Por Prof. Fernando Nogueira da Costa

A Social History of Knowledge (From Gutenberg to Diderot) éo título da primeira edição inglesa, publicada em 2000, do livro de Peter Burke. Em 2003, Jorge Zahar Editor o lançou no Brasil.
Sua leitura é de grande interesse para quem se interessa por Sociologia e História do Conhecimento. Vivemos hoje em uma “sociedade do conhecimento” ou “sociedade da informação”, dominada por especialistas profissionais e seus métodos científicos.
Economistas a denominam de “economia do conhecimento”, referente à expansão de ocupações produtoras ou disseminadoras de conhecimento. A Ciência Política discute o caráter público ou privado da informação diante de sua natureza mercantil ou social.
Historiadores do futuro poderão classificar o início do século XXI como a “Era da Informação”. A confiabilidade dessa informação, por ser transmitida por muitos internautas, ainda é questionada por filósofos, apesar de concordarem em definir o tempo vivenciado atualmente em termos de sua relação com o conhecimento.
Na verdade, a mercantilização da informação é tão velha quanto o capitalismo. O uso por parte dos governos de informações sistematicamente coletadas sobre a população vem da história antiga romana e chinesa.
Um dos principais objetivos deste livro de Peter Burke é tentar definir as peculiaridades do presente de modo mais preciso, abordando-o da perspectiva das tendências de longo prazo. Há um interesse crescente pela história do conhecimento e da informação.
Esse autor destaca o elemento social no conhecimento. Seu objetivo é nos tornar mais conscientes do “sistema de conhecimento” no qual vivemos, descrevendo e analisando suas mudanças diante do passado.
Ele usa como epígrafe uma pertinente citação do cientista polonês Ludwik Fleck: “o que é conhecido sempre parece sistemático, provado, aplicável e evidente para quem conhece. Da mesma forma, todo sistema alheio ao próprio conhecimento sempre parece contraditório, não provado, inaplicável, irreal ou místico”.
Trata-se da ideia segundo a qual o que os indivíduos acreditam ser verdade ou conhecimento é influenciado, se não determinado, por seu meio social. O desafio da Sociologia do Conhecimento é passar da intuição para o estudo organizado e sistemático, um movimento difícil – e talvez leve séculos para se consumar inteiramente.
A Sociologia do Conhecimento remonta ao começo do século XX. Percebeu as categorias sociais serem projetadas sobre o mundo natural, de modo a classificação das “coisas desconhecidas” reproduzir a classificação das pessoas.
A Sociologia da Verdade diz respeito à relação de grupos sociais e instituições específicas com o conhecimento. O lugar da ciência na civilização moderna, ou seja, o “culto à ciência”, inclusive a inclinação pelas explicações impessoais em lugar das antropomórficas, era visto como uma consequência do surgimento da indústria e da tecnologia das máquinas.
Por exemplo, a “preeminência intelectual dos judeus na Europa moderna” é explicada por sua posição na fronteira entre dois mundos culturais os tornar céticos “por força das circunstâncias”. Os ídolos de sua própria tribo se haviam “desintegrado” e eles não tinham qualquer incentivo particular para aceitar os ídolos dos gentios. A independência em relação às ideias consideradas verdadeiras no mundo à sua volta encorajava esses intelectuais de extração judaica a se tornarem inovadores intelectuais.
A Sociologia das Ideias, considerando a chamada “ética protestante”, situava esse sistema de valores em seu contexto social e propunha uma teoria sobre suas consequências econômicas. As ideias passaram a ser vistas como socialmente “situadas” e formadas por visões de mundo ou “estilos de pensamento” associados a períodos, a nações e a gerações e classes sociais.
Contrastava dois estilos europeus de pensamento desenvolvidos nos séculos XVIII e XIX. De um lado, o estilo francês, liberal e universalista, considerando a sociedade do ponto de vista de uma razão imutável. Do outro, o estilo germânico, conservador e “historicista”, no sentido de experimentar o mundo como mudança e de usar a história (e não a razão ou a religião) para dar sentido à experiência.
Reconhecia os interesses sociais de um dado grupo deixarem seus membros sensíveis a certos aspectos da vida social. Sobre essa base, desenvolvem uma “ideologia” particular.
Os intelectuais, por sua vez, eram vistos como um “estrato relativamente sem classe”. Eram uma “intelligentsia flutuante”. Por serem relativamente independentes da sociedade podiam ver as tendências sociais mais claramente em lugar de outras pessoas.
No ano corrente (2023), Peter Burke lançou um livro sobre a ideia de uma história ou uma Sociologia da Ignorância. Afinal, o que conhecemos, em oposição a aquilo no qual acreditamos, é verdade por definição.
Houve um renascimento da Sociologia do Conhecimento quando houve a percepção de revoluções científicas serem recorrentes na história. Têm uma “estrutura” ou ciclo de desenvolvimento semelhante, originando-se na insatisfação com uma teoria ou paradigma ortodoxo e terminando na invenção de um novo paradigma. Este passa a ser visto como “ciência normal” até outra geração de pesquisadores, por sua vez, não se satisfazer com esse conhecimento convencional.
Antropólogos dedicaram vários ensaios a problemas de saberes locais, informação e senso comum, colocando-os sob o microscópio no sentido de examiná-los no contexto das comunidades face a face estudadas em pesquisa de campo. Eram caminhos alternativos para o conhecimento em culturas orais e letradas, reconhecendo haver relações cambiantes entre as esferas econômica, política e intelectual, respectivamente, descritas como sistemas de produção, coerção e cognição.
O debate sobre a relação entre conhecimento e interesses continua. Quanto ao poder de definir qual espécie de conhecimento é legítimo, pressupostamente definida pela avaliação por pares (“cegos” mais rivais), o dito satírico diz bem a respeito: “o que eu não conheço não é conhecimento”.
Eu tive uma experiência traumática a respeito. Enviei um artigo, para a RBE da FGV-RJ, onde resumia minha tese de Livre-Docência, aprovada quase com a nota máxima (9,9) por banca de Professores Titulares. Organizei uma Teoria Alternativa da Moeda crítica à Teoria Quantitativa da Moeda. A resposta do parecerista foi: ela não existe na literatura!
A segunda geração da Sociologia do Conhecimento é diferente da primeira em suas ênfases. Em primeiro lugar, a ênfase passou da aquisição e transmissão do conhecimento para sua “construção”, “produção” ou mesmo “manufatura”.
Há menos insistência sobre a estrutura social e mais sobre os indivíduos, sobre a linguagem e sobre práticas como a classificação e o experimento. Há menos ênfase na economia e mais na política do conhecimento e nos “detentores do conhecimento”
Em segundo lugar, esses detentores do conhecimento são vistos como um grupo maior e mais variado. Os conhecimentos práticos, locais ou cotidianos, bem como as iniciativas dos intelectuais, são hoje levados a sério pelos sociólogos do conhecimento.
Um terceiro aspecto pelo qual a nova Sociologia do Conhecimento difere da antiga é seu maior interesse pela microssociologia, pela vida intelectual cotidiana de pequenos círculos, redes ou “comunidades epistemológicas”. Está próxima da Antropologia.
Em quarto lugar, antes o conhecimento era visto como socialmente situado, ou seja, pensava acima de tudo na classe social ou nas gerações. Na fase atual, dedica-se maior atenção ao gênero e à geografia.
No caso do gênero, houve uma série de estudos sobre a “corrida de obstáculos” enfrentada pelas acadêmicas, caso sua ambição fosse tornar-se cientistas ou humanistas. A série da AppleTV, Uma Questão de Química, ilustra bem o tema.
Os geógrafos passaram a interessar-se pela distribuição espacial do conhecimento. Ele deixava de ser distribuído e permanecia restrito a certos grupos em certos lugares.
Embora seu autor seja um historiador social e cultural, este livro aqui resenhado brevemente tenta corrigir a especialização e consequente fragmentação tão característica do próprio mundo de conhecimento. Pouco se escreveu sobre as Ciências Sociais e as Humanidades e a percepção dessa lacuna na literatura acadêmica foi uma das razões da escolha por Peter Burke deste tema.

