Bibliot3ca FERNANDO PESSOA

E-Mail: revista.bibliot3ca@gmail.com – Bibliotecário- J. Filardo

Sobre as Lojas (Maçônicas) de Estudos e Pesquisas – VIII

Ivan A. Pinheiro[1]

Embora cada número desta Série – Sobre as Lojas (Maçônicas) de Estudos e Pesquisas (LEP) – contenha em si mesmo princípio, meio e fim, há um veio que ao conectá-los amplia a compreensão dos antecedentes, dos consequentes, constituindo e organizando o conjunto, a unidade maior, o foco – a LEP – razão pela qual sugere-se a leitura dos números anteriores já publicados na íntegra pelo blogBibliot3ca Fernando Pessoa[2]  e, gradualmente, têm sido pelo “Freemason[3], pois não caberia, a cada número, repetir assuntos já desenvolvidos.

No texto inaugural desta Série (Pinheiro, 2025) foi apresentado um breve histórico do surgimento das LEP no Brasil; oportunidade em que chamou a atenção o fato de elas terem aparecido na paisagem maçônica nacional por iniciativa única e exclusivamente pessoal, idealizadas por um ou poucos líderes que então reuniram seguidores, não sem, por vezes, enfrentar as resistências oferecidas por grupos internos às Potências que as jurisdicionavam – o chamado “fogo amigo”. Como derivada, a surpresa de as Potências até aquela oportunidade não terem percebido a relevância do papel dessas espécies do gênero Loja no ecossistema maçônico; e se desde então tiveram aclarado o papel que estas podem desempenhar, e há indícios de que sim, também não restam dúvidas de que há ainda muito para ser explorado, sendo o que se pretende demonstrar a seguir.

Nas publicações que se sucederam vários temas foram desenvolvidos e trazidos à reflexão: desde o entendimento que, no contexto, é atribuído ao Estudo e à Pesquisa[4], como estes construtos se revelam, se organizam e dialogam no corpo de uma produção escrita[5], até o perfil (idealizado) de um candidato a (ou já integrante) de uma LEP. Em meio a tanto, uma preocupação permanente: acentuar que, se há semelhanças, há também muitas e grandes diferenças entre o que se aplica às Lojas Simbólicas (LS) e as expectativas quando no foco são colocadas as LEP.

O tema que se segue abrange reflexões complementares[6] e a fundação, a constituição formal de uma LEP, é também uma oportunidade para ressaltar (mais) uma prática que, se não é comum, igualmente não é incomum em meio às LS, mas que impensável (e na maioria das vezes irrealizável) no contexto das LEP: muitas LS surgem a partir de dissidências no seio da Loja precursora (também referida como Loja-mãe). Resulta que, salvo melhor juízo, se de um lado as Potências anualmente comemoram as estatísticas que apontam para o aumento no número de Lojas jurisdicionadas, de outro, não só o problema-raiz permanece intocado, em estado latente, potência que a qualquer momento pode ser convertida em ato – gerar uma nova crise -, como também, pelo menos nos primeiros momentos, é provável que ao invés de uma se tenha 2 (duas) Lojas com problemas (operacionais, financeiros, etc.). Por certo que o que um dia se verificou no âmbito coletivo (Loja) teve início no passado, no plano individual, provavelmente reiteradas vezes e com diferentes Irmãos: ao invés da averiguação a fundo das questões e dos problemas que comprometeram (e quiçá ainda comprometam) o “clima organizacional” e do seu subsequente equacionamento, a troca de Loja é, de regra, a opção sugerida (pelos Mestres mais experientes) aos insatisfeitos, evitando assim os processos internos que, independentemente dos aspectos saneadores e salutares que poderiam trazer à Loja, são então deixados à margem, pois estes (processos), de outro modo, também poderiam comprometer o “clima”. “Escolha de Sofia”? Difícil afirmar, mas de qualquer modo, esses encaminhamentos parecem estranhos aos ensinamentos maçônicos e surpreendem quando, pela primeira vez, com eles se trava contato. É assim que os problemas se retroalimentam, são criadas as divisões internas com o fortalecimento de alguns em detrimento de outros grupos e, independentemente do mérito, os desvios são naturalizados, considerados estilos pessoais (compreensíveis e merecedores de respeito) e podem mesmo vir a ser elevados à condição de cultura da casa, quando aos olhos da senioridade e já então alçada à condição de usos e costumes, passa a ser inquestionável – quem quiser que se adapte e os incomodados que se retirem ou, conforme o dito popular: “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. Independentemente dos acertos de uma ou outra alternativa, o que ora se acentua é que essas práticas, se existentes nas LS, não podem nem dar origem e tampouco coexistirem em uma LEP.

Feitas essas considerações, alertas preliminares, o pressuposto ao que se segue é que a criação de uma LEP deve ser antecedida de amplo planejamento, seja este “de baixo para cima” – motivado e conduzido voluntariamente por lideranças com propósitos bem definidos – ou “de cima para baixo” – catalisado pela Administração da Potência no âmbito do seu planejamento estratégico, o que autoriza a compreensão de que estas identificam nas LEP um efetivo instrumento para a realização dos seus objetivos de médio e longo prazo. Mas seja de um modo ou de outro, é impensável que em algum momento a primeira via não se encontre e dialogue com a segunda sobre questões que transcendem os aspectos meramente formais para a concessão da Carta Patente; e de outro lado, se a segunda via tiver claro que o funcionamento da uma LEP não se equipara ao de uma LS, ao constituir a equipe para o seu projeto saberá como conduzir a busca ativa para identificar, pelo menos os primeiros integrantes, e reuni-los – tema já explorado nos números anteriores da Série.  

Para o leitor ainda não familiarizado com os aspectos formais e administrativos das Lojas Maçônicas no ambiente legal-institucional brasileiro[7] é recomendável que, antes de prosseguir, leia Pinheiro (2023), cujo brevíssimo resumo vem a seguir, nos próximos 3 (três) parágrafos.

1 – No texto o autor inicialmente apresenta e discorre sobre as Associações privadas, a Pessoa Jurídica (PJ) sob a qual toda Loja Simbólica ou de Estudos e Pesquisas deve(ria) estar abrigada[8]. Assim, idealmente, ao invés de corresponder a um “copia-cola” de um modelo geral sobre o qual se opera a mera substituição de nomes, endereços, etc., o Estatuto e o Regimento Interno da Associação, como produtos do planejamento constituem, a um só tempo: 1) a sua Certidão de Nascimento, razão pela qual é um documento oficial e para todos os efeitos; 2) a declaração da sua razão de ser consubstanciada na Missão institucional acordada livremente entre e por todos os Associados; bem como 3) efetivas ferramentas gerenciais (pela estrutura orgânica estabelecida, pelos mecanismos de governança, pelos incentivos e penalidades, etc.) colocadas à disposição da Administração para a concretização da Missão e para o atingimento dos objetivos estabelecidos a cada ciclo de gestão.

2 – Na sequência o autor explora as potencialidades e o alcance da PJ Associação, quando então levanta a possibilidade de que a gênese de uma futura LEP pode ser uma das unidades administrativas da Associação, ora analogado com o que, nas demais Organizações, seria considerado um “Departamento”. Trata-se, conforme já apresentado em Pinheiro (2025), de uma fase preliminar (experimental, testes, avaliação, busca de alternativas de modelagem, etc.), ainda no formato de Grupos ou Centro de Estudos e Pesquisas (GEP). O papel central ocupado pela filantropia no contexto da Maçonaria justifica que as atividades (projetos, atividades esporádicas, etc.) estejam agrupadas no terceiro “Departamento” da Associação, o das Ações Sociais (DAS) – o primeiro, a própria LS; o segundo, o GEP – para reunir os Irmãos que desejassem maior envolvimento e comprometimento com aquelas atividades, tema explorado, com exemplos e várias sugestões para o desenvolvimento, por Pinheiro e Dutra (2023). O autor (Pinheiro, 2023) conclui com a apresentação de como um arranjo de parceria[9] não só pode(ria) resolver vários problemas: operacionais – a exemplo do quórum para a abertura das LS -; financeiros (rateio de custos, equacionamento do ponto de equilíbrio econômico-financeiro); mas também e sobremodo alavancar as atividades de docência em todos os Graus das LS parceiras.

3 – A falta de percepção de que embora aparentemente seja apenas uma, a LS, na verdade coexistem “pelo menos 2 (duas) organizações”: a primeira, a própria LS dedicada exclusivamente às atividades doutrinárias, ritualísticas e litúrgicas atinentes ao Rito; e a segunda, a PJ – a Associação – que abriga a primeira, não só dá margem ao surgimento de problemas, como impede a exploração dos potenciais que poderiam engrandecer, sobremodo, não só os Iniciados diretamente envolvidos como também a própria Ordem.

Nestes termos o Estatuto e o Regimento Interno são valiosos instrumentos de gestão. Por exemplo, fica claro quais poderiam ser as primeiras prioridades (inclusive para testes e desenvolvimentos internos) dos integrantes (Irmãos voluntários) do “Departamento” GEP: 1) as necessidades da docência interna apuradas após realização de levantamento[10] junto ao Quadro (da Loja ou agregado com os das LS parceiras); mas também, 2) a partir de estudos e pesquisas, subsidiar a Administração e o Quadro a decidirem aonde alocarão seus recursos e esforços no campo da filantropia (DAS) – em algum segmento social (jovens, idosos, enfermos, etc.), em alguma entidade no perímetro do seu entorno (vivenciando a comunidade), participando de eventos (Natal, Dia das Crianças, etc.) ou outra. Parecem evidentes as sinergias quando as considerações se estendem para além dos horizontes das LS e contemplam, também, os da Associação que as encapsula e o das demais unidades que a integram (GEP e DAS).

À guisa de ilustração da alavancagem proporcionada pelo GEP às LS, as conclusões do trabalho de Silva e Monteiro (2018, p. 16) ao tempo em que expõem a realidade[11] apontam os possíveis direcionamentos aos estudos e pesquisas que podem ser realizados durante a etapa embrionária das LEP, ainda enquanto GEP:

Os maçons não conhecem a Lei Orgânica da Assistência Social nem a Política Nacional de Assistência Social. Não há entre eles a noção de ações, cuidados, serviços e projetos com vistas a proteger e recuperar as situações de abandono de crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos, restaurando assim, a autonomia dos usuários. Para as Lojas Maçônicas objeto de análise, o conhecimento da PNAS/2004 é de pouca relevância, importando mais a prática filantrópica, como expressão da caridade, do favor, da ajuda. Um dos entrevistados ressalta, inclusive, que quando assumiu a presidência da entidade que a Loja mantém não tinha conhecimento algum da área da assistência social, mas contou com o apoio da equipe técnica para administrar a instituição […]

Os anos que se seguem à promulgação da Carta de 1988 não foram suficientes para eliminar, em boa parte da população, a concepção de assistência como “favor”, tão ao gosto daqueles que fizeram a história recente do país. A pesquisa permite considerar que para a Maçonaria e os maçons mantenedores de entidade de assistência social, a concepção de assistência social está atrelada à prática da ajuda, da benemerência, do favor. A filantropia, como princípio fundamental da Maçonaria, é motivada pela religiosidade maçônica. A crença em Deus como requisito para o ingresso na instituição, aliada aos princípios de fraternidade pregados pela Ordem, ocupam papel de destaque na prática filantrópica[12].

As atividades de campo relatadas por Pinheiro e Dutra (op. cit.) vão ao encontro das conclusões de Silva e Monteiro (op. cit.), bem como não só chamam a atenção para o desconhecimento como para o distanciamento entre o discurso vs prática ao nível da rede capilar, aonde as iniciativas, devido à baixa institucionalização – leia-se: projetos delineados, financiados e executados sob a responsabilidade das LS – ainda são predominantemente ocasionais e individuais.

Conforme já mencionado, mas não se perde por reiterar, justo o contrário é o que se pretende: o planejamento da futura LEP, e por conseguinte a modelagem do seu Estatuto, são as etapas fundamentais do processo, as demais, a implementação e o desenvolvimento, não só serão consequências como estarão presas às suas determinações até que se procedam as devidas alterações estatutárias nos termos da legislação que, de regra, não só se mostra restritiva como acarreta em ônus extraordinários. É nessa fase preliminar, por exemplo, que os futuros associados poderão cogitar e deliberar se a Associação pretende ou não ser reconhecida pelos entes públicos como uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), qualificação que a habilitará, via convênios e o estabelecimento de parcerias (patrocínios) com outras PJ, a ter acesso a novas fontes de recursos, o que não só possibilitará ampliar o seu campo de atuação social, como a própria efetividade das suas iniciativas (Pinheiro, 2023). Tão vasta quanto a legislação sobre o tema, são as discussões que ele provoca, como pode ser visto em Rafael (1997) e Alves (2000)[13].

 Embora as legislações sejam muito semelhantes, é importante ter claro que cada nível de governo (se municipal, estadual ou federal) possui autonomia para estabelecer os termos das exigências para conceder o registro (qualificação) de OSCIP; assim, também por isto, é indispensável que esta matéria seja tratada ainda na fase de planejamento à luz da legislação local e da visão de médio e longo prazo. A conclusão de Melo e Cavalcante (2017, p. 264) ilustra o que se diz:

[…] não obstante a decisão do STF, não reconhecendo a possibilidade da imunidade tributária sob a maçonaria, ampla discussão doutrinária e jurisprudencial nos leva a crer que esta, possivelmente, em razão da grande influência que goza, tem conseguido abster-se de pagamentos fiscais, a exemplo do IPTU, em razão da possibilidade de isenção tributária, seja por ser reconhecida como instituição filantrópica, ou por ser considerada de utilidade pública, já que esta espécie de exoneração tributária é uma opção do ente federativo ao analisar o caso concreto.

Assim, mais do que discorrer (em tese) sobre a relevância da filantropia, as LS podem criar as condições para que os seus Quadros, institucionalmente, a pratiquem, o que, evidentemente, não prejudica e tampouco impede as iniciativas individuais. Destarte, a teoria (desenvolvida na LS) e a prática (executada a partir do DAS) poderão andar juntas, em perfeita sintonia e mútua sinergia. E isso poderá ser sobremodo facilitado se as lideranças: 1) tiverem claro que a LS e a Associação são entidades distintas, porém complementares; e, 2) souberem explorar os alcances proporcionados pela PJ Associação, isto é, pela ação articulada e também complementar das suas unidades internas – a LS, o GEP e o DAS.

Por que, então, tal não se verifica no cotidiano das Lojas? Provavelmente[14] por uma combinação de fatores: o primeiro, a resistência dos que defendem a Tradição[15]; o segundo, o conforto e a segurança de sempre (e só) fazer mais do mesmo, o que evita riscos e indisposição com os pares[16]; e por fim, mas sem a pretensão de exaurir a matéria, pela falta de divulgação, debate e esclarecimento junto ao Quadro, dos principais marcos legais fundantes e operacionais – a legislação da Potência, o Estatuto e o Regimento Interno (cui bono?). Reunidos, esses fatores levam ao Quadro manter o foco apenas e tão somente sobre os aspectos próprios da LS, ficando à margem das questões administrativas, financeiras e patrimoniais que, centralizadas na Administração[17] só emergem quando já configuradas como problemas.

Não se discute que a Missão precípua da Ordem se dá pela via do que se opera no âmbito interno da LS; o que ora se alerta é para a existência de outros aspectos igualmente relevantes, a exemplo do exercício da cidadania (debate sobre as normas, os critérios, alocação, participação na fiscalização, no controle, etc.) que encontra no envolvimento com a gestão da Associação o seu melhor espaço para o desenvolvimento. O distanciamento e a omissão favorecem que os mal-intencionados cometam desvios de finalidade (da Associação), tema já aventado em Pinheiro (2023a) e ao qual oportunamente se retornará, sobretudo porque as Associações Maçônicas estão praticamente fora da fiscalização e controle do Estado[18], o que, combinado à omissão acima aventada, pode estimular a ação de aventureiros no sentido à evasão fiscal, à lavagem de dinheiro e outras práticas mais prosaicas, porém ilegais, como é o caso do custeio pessoal às expensas do caixa da Associação.

Não foi sem intenção que, em sendo uma Série sobre Lojas de Estudos e Pesquisas, neste texto até o momento pouco sobre elas pouco se discorreu. Esclareço: em primeiro lugar, para sublinhar o entendimento (sempre aberto à discussão) já firmado: a criação de uma LEP não deve ser uma iniciativa voluntarista (independentemente se a partir do “chão de fábrica”, ao nível das LS, ou da “alta administração”, no âmbito das Potências), mas antes o resultado de um acurado estudo de necessidades, oportunidade, condições efetivas de funcionamento e preferencialmente antecedidas da experimentação prévia ainda enquanto Grupo ou Centro de Estudos e Pesquisas (GEP). Em segundo, chamar a atenção para o fato de que a mesma figura jurídica que institucionaliza a LS, também representa a LEP – uma Associação de direito privado – e, acima de tudo, que ambas (a LS e a LEP), desde a gênese podem(riam), devem(riam) andar juntas. Mas, como tudo, depende das lideranças e da gestão. Decorrido um tempo (certamente anos), da primeira Associação (ASS-I), por maturidade, mas ainda submetida a avaliação de estudos, nasceria então, do GEP, como efetivo spin-off, a segunda Associação (ASS-II), independente da primeira – a nova LEP da jurisdição.  

Por certo que nem todas as ASS-I, por inúmeros motivos, gerariam LEP (ASS-II), mas tendo adquirido identidade própria, caberia então a estas, como parte do seu processo de (re)estruturação, estabelecer parcerias para a cooperação de toda natureza (estudos, pesquisas, cursos, eventos culturais, etc.) com outras LEP, inicialmente no âmbito da jurisdição, mas já com vistas à formação de alianças no país e no exterior. Nesse momento abre-se à nova LEP (ASS-II) um horizonte que será tão vasto quanto forem a imaginação, a criatividade, a expertise e a ousadia empreendedora das lideranças.

Hoje, “tal como opera o sistema”, um dos principais obstáculos, não tanto à criação, mas ao funcionamento e à expansão das LEP, a depender dos seus propósitos e do modus operandi – sim, pois há LEP, “LEp”, “Lep” e “lep” (em outro número, voltarei a esta diferenciação) – é a questão do financiamento. A modelagem sugerida, qual seja, desde a partida considerar a LS e o GEP (e eventualmente outros, a exemplo do já citado DAS) como “Departamentos” da Associação, bem como a estratégia de constituir alianças, em grande medida também contribui para, também desde o primeiro momento, refletir e equacionar a questão do financiamento de eventuais spin-offs. Todavia, tendo o GEP se constituído como uma LEP independente, esta pode, além de, ou exatamente por ser um polo gerador e irradiador de conhecimento, passar a atuar mediante projetos autossustentáveis, isto é, que já desde a concepção (“contratação”) tenham a previsão da fonte de recursos. E assim como os demais Departamentos da ASS-I (a LS e o DAS) foram os primeiros “clientes” do GEP, as demais Lojas Simbólicas da jurisdição, assim como a própria Potência poderão vir a ser os primeiros “clientes” da nova LEP (ASS-II), bem como esta pode firmar parcerias e contratar com outras LEP.

A palavra “cliente” talvez desagrade alguns e de fato não parece ser a mais apropriada ao caso, mas com ela pretende-se, primeiro, deixar absolutamente claro que, no mundo real (para além das amabilidades próprias à Fraternidade) there is no free lunch[19] e que nada impede que a LEP seja remunerada pela prestação dos serviços de balcão (ofertas espontâneas produzidas pelo Quadro) ou sob demanda, a exemplo de cursos (palestras, etc.) para atender necessidades específicas (de uma Loja, de um pool de Lojas de uma mesma região, de determinado Rito, para determinado evento – celebração, etc.). A remuneração não necessariamente precisa ser em espécie, podendo ser mediante o custeio das despesas com viagens, deslocamentos e estadias (no caso de palestras e cursos presenciais), doação ou cessão desonerada de bens, contraprestação de serviços, etc. Há, na Ordem, muitas habilidades e competências que, penso, estão à espera do devido aproveitamento, serem envolvidas em projetos (nas LEP, GEP, DAS) nos quais possam colaborar a partir da exploração das suas expertises, sejam empíricas, profissionais, acadêmicas, culturais ou outras. Como se vê, mais uma vez, o quão amplo é o espaço à pesquisa maçônica, que não precisa ficar adstrita e restrita aos aspectos históricos e/ou simbólicos.

O fato, incontestável, é que para manter uma plataforma (blog, site, etc.), adquirir softwares (para pesquisa e aplicações estatísticas), hardwares, manter atualizada uma biblioteca básica, assinar os melhores periódicos, editar, imprimir, traduzir, etc., tudo, absolutamente tudo, inclusive a dedicação de tempo, exige recursos – mesmo as atividades voluntárias, “gratuitas”, possuem um custo, ainda que oculto, existente: o voluntário deixou de realizar alguma atividade que poderia lhe ter proporcionado remuneração, deixou de aproveitar o tempo para o lazer, o repouso, ficar com a família, etc., todas estas são expressões de custos, ainda que ocultos aos olhos desatentos.

A figura do “cliente”, introduzida acima, também traz à pauta um conceito deveras importante no que ora se pode denominar como novo ambiente e, por conseguinte, “nova forma de operar o sistema”: a noção de público-alvo. Há quem se interesse e reconheça como valor e que, portanto, estaria disposto a pagar pelo produto-serviço a ser oferecido pela LEP ou ela é (foi, será o) fruto do voluntarismo diletante de apenas alguns convictos da sua própria importância? E se há interessados, sobre eles o que se pode dizer, qual é o perfil dominante, aonde estão (Lojas, regiões, Ritos, etc.), quais as suas necessidades e expectativas em relação à LEP, etc.? Há outras LEP já atuantes na mesma jurisdição ou área de alcance da LEP em cogitação? Em que aspectos a nova LEP se distingue para despertar o interesse do público-alvo, ou será ela apenas mais uma na paisagem maçônica? A clareza sobre essas, e outras questões, está (deve estar) na base da constituição e organização da LEP: quais as linhas de estudos e pesquisas serão priorizadas (foco de atuação, especialização), qual o perfil preferencial que será objeto de busca ativa para compor ou complementar o Quadro, quais os produtos-serviços serão ofertados no balcão, qual a forma de comunicação a ser privilegiada junto ao seu público-alvo, etc.? Reafirma-se, assim, a relevância do planejamento e o universo aberto à pesquisa.

Sem que seja necessário avançar em especificações e maior detalhamento (o que será visto nos próximos números), creio já ter ficado suficientemente claro que subjaz à proposta ora em tela a ideia de que a gestão das LEP (ASS-II) deve caminhar no sentido à “profissionalização” das suas atividades, e que esta, efetivamente, já há tempos, ainda quando parte (GEP) integrante da ASS-I, poderia ter sido iniciada. Essa Visão de Mercado não significa a admissão e a defesa de que tudo o que se aplica a este se aplica (sem maiores considerações) também à Maçonaria, em absoluto. Também não se está a sugerir que a Associação Maçônica atue tal como PJ Corporativa; nestas os excedentes financeiros (lucros) são, direta ou indiretamente, apropriados pelos acionistas, enquanto naquelas os eventuais ganhos (saldos dos projetos) devem, obrigatoriamente, ser reinvestidos na atividade finalística, sendo inadmissíveis as apropriações pessoais (integrantes do Quadro), o que significa maior aporte de recursos para as demais atividades: a LS e o DAS. Ademais, em nada, em absolutamente nada, o profissionalismo na gestão das Associações compromete o universo de interesse e atuação das Lojas Simbólicas – a doutrina, a liturgia, a ritualística e core da Maçonaria: o simbolismo. De outro lado, quando a Inteligência Artificial está na pauta do dia, chega a ser inadmissível a convivência com o amadorismo, ainda que fraterno; assim, para evitar os extremos, que se busque, no primeiro momento, o caminho do meio, que seja delineada uma trajetória, com etapas e metas.

Já à guisa dos encaminhamentos finais, por que não trazer para a Maçonaria, uma prática já amplamente difundida mesmo entre os maçons no Brasil? O crowdfunding – financiamento coletivo -, entre os nacionais, a popular “vaquinha”. Salvo melhor juízo, o modelo Associativo não obstaculiza que, já na sua gênese, a LEP conte com a colaboração (patrocínio) de terceiros, inclusive o de não-Iniciados, a exemplo dos diletantes, mas também dos estudiosos e pesquisadores em geral. Claro que nesse caso deve haver um compromisso de entrega (motivação e recompensa) aos primeiros colaboradores, a exemplo do acesso antecipado, perpétuo ou não, ao material produzido pela LEP, bem como eventuais “horas de consultoria”. As noções de “cliente”, “público-alvo”, “concorrente”, “inovação”, explícitas ou implicitamente já sugeridas, subsidiariam e orientariam o direcionamento da campanha de crowdfunding. Obtido o financiamento para a instalação e a fundação da LEP, a sua manutenção também poderia seguir os mesmos moldes (igualmente intermediados pelas plataformas[20]), isto é, o financiamento via mercado, seja através de “assinaturas”[21] (o que aumenta a regularidade e a previsibilidade do fluxo de caixa e reduz os riscos operacionais) ou contribuições espontâneas de ocasião, durante a oferta de palestras e outros serviços, práticas já largamente disseminadas entre os bloggers. Essa atuação, ancorada no mercado, contribuiria, ainda, para separar o joio do trigo – identificar as LEP que, pela sua contribuição à Fraternidade, ao público-alvo, são consideradas merecedoras de patrocínio espontâneo para assegurar a continuidade e o aperfeiçoamento das atividades.

A questão do financiamento para abrir, manter e expandir uma LEP, por certo que não é de somenos importância, mas depende, antes de tudo, da amplitude e do escopo de atuação estabelecido pelos Associados. Todavia, de regra ela comporta múltiplas nuances, havendo várias opções, cada qual com vantagens e também desvantagens que devem ser criteriosamente sopesadas pelos Associados: 100% autofinanciada a partir das mensalidades dos Associados; 100% autofinanciada contando também com outras receitas próprias; 100% patrocinada pela Potência; financiamento compartilhado entre a Associação e a Potência; receitas de convênios (Projetos OSCIP), patrocínios privados, assinaturas, demais parcerias, entre outras modalidades. Talvez, o mais provável e recomendável seja um mix entre as diversas fontes. Em meio a tanto importa considerar que o modelo de financiamento ao mesmo tempo que deve assegurar a continuidade das atividades não pode comprometer a independência intelectual do Quadro da LEP.    


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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PINHEIRO, Ivan A. Sobre as lojas (maçónicas) de estudos e pesquisas – I. Disponível em Freemason: https://www.freemason.pt/sobre-as-lojas-maconicas-de-estudos-e-pesquisas-i/. Publicado em 08.04.25. E também em Bibliot3ca Fernando Pessoa: https://bibliot3ca.com/wp-content/uploads/2025/05/sobre-as-lojas-maconicas-de-estudos-e-pesquisas-i.pdf. Acesso em 03.07.25.

PINHEIRO, Ivan A. A Associação que abriga a Loja Maçônica: um espaço à criatividade, alcances e desdobramentos gerenciais. Disponível em Freemason: https://www.freemason.pt/a-associacao-que-abriga-a-loja-maconica/. Publicado em 17.08.23, acesso em 05.07.25.

PINHEIRO, Ivan A. Os Donos da Loja & Jogos de Poder. Disponível em Freemason: https://www.freemason.pt/os-donos-da-loja-jogos-de-poder/. Publicado em 05.05.23a, acesso em 05.07.25.

PINHEIRO, Ivan A.; DUTRA, Lucas V. Iniciativas ocultas & benefícios públicos: uma conversa sobre Maçonaria e beneficência. Disponível em Freemason: https://www.freemason.pt/beneficios-conversa-maconaria-beneficencia/. Publicado em 30.05.23, acesso em 05.07.25.

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SCOTT, Leader. Os Construtores da Catedral – a história de uma grande guilda maçônica. Trad. J. Filardo. São Paulo: Edição Independente, 2023. ISBN 978-65-00-73885-8.

SILVA, Claudia N. da; MONTEIRO, Fernando. Maçonaria e maçons: entre a fala assistencialista e a prática da assistência social como política pública. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais – RBHCS. Vol. 10, Nº 19, jan. – jun., 2018.


Notas

[1] MM, Pesquisador Independente, e-mail: ivan.pinheiro@ufrgs.br. Porto Alegre-RS, 07.07.25. O autor não só agradece a leitura e as considerações do Irmão Lucas V. Dutra, Mestre Maçom do Quadro da ARLS Presidente Roosevelt, 75, Or. de São João da Boa Vista, jurisdicionada à GLESP – Psicólogo, Professor Doutor em Psicologia, Especializado em Maçonologia (UNINTER), e-mail: dutralucas@aol.com, como também reafirma a sua responsabilidade pelo conteúdo, erros e omissões remanescentes.     

[2] https://bibliot3ca.com/.

[3] https://www.freemason.pt/.

[4] Por óbvio que aparentemente seja, o objetivo foi ressaltar as diferenças que essas expressões guardam na perspectiva das Lojas Simbólicas vis-à-vis as LEP.

[5] Mas também como formadores do pensamento, sobretudo o analítico-crítico.

[6] Porque em parte já realizadas nos números anteriores da Série.

[7] Por conseguinte, os leitores de outros países devem buscar as correspondências à luz dos marcos regulatórios locais e promover a releitura, as adaptações necessárias.

[8] Tudo em perfeita continuidade histórica, afinal, o que eram os collegia fabrorum senão Associações de todo tipo (profissionais, assistenciais, religiosas, etc.)? Vide, entre tantos, Scott (2023).

[9] O caso hipotético apresentado reuniu 2 (duas) LS, mas poderia envolver mais, tantas quantas não comprometessem a finalidade e a funcionalidade otimizada da parceria constituída.

[10] Para conhecer o perfil, a formação, a experiência, as disponibilidades, as necessidades, as dificuldades de cada um dos integrantes, etc. Reunidas, levadas e debatidas junto ao Quadro, essas informações orientariam as diretrizes para a atuação da Administração – as Luzes da Loja.

[11] Que contradita com o discurso interna corporis tornado público.

[12] Sobre o tema, o leitor interessado em uma belíssima peça poderá ler 1Cor 13, uma das Cartas reconhecidas como efetivamente escritas por Paulo, o autodenominado apóstolo, e conhecida como Hino à Caridade.

[13] Atenção: como toda a legislação está sujeita a alteração a qualquer momento, torna-se indispensável que os interessados sempre busquem a versão mais atualizada, prática que hoje é largamente facilitada a partir do acesso à internet.

[14] Neste caso, a exemplo de outros já mencionados nesta Série, devido à ausência de estudos e pesquisas (sobre a Maçonaria) com a devida certificação externa (para eliminar a visão tendenciosa e autocomplacente, conforme já demonstrado), não há outro modo de referir senão à condição de possibilidade, mas sempre à espera de uma oportunidade para realizar uma investigação definitivamente esclarecedora.  

[15] Argumento ingênuo e que expõe o desconhecimento histórico sobre a Maçonaria, repleta de mudanças institucionais, inovações em resposta às alterações sociais e políticas no ambiente, quando não meramente para atender aos interesses e caprichos de ocasião.

[16] Salvo melhor juízo, por vezes me parece que os maçons, não sem cautela, deveriam ler F. Nietzsche, (1844 – 1900) – o filósofo do martelo -, qualquer um dos seus livros os levaria a, efetivamente, visitar o seu interior, a descobrir a sua verdadeira natureza e, no cotidiano, as consequências que daí advém. Como diz o ditado popular: não há como fazer omelete sem quebrar os ovos.

[17] De regra, conforme assinalado em Pinheiro (2023), o Presidente da Associação, assim os demais dirigentes, se confundem com as Luzes (Venerável e Vigilantes) e a Tesouraria da Loja.

[18] Consideradas PJ de pequena movimentação financeira-econômica, e frente às permanentes limitações do Estado para o pleno exercício do Poder de Polícia, as Associações, desde que atendam às exigências básicas ficam à margem dos controles da Receita e do Ministério Público que, então, só atuam mediante provocação, denúncia.

[19] “Não existe almoço grátis”.

[20] Entre tantas, vide, por exemplo, a Catarse; disponível em: https://www.catarse.me/. Acesso em 05.07.25.

[21] Pagamentos fixos, regulares (mensais, trimestrais, anualidade, etc.) mas que podem, a qualquer momento ser cancelados, o que induz o beneficiário a permanentemente buscar a atualização e a melhoria contínua do produto-serviço ofertado.