinônimas.
[4] A frequência irregular e o espaçamento de 15 dias entre sessões, por vezes intercaladas por outros eventos, paralelamente a outras práticas, ou a ausência das mesmas, contribuem sobremodo para o esquecimento. 5 A propósito, tanto constitucional quanto regimentalmente, ensinar e orientar são funções precípuas das Luzes, como também dos Mestres em geral no que tange à matéria doutrinária ou ritualística.
[5] Tema para a continuidade desta Série – os futuros Cadernos de Estudos.
[6] Para os Iniciados na Ordem, aos poucos fica claro a origem de alguns termos próprios das ritualísticas do RER.
[7] De acordo com Mazet, disponível em La Masonería Ocultista y Templaria en el siglo XVIII.
[8] Reiteradas vezes tenho manifestado a importância de conhecer o processo histórico em meio ao qual se deu a formação dos Ritos, bem como que o seu estudo se faça de forma comparada, permitindo contrastar e salientar as diferenças (motivações, circunstâncias, objetivos, estratégias, etc.) entre eles; todavia, vejo a história como disciplina propedêutica, o que a afasta como objeto principal de estudo, aquele que deve(ria) ocupar a maior parcela do tempo dedicado.
[9] Liev Tolstói (1828-1910) escreveu Anna Kariênina entre 1873 e 1877, e que originalmente teve os primeiros capítulos, em forma de novela, publicados a partir de 1875 na revista Mensageiro Russo; somente após os capítulos foram reunidos e transformados em um só texto então identificado como romance.
[10] Porque circunstancialmente impedido de acessar a homepage do GOB, bem como o detalhamento referente à legislação, por ora declino da informação sobre o respectivo endereço digital.
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