Bibliot3ca FERNANDO PESSOA

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Ut pictura ius: notas sobre alquimia, emblemas e hermenêutica radical

Por Andityas Soares de Moura Costa Matos[1]

Nada é, tudo se outra.
Fernando Pessoa

Introdução

O presente texto, Ut pictura ius:[2] notas sobre alquimia, emblemas e hermenêutica radical [3] é uma ficção crítico-especulativa, um experimento de pensamento que tenta abrir alternativas para a interpretação jurídica hoje reduzida a mera técnica. Para tanto, imagino que o direito atual se desenvolveu não a partir da ciência, e sim da alquimia (seção I). Tal ficção encontra apoio na obra de Andrea Alciato, humanista e jurista italiano que criou os emblemas, os quais logo se tornariam um dos mais importantes meios de expressão da alquimia (seção II). O emblema – uma espécie de amálgama entre texto e imagem – não exige, ao contrário do símbolo, uma interpretação unívoca, prestando-se antes a uma hermenêutica criativa, impura, não-hierárquica e infinita (seção III). Dessa feita, lançando mão do método arqueológico-filosófico enunciado por Giorgio Agamben e com base nos exemplos paradigmáticos de alguns emblemas alquímicos (seção IV), proponho uma hermenêutica radical que, ao rejeitar o monopólio da interpretação do direito por parte do Poder Judiciário, se abre para uma experiência jurídico-interpretativa ao mesmo tempo democrática (seção V) e an-árquica (seção VI).

I

Frontispício dos Emblemata de Alciato (Tozzi, 1618)[4]

Hans Kelsen – pensador pelo qual tenho a maior admiração e que abriu minha primeira via de acesso à Filosofia do Direito há mais de 20 anos – confessa o seguinte no primeiro parágrafo do prefácio à edição de 1934 da Teoria pura do direito: “Logo desde o começo foi meu intento elevar a Jurisprudência, que – aberta ou veladamente – se esgotava quase por completo em raciocínios de política jurídica, à altura de uma genuína ciência, de uma ciência do espírito”.[5] Aqui não importa saber se o projeto kelseniano teve ou não sucesso,[6] e sim tomar a sua intenção declarada de transformar o direito em uma “genuína ciência” como comprovação eloquente de uma tendência geral presente não só no direito, mas em todas as ditas “ciências” humanas. Muito embora seja quase obrigatório criticar – na maioria das vezes de forma irresponsável e superficial – a pretensão kelseniana de transformar o estudo do direito em uma tarefa científica, me parece fora de dúvida que o direito ocidental, no seu desenvolvimento histórico moderno, seja na versão anglo-saxã ou na romano-germânica, foi se construindo tendo em vista a epistéme [7] científica, ou seja, foi se organizando tendo em vista certos princípios muito gerais mas que, contudo, identificam o que costumamos chamar de ciência. Refiro-me às ideias de generalidade, método, impessoalidade e objetividade, entre outras.

Nesse sentido, existia bem antes dos trabalhos de Kelsen uma “ciência jurídica”, já que os juristas construíram seu saber a partir da Modernidade tendo em vista não as fontes antigas, casuísticas, retóricas e oratórias do humanismo clássico, e sim tendo por modelo as nascentes ciências físico-matemáticas modernas. É exatamente por isso que Kelsen pôde perceber o direito como uma ciência de segundo escalão, um tipo de decalque defeituoso que não alcançava o modelo da “ciência genuína”. De fato, a percepção pré-compreensiva de que o direito não conseguira ainda se tornar uma verdadeira ciência legitimou, de maneira quase imediata, absoluta e por isso indiscutida, a intenção de Kelsen. Se o direito não tivesse se relacionado conscientemente com o modelo científico moderno, não haveria qualquer sentido em tentar “cientificizá-lo”. Seria algo tão ridículo quanto tentar tornar científicos o tarô ou a cabala. Parece-me que só é possível conceber uma tentativa de cientificizar o direito quando se considera que ele ainda não é suficientemente científico e precisa sê-lo. Se o direito se afastasse, digamos, desde o século XVII, de modo voluntário, justificado e argumentado dos cânones da cientificidade moderna, não seria concebível construí-lo no século XX como uma “ciência genuína”. Essa ideia não caberia na ordem do discurso jurídico acadêmico ou técnicoprofissional, tratando-se de algo literalmente impensável, algo absurdo, bizarro, anormal.

Em um universo no qual o direito já não fosse parcialmente científico e, de qualquer maneira, tendesse mais e mais à cientificidade, pensá-lo em termos científicos somente poderia ser feito sob a forma de uma ficção crítico-especulativa muito semelhante àquelas que Vilém Flusser adorava conceber ao compor seus discursos sobre objetos e realidades inexistentes.[8] Pois bem, é exatamente o que me proponho a fazer aqui com o direito hoje existente, ou seja, apresentar uma ficção crítico-especulativa em que ele se constrói não com base nos (vários) cânones científicos (que variam de tempos em tempos, de cultura a cultura etc.), tal como ocorreu em seu efetivo desenvolvimento histórico. Em minha ficção críticoespeculativa o direito se estrutura com base no exemplo[9] da alquimia,[10] entendida não como modelo, mas propriamente enquanto assinatura paradigmática a ser arqueologicamente explorada,[11] levando a sério a afirmação de Agamben – um pouco impressionista, mas nem por isso menos importante – segundo a qual o direito é a esfera por excelência das assinaturas (AGAMBEN, 2008, p. 77). Pretendo assim apresentar em linhas muito gerais, sob a forma de um breve experimento de pensamento, o que poderia ser um genuíno “direito alquímico”. Para tanto, leio o direito não na qualidade de objeto atual, e sim como uma carta aberta que ficou para trás; leio-o como um objeto inexistente, como algo que poderia ter sido de certa maneira e não foi e, por isso mesmo, hoje, no momento em que o direito “realmente existente” experimenta uma crise sem precedentes ocasionada pela sua deriva técnica, pode vir a ser.

II

Na minha ficção crítico-especulativa, o grande jurista que praticamente encarna em si o direito, sendo amado por uns e odiado por outros, não é Kelsen, e sim Alciato. De fato, assim como no mundo “real” Kelsen foi o responsável pela redução problemática do direito à ciência, no nosso mundo ficcional este papel cabe ao humanista e jurista italiano Andrea Alciato (1492-1550), que com sua obra sobre emblemas teria sido o responsável pela mistura – aqui já não se fala em redução – entre direito e alquimia.[12] Antes de mais, é preciso frisar que Alciato não era um alquimista nem escreveu especificamente sobre alquimia. Entretanto, foi ele que codificou e levou ao esplendor um dos principais dispositivos da alquimia: o emblema.[13] Embora não sejam específicos da tradição alquímica e sim comuns à cultura humanística europeia dos séculos XVI a XVIII, os emblemas parecem feitos sob medida para a Grande Obra.

Emblemas são pequenas gravuras – inicialmente, xilogravuras – acompanhadas por um lema (motto) e/ou epigrama (quase sempre em latim) que, contudo, não simplesmente explicam as imagens, com o que suas cargas significativas seriam reduzidas e controladas, mas as abrem para interpretações infinitas, tratando-se de “um casamento ético e filosófico onde se escuta a imagem e se vê a palavra” (GABRIELE, 2009, p. III).[14] O termo latino emblema vem do grego ἔμβλημα, palavra composta que significa “aquilo que é inserido em outra coisa para ornamentá-la”. O primeiro livro de emblemas foi o Emblematum liber de 1531, de Alciato, obra que para certos estudiosos mantém uma secreta relação com a alquimia, mediada por alguns emblemas inspirados pelas Metamorfoses de Ovídio (GABRIELE, 2009, pp. LXIV-LXXII). No Emblematum liber já se pode compreender a diferença entre emblema e símbolo, dado que este ilustra, de maneira direta e unívoca, o que pretende significar. Por outro lado, o emblema é mais obscuro, não havendo correspondência direta e necessária entre o texto e a imagem que o acompanha, exigindo assim um trabalho hermenêutico que, mais do que esclarecer o sentido de determinado emblema, o cria. “Ler” um emblema consiste então em uma atividade criativa e não apenas investigativa, dado que a cada leitura algo novo pode surgir no mundo, confirmando, uma vez mais, que é a repetição que gera a diferença, como ensinou Deleuze.

No De anima (427b), Aristóteles já havia dito que é impossível pensar sem imagens. Essa constatação é levada às últimas consequências pela emblemática, que vê no pensamento um campo de tensões em que as palavras e as imagens entram em uma zona de indeterminação, articulando-se naquilo que podemos chamar de “interpretação”. Valham aqui como exemplos duas leituras de arquemblemas – Ur-Embleme, ou seja, emblemas que vieram antes dos emblemas, emblemas-fósseis, de certo modo – retirados do Hypnerotomachia Poliphili, magistral obra atribuída a Francesco Colonna (1433/1434 – 1527) e editada em Veneza no ano de 1499 por Aldo Manuzio (1449/1450-1515) que, juntamente com os Hieroglyphica de Horapolo (séc. V d.C.), constitui a principal fonte de inspiração de Alciato (GABRIELE, 2009, pp. LVIII-LX). O Hypnerotomachia descreve, como o próprio nome revela, a batalha de amor sonhada por Polifilo em busca da ninfa Polia, e está recheado de belíssimas xilogravuras, nas quais aparecem arquemblemas como este:

Trata-se de um dos inúmeros “hieróglifos” inventados por Colonna que, na sua época, foram tomados por autênticos, uma vez que teriam sido compilados pelo filósofo estoico, gramático e sacerdote Queremon de Alexandria, que teria vivido no século I d.C. Os hieróglifos de Colonna já antecipam, em certa medida, a lógica do emblema, em especial quando se considera, conforme os estudos de Volkmann, que os emblemas foram tentativas humanísticas de criar algo equivalente aos hieróglifos na Modernidade.[15] No “hieróglifo” acima, as três figuras significam respectivamente as três palavras do lema de Virgílio, AMOR VINCIT OMNIA (Eclogae, 10, 69): o vaso em que há uma chama é o AMOR, o ramo de vime é o VINCIT e o mundo é o OMNIA.

Vejamos outro exemplo:

A relação aqui, bem mais simples do que nos Emblemata de Alciato, é de analogia direta entre as palavras e as imagens, de forma que Polifilo as interpreta da seguinte maneira para chegar ao lema PATIENTIA EST ORNAMENTUM CUSTODIA ET PROTECTIO VITAE: o crânio de boi expressa a paciência (patientia), os ramos, o ornamento (ornamentum); o cão, a custódia (custodia); o elmo, a proteção (protectio); e a lâmpada, a vida (vita).

Segundo Gabriele, esse tipo de leitura pode expressar os conteúdos mais elevados por meio de imagens formalmente básicas, respeitando assim o ideal humanístico que via nos hieróglifos egípcios signa primários nos quais se dava a perfeita união entre a forma simples (simplex forma) e o conceito (excogitatio) (GABRIELE, 2009, p. LXI). Contudo, não se pode negar que se trata de uma estrutura quase unidirecional e unívoca, de caráter analógicofraseológico, que inclusive assume a direção de leitura da frase latina, ou seja, da esquerda para a direita. Esse esquema, próximo do funcionamento do símbolo, será substituído por uma lógica muito mais livre e complexa nos Emblemata de Alciato. Isso porque Alciato, semiologista avant la lettre, entende que não apenas as palavras significam, podendo as próprias coisas significar autonomamente. De fato, em sua obra de 1530, De verborum significatione, um comentário sistemático às 246 “leis” contidas no título homônimo do Digesto (50, 16), Alciato afirma: “As palavras significam, as coisas são significadas. Todavia, algumas vezes as coisas também significam, como os hieróglifos de Horo e Queremon [ou seja, do Hypnerotomachia], argumento sobre o qual até mesmo nós compusemos um livreto em versos, cujo título é Emblemata”.[16]

Os emblemas de Alciato realizam uma verdadeira simbiose entre imagines e verba, algo que será fundamental para a alquimia. Dessa maneira, o emblema não é um mero divertimento literário, tratando-se de uma investigação ao mesmo tempo filosófica e artística sobre a maneira de se traduzir o pensamento em formas plásticas, tentando assim conjugar o nível imaginário com o sensível, ou seja, o ver com a visão. E o contrário também é válido, pois se o emblema equivale a um conceito visualizado, tal visualização remete de novo ao conceito, formando uma espécie de incessante círculo virtuoso – um tipo de oroboro – que “ora fala por imagens, ora por palavras, sob diversos planos artísticos e intelectuais, concretizando ideias e sugerindo outras novas, segundo um engenho poético-figurativo no qual subsiste plena liberdade criativa e intenção especulativa” (GABRIELE, 2009, p. LXIV).

Com isso, os emblemas de Alciato parecem assumir uma lógica diferente daquela atribuível aos emblemas jurídicos da sua época. Segundo Goodrich, o propósito dos emblemas nos livros de direito era justamente marcar os limites da visão (e da cognição) humana, limitando também a interpretação, dado que tudo aquilo que é visto remete a um não visto, que pode ser lido como o fundamento místico da autoridade, o qual não se deixa traduzir plenamente em imagens, estando nos arcanos, nas tenebras antiquitatis. De fato, “what is figured and portrayed is in the end symptomatic of what is not seen and escapes depiction” (GOODRICH, 2015, p. 36). Com efeito, os emblemas jurídicos não esclarecem tudo que mostram, tratando-se, no inspirado neologismo de Goodrich, de um tipo de obiter depicta. É por isso que Jean de Coras (1515-1572), humanista, filósofo, professor universitário e jurista francês, afirma, com o gosto pelo paradoxo e pelo conceptismo típico dos seus dias, que a imagem é uma espécie de “falsa verdade” (CORAS, 1558, p. 23), eis que não traduz a luz extrema ou a escuridão profunda de que surge a autoridade – e, como veremos, a autoridade de autor de Alciato estava seriamente ameaçada pelo sucesso da ideia do primeiro editor dos Emblemata.

Nessa perspectiva, ainda que contra a vontade expressa de seu autor, os emblemas de Alciato parecem ter dado início a uma tradição diferente daquela que caracterizaria a posterior emblemática jurídica dos séculos XVI e XVII.[17] Seus emblemas literários – “menores” do que aqueles presentes nos livros jurídicos – destituem a lógica da autoridade típica do direito, campo no qual o símbolo, imagem autoritativa e continuamente repetida em um tempo fora do tempo (GOODRICH, 2015, p. 34), é mais importante do que o emblema. Dessa maneira, os emblemas de Alciato, ao unir texto e imagem e potencializar ambas as instâncias, afastando-se assim da univocidade do símbolo – que é só imagem, sem texto para complexificá-la –, abrem um campo hermenêutico em que o dizer e o ver se afetam mutuamente sem hierarquia, dando lugar a um pensar sempre em movimento cujo melhor exemplo está na alquimia.[18]

III

Agora me parece um bom momento para discutir a dimensão alquímica dos emblemas de Alciato, algo que, preciso confessar desde já, é rejeitado pela maioria dos estudiosos. Parece que uma tal interpretação alquímica foi defendida apenas por um tal Pierre Vicot (ou Vitecoq) no século XV, um dos três “alchimistes des Flers”, trio que floresceu em Flers, na Normandia, no começo do século XVI, e ao qual são atribuídos importantes manuscritos alquímicos que até hoje não foram publicados (GERARDIN, 1972, pp. 173-174).[19] O padre Vicot parece ter sido o autor de um poema de 2.344 versos que equivale a um tipo de paráfrase alquímica das Metamorfoses de Ovídio. Nessa obra, intitulada Le grande Olympe ou philosophie poétique attribuée au très renommé Ovid, traduit du latin en langue française, Vicot analisa cerca de vinte dos emblemas de Alciato para neles encontrar ocultas significações alquímicas. Apesar de Gabriele julgar a leitura de Vicot mecânica, arbitrária e carente de continuadores (GABRIELE, 2009, p. LXXI-LXXII), o que importa aqui não é a sua correção, originalidade ou influência, e sim o seu caráter “arcaico” (no sentido que Warburg dá a esse termo), que demonstra como é possível fazer as coisas falarem, de modo a constituir (e não a desvendar) um exemplo (e não um modelo) para meu direito alquímico.

O campo da emblemática, por sua própria natureza, apresenta uma impessoalidade e uma anonímia que vão muito além das noções de autoria, vontade e obra, centrais para o direito atual. Basta lembrar que sequer se sabe quem criou o emblema tal como o conhecemos hoje, pois parece que inicialmente o texto de Alciato trazia apenas os epigramas com seus títulos, tendo cabido a seu primeiro editor, Heinrich Steyner, a ideia genial de juntar imagens ao texto. Como essa primeira edição de 1531, publicada em Augsburg com 104 toscas imagens de provável autoria de Jörg Breu, não foi autorizada nem agradou a Alciato, ele se propôs, para “retomar” sua obra, a fazer uma segunda, que saiu no ano de 1534 em Paris pelo editor Chrétien Wechel, dessa vez com 113 imagens de melhor qualidade. A partir de então, as reproduções, as versões e as traduções se multiplicaram e escaparam do controle de Alciato, chegando ao “cânone” atual, que se “normalizou” no século XVII com 212 emblemas. [20]

As ilustrações originais das edições de 1531 e 1534, às quais Alciato acrescentou outras no decorrer dos anos, foram mudando de ordem e se transformando, além de receber comentários de terceiros que acabaram se tornando, com o tempo, partes integrantes dos Emblemata. Ademais, devemos nos lembrar que muitos dos epigramas da obra de Alciato geraram imagens múltiplas – ou seja, mais de uma para cada epigrama –, sendo várias delas diferentes daquelas que ilustraram a primeira edição, das quais Alciato não gostou, dado que minavam a sua autoridade (BRACERO, 2001, p. 450). A noção de autor ainda não existia de forma perfeita na época de Alciato, sendo assim plenamente legítimos os empréstimos que ele tomou não só de Horapolo e de Colonna, mas também de Erasmo [21] e da Antologia planudea, [22] procedimento até mesmo necessário diante da regra humanística não escrita que proibia qualquer inovação que não pudesse ser interpretada como recuperação ou renovação da Antiguidade. Entretanto, Alciato sentia que as ilustrações diminuíam a sua autoridade enquanto poeta, pois explicavam e materializavam os epigramas que apenas o autor e seu devotado leitor deveriam interpretar. Assim, a união emblemática entre palavra e imagem representou, de maneira involuntária, uma estratégia voltada contra os dispositivos da autoria e da autoridade, fazendo dos emblemas de Alciato não apenas um lugar de encontro entre comentadores e autores antigos, contemporâneos e até mesmo imaginários, mas também um espaço de suspensão da ordem do discurso autoral, que então se preparava para dominar a literatura e, é claro, o direito.

Em um contexto assim, não me parece ilegítima a interpretação alquímica de alguns emblemas de Alciato, em especial porque a forma emblemática se tornará uma das principais expressões da alquimia nos séculos XVI e XVII. Contemplemos, portanto, alguns exemplos de “emblemas alquímicos” de Alciato:

Etiam ferocissimos domari

Emblema XXIX: Os dois leões que puxam o carro evocam duas fases da Opus Magnum traduzidas no “Leão Verde” (vitríolo) e no “Leão Vermelho” (enxofre). Escreve Basílio Valentino em As doze chaves: “tu então nutriste e dissolveste o verdadeiro Leão com o sangue do Leão Verde. Pois o sangue fixo do Leão Vermelho foi feito do sangue volátil do Leão Verde; portanto, eles são de uma mesma natureza, e o sangue não fixado torna novamente fixo aquilo que é volátil, e o sangue fixo, por sua vez, fixa aquilo que é volátil”.O motto se adequa bem à interpretação alquímica: “Até os mais ferozes são domados”.

Paupertatem summis ingenijs obesse ne prouehantur

Emblema CXX: A pedra e as asas nas mãos do homem materializam o dito de Hermes Trismegisto: “fazer do fixo, volátil; e do volátil, fixo”. A imagem também pode ser lida como uma representação do principal princípio alquímico, presente na Tabula smaradigna: “O que está abaixo é como o que está acima e o que está acima é como o que está abaixo” (LUCK, 2023, p. 690). O motto, que nada parece ter a ver com a alquimia, afirma: “A indigência impede os mais altos talentos de progredir”.

In studiosum captum Amore

Emblema LXXI:[23] o julgamento de Paris exemplifica os três graus e as três naturezas da Obra. Juno corresponde à natureza mineral e metálica que guarda todos os tesouros, Pallas traduz a natureza vegetal que destrói e regenera os corpos e Vênus encarna a natureza animal e sua força vital. O pomo de ouro seria a pedra filosofal (MAIER, 2016). O motto diz: “Sobre o estudioso perdido de amores”.

Vnum nihil, duos plurimum posse

Emblema XLI: a dupla Ulisses e Diomedes representa a unidade indissolúvel de teoria e prática da alquimia, resumida pelo eloquente motto: “o que um não pode fazer, dois podem”.

IV

Littera occidit spiritus viuificat

A letra mata, o espírito vivifica

As consequências de tal procedimento no direito de nossa ficção – que chamo, para simplificar, de “direito alquímico” – são notáveis. Com efeito, seus processos interpretativos seriam muito diversos daqueles que conhecemos, pois pressuporiam uma interpretação infinita, sempre retomável, sempre renovável, com o que a hierarquia interpretativa, sua fixidez e seu necessário fechamento, seriam seriamente relativizados. Se, como afirma Goodrich, a imagem é a face primeva do direito, correspondendo à dimensão do espírito que vivifica a letra morta, trata-se de pensar um direito relacionado ao emblema alquímico e não ao monofônico símbolo governamental que sempre remete a uma arkhé. [24] De fato, se se pensa o direito como emblema constantemente interpretável, constantemente reelaborável, já não faz sentido, por exemplo, o princípio da res judicata, pois nenhuma decisão poderia se dizer final, o que traria, sem dúvida, muito mais complexidade e insegurança para o direito, mas também muito mais diferença, argumentatividade e criatividade. Do mesmo modo, seria desativado o princípio teológico-político medieval que se traduz na máxima Roma locuta, causa finita. Tal princípio legitima a ideia de uma hierarquia de instâncias judiciárias na qual existe um ponto em que se decide para sempre, de forma vinculante e não mais discutível ou renovável, conformando um procedimento propriamente mágico que se justifica com base na suposta necessidade de segurança jurídica, de maneira a impedir a interpretação infinita. Luhmann já dissera, por exemplo, que à semelhança de todo subsistema social, o direito serve para reduzir a complexidade social e garantir expectativas normativas (LUHMANN, 1972). Em uma sociedade calcada no grande mito fundador da ciência, não há dúvida de que ele está certo. Entretanto, se as formas de vida se constituíssem tendo como exemplo a alquimia e as suas ideias de fluxo, continuidade entre as formas, correspondências, conjunção dos contrários e destituição da relação sujeito-objeto, o direito serviria não para reduzir a complexidade e estancar a interpretação, e sim para espalhar e mesmo incrementar a complexidade, transformando a interpretação em uma atividade quotidiana e não separada, comum e não hierárquica, vivencial e não técnica.

Um direito alquímico e, portanto, emblemático, se afasta da terrível palavra “hierarquia”, que designa uma arkhé (ἀρχή) – nos dois sentidos da palavra: “início” e “comando” (AGAMBEN, 2020) – sagrada (hierós, ἱερός), uma ordem separada que, no limite, não é modificável. Ao negar-se a ser hierárquica, a hermenêutica jurídico-alquímica poderia se orientar em direção a uma compreensão mais democrática, complexa e, ainda que possa parecer paradoxal, realista – no sentido ontológico – da realidade. Sim, porque a realidade nunca para, estando sempre em constante transformação, tal como insistem todos os tratados de alquimia. O direito alquímico precisa dar conta desse processo, razão pela qual se apresenta como um sistema em que a interpretação não é monopolizada e controlada sob a forma de poder por uma casta específica, e sim aberto a toda uma comunidade de intérpretes ou, nas palavras de Deleuze, a uma “comunidade de usuários”.

Trata-se aqui de uma proposta totalmente diferente da de Häberle e seus epígonos, centrada na ideia de sociedade aberta de intérpretes da Constituição (HÄBERLE, 1975), dado que Deleuze aponta para a extinção do Poder Judiciário, ao contrário de Häberle, que pensa em um tipo de morna “colaboração” entre a esfera pública pluralista (die pluralistische Öffentlichkeit) e os órgãos estatais. Nesse sentido, a ideia deleuziana – por certo vaga e imprecisa, o que, contudo, não constitui um problema para uma ficção crítico especulativa, cujo objetivo não é resolver problemas concretos, e sim fazer pensar diferente – é ainda mais radical do que as alternativas postas por Foucault e os militantes maoístas no célebre debate sobre a justiça popular que, de qualquer forma, tanto na óptica desconfiada de Foucault quanto na visão dogmática dos maoistas, ainda diz respeito a um tipo de poder separado que limita a interpretação jurídica (FOUCAULT, 1972). Ao contrário, na perspectiva de Deleuze, conforme ele afirma em uma entrevista concedida a Antonio Negri (DELEUZE, 1990), a jurisprudência é algo importante demais para ser deixada a cargo de juízes, que não conformam mais do que um comitê moral de “sábios” pseudocompetentes. É só dessa maneira, desmonopolizando o uso da interpretação, que se pode passar do direito à política, conclui o filósofo francês.

Caso queiramos aproximar a ideia de Deleuze que inspira meu “direito alquímico” de alguma conceitualidade jurídica realmente existente, não encontraremos o seu símile nos atualíssimos Häberle ou Foucault (com seus “maos”), e sim em algo muito mais antigo: o direito judaico. [25] Em um artigo exemplar, Karl-Heinz Ladeur e Ino Augsberg fazem notar que o direito judaico se dá como uma polifonia de infinitas interpretações que se constroem de maneira comunitária e impessoal, não centrada na figura de um autor, eis que o próprio Deus “aprende” com as interpretações infinitas de suas criaturas.[26] Tal se deve a vários fatores culturais, linguísticos e históricos, entre os quais se conta a própria estrutura da língua hebraica que, não tendo vogais, exige que o leitor, no simples ato de ler a lei, a interprete. Assim, para um judeu – e para um alquimista, acrescento –, interpretar é uma atividade cotidiana, necessária e comum – ou seja, que diz respeito a todos – cuja coerência e correção não se relacionam a um conjunto abstrato e geral de normas, mas aos fatos mesmos da vida cultural aos quais o direito se aplica, de modo que não se pode falar aqui de arbitrariedade, mas de uma inessencial comunidade de múltiplos intérpretes,[27] ou melhor, de uma comunidade de múltiplas performances (AUGSBERG; LADEUR, 2010-2011, p. 445).

Augsberg e Ladeur, com base no direito judaico, nos ensinam a desconfiar da aparentemente simpática máxima paulina segundo a qual “a letra mata e o espírito vivifica” (2 Coríntios 3:6), dado que, apesar de parecer liberatória diante da suposta dureza e inflexibilidade das leis escritas, esse dito, na verdade, legitima o espírito como uma metaautoridade que, planando acima da comunidade, a determina.[28] Devemos sempre perguntar: quem interpreta o espírito, quem lhe dá voz? A resposta, evidentemente, não está na comunidade, e sim em um corpo especial de “intérpretes do espírito” que, no Brasil, por exemplo, se encarna misticamente nos onze indivíduos que compõem o Supremo Tribunal Federal. Não é à toa que muitas das arbitrariedades praticadas por juízes encontram a sua justificação na suposta necessidade de ir além da letra fria da lei e encontrar o seu espírito, a mens legis. Tal foi uma prática recorrente no direito nazista e hoje retorna, sob novas facetas, nas teorias da argumentação “juizocêntricas” de autores como Dworkin e Alexy, como demonstrei em outro trabalho (MATOS; SOUZA, 2019).

Diferentemente, a comunidade de intérpretes do direito alquímico desconsidera o dualismo entre letra e espírito da lei, dado que, para ela, a lei expressa antes de tudo uma dimensão performativa na qual a interpretação se dá enquanto processo de autoconstituição da comunidade. Nesse sentido, a expressão de Deleuze – “comunidade de usuários” – é exata, pois destaca o uso, e não a autoridade, a autoria ou a propriedade. De fato, o uso é a figura medial que, não sendo ativa nem passiva, desarticula ambas as dimensões, em especial quando se fala de um uso de si mesmo, quando não se pode separar quem usa de quem é usado. O direito alquímico não se resume a uma série de normas separadas e impostas interpretativamente a certo grupo humano por uma casta de juízes, tratando-se antes de um contínuo e infinito processo interpretativo que a comunidade, usando-se, faz de si mesma. O mais arcaico é o mais atual. 

V

Antiquissima quaeque commentitia

As coisas antigas são todas inventadas

Sim, o mais arcaico é o mais atual. Mas aqui se trata de um tipo especial de arkhé, entendida não como origem (Ursprung), e sim como ponto de emergência (Entstehung), ideia que, para mim, tem um sentido ao mesmo tempo ontológico e político. Conforme afirma Agamben ao analisar o painel nº 46 do Atlas Mnemosyne de Aby Warburg, todas as imagens ali recolhidas – a “senhorita levadepressa” (Fraulein Schnellbring) do afresco de Ghirlandaio na Capela Tornabuoni, um relevo romano em marfim, uma sibila da catedral de Sessa Aurunca, algumas miniaturas de um manuscrito florentino do século XV, um detalhe de um afresco de Botticelli, o nascimento de João Batista de Filippo Lippi, a fotografia de uma camponesa tirada pelo próprio Warburg e muitas outras aparições – são arcaicas porque nenhuma delas é original ou cópia, tratando-se antes de encarnações possíveis (Pathosformeln, na linguagem de Warburg) de uma rede de relações a que se dá o nome de “ninfa” (AGAMBEN, 2008, p. 30). Essas redes arcaicas podem ser aumentadas e interpretadas indefinidamente, das maneiras mais pessoais e ao mesmo tempo mais impessoais, colocando em xeque esses dispositivos, ou seja, a subjetividade e a objetividade.

Eis um bom exemplo no qual o direito alquímico poderia se inspirar, de modo a admitir uma hermenêutica infinita, não hierárquica (sem original ou cópia), dessubjetivada (incapaz de criar sujeitos sujeitos ao direito) e desobjetivada (não se resumindo a ser instrumento de um dispositivo objetualizante como o capitalismo). Uma hermenêutica assim seria coerente não no simples nível interno de sua sistematicidade ou na dimensão externa do discurso justificativo que a ordem faz sobre si mesma, mas no nível paradigmático e exemplar da história. A normatividade – eterna work in progress – se construiria então à semelhança da alquimia, ou seja, sem qualquer ideal de pureza, privilegiando a mistura, a conjunção e a mestiçagem. Em tal hipótese, poderíamos finalmente deixar de defender ou criticar uma teoria pura do direito, e ao abandonar esse campo, apostar em várias mixagens jurídicas, cada qual adaptada a seus particulares territórios, climas, costumes, histórias e valores, sem a necessidade de se organizar cientificamente em um sistema de normas gerais e abstratas.

Com efeito, para construirmos direitos alquímicos é preciso criticar os fundamentos metafísicos do Estado de Direito e sua democracia representativa, ambos fundados na noção “científica” de leis gerais e abstratas que remetem ao princípio unificante da soberania. Esta, reduzindo a multiplicidade à unidade e qualificando toda diferença enquanto privilégio faccioso ou exceção governamental, garante a legitimação do sistema em um horizonte no qual já se operou a naturalização da compreensão segundo a qual “a lei deve ser igual para todos”. É nesse contexto, conforme explica Clastres, que surge um “meta-nós” sob a forma do Estado (CLASTRES, 2013, p. 60), quando então a separação, a representação e a hierarquia se tornam os princípios fundamentais da sociedade.

Por mais que a ideia de generalidade, traduzida juridicamente na igualdade de tratamento de todos os cidadãos perante a lei, tenha tido funções revolucionárias na perspectiva iluminista das lutas contra o Antigo Regime nos séculos XVIII e XIX, é preciso reconhecer que hoje a generalidade e a igualdade, cristalizadas enquanto valores trans-históricos e autojustificados graças à sua mera enunciação, possibilitam e aprofundam o domínio da lógica quantitativa do capital. Trata-se de um discurso que transforma toda multiplicidade e toda singularidade em padrões gerais unificáveis sob o signo de equivalentes universais, sejam chamados de “dinheiro” ou de “direitos fundamentais”. A democracia liberal é um sistema de aplainamento que não se importa com as reais diferenças entre as singularidades viventes, redundado quase sempre em projetos massificantes e unificantes de recorte totalitário. Ao contrário, os direitos alquímicos se enxergam como partes de um conjunto sempre crescente, sem o objetivo de constituir sistemas fechados baseados em leis gerais unificadas e princípios universalmente aplicáveis. A própria mecânica da diferença, característica dos nossos dias, exige que os fluxos sociais sejam tratados em suas irredutíveis multiplicidades, complexidades e singularidades, entendendo, com William Blake, que “One Law for the Lion & Ox is Oppression” (BLAKE, 1790, p. 24).

VI

Tandem tandem iustitia obtiner

No final, a justiça prevalece

Compreendo que, em um tempo como o nosso, a simples menção à palavra “democracia” possa gerar calafrios em alguns. Todavia, a democracia a que me refiro nada tem a ver com os dispositivos representativos – herança direta da teologia política medieval – que atualmente permitem o ressurgimento do fascismo em todo o planeta. Democracia não se confunde com representação política, tal como argumentei em outra oportunidade (MATOS, 2020). O que temos hoje e tivemos ao longo da história foram formas aristocráticas de representação travestidas com farrapos democráticos. Parafraseando Latour, nunca fomos democráticos. E isso porque a democracia tem sido compreendida, na melhor das hipóteses, como uma estrutura política que promove igualdade enquanto identidade, e não enquanto intensidade, ritmo, forma-de-vida. Igualdade e identidade são categorias unívocas e invariáveis, típicas do modelo científico em que se baseia o direito “puro” atual; já a intensidade se relaciona à alquimia.

Leibniz pode nos ajudar a compreender melhor essas ideias. Ele ensina que não há no mundo dois entes idênticos, já que dois entes idênticos não seriam, de fato, dois entes, e sim um único ente. Ora, se dois entes são totalmente idênticos, de modo a serem indiscerníveis um do outro, não estamos diante de dois entes, e sim de um único ente.[29] Daí a inexistência de identidade na natureza, como descobriu a princesa Sophia de Hannover ao tentar encontrar duas folhas idênticas no jardim de Herrenhausen.[30] Da mesma forma que não existe identidade absoluta, também não existe separação absoluta. Dessa vez é Goethe quem nos auxilia. Em suas reflexões “científicas”, ele afirma que tudo é análogo a tudo, de maneira que é a variação da intensidade de nosso olhar que determina, como se fossem ilusões de óptica, os graus dessas analogias, que podem se mostrar enquanto identidade ou diferença: “Cada existente é o análogon de cada existente; por isso, a existência nos aparece, ao mesmo tempo, sempre separada e também conexa. Se exagerarmos a analogia, tudo se torna idêntico; se a evitarmos, tudo se divide ao infinito” (GOETHE, 1952, p. 706). Nessa perspectiva, em seu importante livro sobre indícios, sinais e singularidades como paradigmas da micro-história – proposta que se aplicaria perfeitamente ao direito alquímico –, Carlo Ginzburg recorda ironicamente o dito segundo o qual “o apaixonar-se é a superestimação das diferenças marginais que existem entre uma mulher e outra (ou entre um homem e outro)” (GINZBURG, 1989, p. 179).

Trata-se, portanto, de uma questão de ponto de vista. Adoto nesta ficção especulativa aquele que afirma não haver duas coisas idênticas – o ídios (ίδιος) dos gregos, o centrado em si mesmo, daí a palavra idiota – nem totalmente diversas, sendo assim forçoso reconhecer o múltiplo, ou seja, uma rede diferencial e sempre em movimento, um campo de tensões e correspondências precárias e mutantes que tornam possível a coniunctio, a mistura que é a verdadeira alma da alquimia. O grande desafio consiste em passar dessa percepção ontológica para uma vivência ética, quando poderemos então falar em democracia, agora não mais enquanto identidade ou igualdade, e sim como intensidade, como ritmo, como Grande Obra. Nela a mudança e a transformação fazem parte das coisas, são as próprias coisas, o ser é sempre sendo, de forma que não se pode isolar um ponto inicial ou se falar em pureza, visto que tudo está mesclado, tudo está em tudo, tudo co-labora com tudo.

Por isso mesmo, deve-se compreender para além de sua literalidade e aparente clareza o princípio alquímico que reza: “ex foetido purus”, ou seja, o puro emana do infecto, do impuro, do fedido.[31] A purificação não tem, na alquimia, sentido segregador, servindo antes para realçar a coparticipação do todo em tudo. Só se pode purificar os metais pouco nobres para transformá-los em ouro porque eles são e sempre foram ouro; tudo é ouro, mas isso significa que o ouro também é escoria, podendo sempre se reverter o ciclo. Temos assim diante de nós a infinita dança da matéria e das substâncias na qual nada realmente subsiste, tudo existe sem base, sem sub-, sem fundamento, tudo está posto fora de si mesmo porque no fundo não há fora nem dentro nem fundo. Tudo ex-iste, como que levitando dentro das águas infinitas do sendo, sem começo nem fim e principalmente sem identidade nem pureza, pois há somente mescla.

As reverberações político-jurídicas de uma tal ontologia são imediatas e radicalíssimas. Com efeito, um direito alquímico nega o princípio e o fim, eis que tudo sempre existiu misturado e sempre continuará existindo misturado, desinstituindo-se assim tanto o comando quanto o destino. Para comandar, alguém ou algo deve ser o primeiro, o criador que põe o criado, o Deus, o pai, o fundador. Do mesmo modo, o destino, o dever, a responsabilidade e todos os finalismos que conhecemos derivam da ideia segundo a qual, fundados em certo princípio, nos dirigimos a um final, a uma finalidade.

Sendo impuro, o direito alquímico antagoniza, nos seus próprios (in)fundamentos, o fascismo. Este, para além de todas as definições histórico-políticas de manual, corresponde a uma ontologia da pureza, pouco importa se falada em italiano ou não. Onde há pureza, há fascismo. Mais do que uma paixão pela morte, o fascismo se traduz como paixão pela pureza, e por isso ele ressurge e ressurgirá cada vez mais violentamente onde quer que os povos sejam levados a desejar mitos originários que narrem um tempo em que as coisas eram mais simples e não se misturavam, quando tudo e todos estavam em seus devidos lugares. Todavia, no exato momento em que essas pobres ficções falham – e elas só podem falhar –, convoca-se a morte para “consertar” a bagunça, para separar e marcar os lugares e, evidentemente, para exterminar – ou seja, levar para além do término, ex-terminus[32] – aqueles que trazem em seus corpos e mentes as marcas da mudança, da transformação e do fluxo.

Poder-se-ia questionar por que alguns desejam com tanta ânsia “voltar” a um tempo de pureza que somente pode ter sido inventado. A resposta está no mais impolítico dos afetos: o medo,[33] o pavor de se reconhecer no outro e no processo impessoal de (auto)(des)construção da realidade e assim perder a propriedade daquilo que faz as pessoas serem pessoas, ou seja, as noções jurídico-psicológicas de eu, sujeito, identidade, propriedade etc. Por seu turno, o direito alquímico não pode deixar de ser an-árquico,[34] sem fundo, sem fundamento, sem ser separado, sem comando, sem destino, sem finalidade. No mundo alquímico não há pureza, todos somos mestiços, todos somos de raça “inferior”, como dizia Rimbaud, salvo que não há raça inferior, superior, maior ou menor, só mistura, divina e borbulhante sopa dos seres, ou melhor, dos sendos.


Sobre o Autor: Andityas Soares de Moura Costa Matos – Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG/Brasil) andityas@ufmg.br

Fonte: Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD) 16(2):330-350, maio-agosto 2024 Unisinos – doi: 10.4013/rechtd.2024.162.08

Este é um artigo de acesso aberto, licenciado por Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional (CC BY 4.0), sendo permitidas reprodução, adaptação e distribuição desde que o autor e a fonte originais sejam creditados.


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Notas

[1]     Professor Associado de Filosofia do Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Doutor em Direito pela UFMG e Doutor em Filosofia pela Universidade de Coimbra. Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Direito. Av. João Pinheiro, 100, CEP 30.130-180, Belo Horizonte, MG, Brasil.

[2]     Trata-se de um détournement do mote clássico “ut pictura poesis”, ou seja, “na pintura assim como na poesia”, que consta de HORÁCIO, Ars poetica, 361.

[3]     Agradeço ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pela Bolsa de Produtividade que me permitiu escrever este artigo. Também agradeço a Ricardo Martins Spindola Diniz pela rara generosidade traduzida em conversas e preciosas indicações bibliográficas, sem as quais este texto não teria sido possível.

[4] Todos os emblemas de Alciato reproduzidos neste artigo foram fotografados diretamente da edição em oitavo editada por Paolo Tozzi (Pádua, 1618) com comentários de Claude Mignault e Laurentius Pignoriu.

[5] No original alemão: “Von allem Anfang an war dabei mein Ziel: Die Jurisprudenz, die – offen oder versteckt – in rechtspolitischem Raisonnement fast völlig aufging, auf die Höhe einer echten Wissenschaft, einer Geistes-Wissenschaft zu heben” (KELSEN, Hans. Reine Rechtslehre: Einleitung in die rechtswissenschaftliche Problematik. Studienausgabe der 1. Auflage 1934. Herausgegeben und eingeleitet von Matthias Jestaedt. Tübingen: Mohr Siebeck, 2008, p. 3).

[6] Eu entendo que Kelsen falhou em seu projeto. Todavia, essa derrota constitui a sua secreta vitória, dado que tornou possível uma leitura muito mais rica do direito, em especial quando se considera, contra a vontade expressa de Kelsen, a teoria pura do direito como uma teoria da violência. Cf. MATOS, 2013.

[7] Uso aqui o termo no sentido dado por Michel Foucault na primeira fase – “arqueológica” – de sua obra, importante em livros como As palavras e as coisas e A arqueologia do saber.

[8] Tenha-se em mente, por exemplo, a perturbadora obra Vampyroteuthis infernalis, tratado ontológico, linguístico e até mesmo ético em que Flusser “descreve” uma espécie de (inexistente) polvo das zonas abissais que conhece o mundo não pela visão, e sim pelo tato. Cf. FLUSSER, 2015.

[9] Devemos nos lembrar que, para Agamben, o exemplo constitui a figura ético-lógica capaz de desativar a exceção, uma vez que esta é uma exclusão inclusiva, enquanto a primeira é uma inclusão exclusiva. Cf. AGAMBEN, 2018, p. 34.

[10] Para uma leitura filosófica dos potenciais da alquimia em nossos dias, cf. o meu Contra/políticas da alquimia. São Paulo: sobinfluencia, 2024.

[11] A inspiração aqui são os três provocantes ensaios de Agamben presentes em Signatura rerum.

[12] Evidentemente, não assumo qualquer essencialismo, eis que há tantas tradições jurídicas quanto alquímicas. Trata-se aqui de um modesto exercício de pensamento centrado em características comuns e empiricamente observáveis na prática daquilo que se costuma chamar de direito e de alquimia, não de uma controvérsia histórico-conceitual sobre o que é o “verdadeiro” direito ou a “verdadeira” alquimia

[13] A literatura sobre emblemas é imensa. Uma lista bastante completa sobre a temática pode ser encontrada em: <http://www.camrax.com/symbol/emblemscholars.php4&gt;. No que diz respeito à relação entre os emblemas e Alciato, cf. BALAVOINE, 1982, MIEDEMA, 1968 e PRAZ, 2014.

[14] Sobre a possibilidade de “ver” as palavra em sua própria “coisidade”, sem o auxílio de imagens, cf. o novo e rabelaisiano livro de Agamben, que após citar uma carta de Melanchton sobre o tema, afirma: “L’idea che i significati abbiano un volto mette in questione l’interpretazione del linguaggio che Aristotele aveva sancito nel Peri hermeneias. Mentre per Aristotele le parole erano segni (semeia) o simbolo (symbola) delle affezioni dell’anima e queste invece similitudini o immagini (omonoia) delle cose, ora sono le parole a essere definite immagini e quasi pitture dei significati” (AGAMBEN, 2024, p. 36).

[15] Não se deve confundir emblemas e hieróglifos, que, todavia, podem ser tidos enquanto espécies – assim como as divisas, as alegorias, os símbolos, as empresas, as insígnias etc. – das chamadas “figuras sábias”, expressão proposta por MENESTRIER, 1662. A caracterização de cada espécie desse amplo gênero excederia em muito o escopo deste trabalho. Algumas indicações úteis podem ser lidas em BRACERO, 2001, LEAL, 2011 e VOLKMANN, 1962.

[16]Verba significant, res significantur. Tametsi et res quandoque significant, ut hieroglyphica apud Horum et Chaeremonem, cuius argumento et nos carmine libellum composuimus cuius titulus est Emblemata” (ALCIATO, 1546, p. 104).

[17] Bons exemplos dessa tradição estão em ROUILLE, 1570 e WITHER, 1635.

[18] Gerardin é categórico: “Tout ce qui est symbolique n’est pas alchimique”. Mais à frente, ele explica melhor sua ideia ao analisar

uma intricada imagem alquímica: “L’étude de toutes les relations résumées dans un tel schéma exigerait de longs développements.

La richesse des correspondances qu’il établit s’avère infinie. Et pourtant la realité des choses se montre toujours plus riche, puisqu’un

symbole reste incomplet : simple image, il n’est pas ce qu’il représente” (GERARDIN, 1972, p. 174 e p. 248).

[19] Por exemplo, o Mss. 3019 da Biblioteca do Arsenal, em Paris, que seria o mais importante, e o Mss. Francês 12298-9 da Biblioteca Nacional da França, que seria o mais belo, com impressionantes ilustrações em papel velino.

[20] Aldo Manutio publicou um segundo volume de Emblemata em Veneza no ano de 1546. Os dois volumes, o original e a edição de Manutio, foram publicados juntos pela primeira vez em Lyon por duas empresas concorrentes: De Tournes produziu uma edição em 1547 com 199 (113 + 8) emblemas, enquanto Rouille (editor) e Bonhomme (impressor) editaram uma versão em 1548 com 201 emblemas. Em 9 de agosto de 1548, eles receberam o privilégio de traduções para o francês, italiano e espanhol e continuaram a expandir o livro.

[21] Alciato tomou para si, na construção de seus emblemas, várias ideias do De duplici copia verborum ac rerum comentarii duo de Erasmo de Roterdã, um manual de 1521 dedicado a recursos formais e temáticos voltados para intelectuais.

[22] Trata-se de uma antologia do final do século XIII composta de 2.400 epigramas gregos compilados pelo teólogo e gramático bizantino Maximus Planudes (1260-1305).

[23] Este é o único emblema deste artigo que não foi reproduzido diretamente da edição Tozzi de 1618, e sim das edições de 1531/1534, dado que nas edições posteriores às originais ele perdeu boa parte de sua significação alquímica, se limitando a apresentar duas deusas (Pallas e Vênus) ao lado de um sábio (e não de Paris), afastando-se assim significativamente das três deusas presentes no emblema originário, inspirado no episódio mitológico já referido.

[24]The first facet of law, the initial dogma that the subject encounters, is neither text, nor letter – the litera mortua of the rule – but image, what is more strictly termed anima legis, the living and breathing spirit of law, the visible depiction of legitimacy, the dignity of legality enacted through the figure of justice being done” (GOODRICH, 2015, p. 34).

[25] Sobre as relações entre a alquimia e o pensamento judeu, é fundamental a leitura da quarta parte do clássico SCHOLEM, 1984. Cf. também PATAI, 2009. No que se refere ao diálogo entre a cabala e a tradição emblemática, cf. o importante trabalho de J. H. Chajes e Eliezer Baumgarten, no qual eles apresentam a edição crítica de algo que poderia ser um protolivro de emblemas cabalísticos, chamado pelos editores de O pequeno livro das formas cabalísticas e comparado aos emblemas renascentistas nos seguintes termos: “Like the Booklet, emblem books presented images accompanied by explanatory texts. Unlike the Booklet, the images of emblemata were typically representational rather than schematic-diagrammatic. They nevertheless shared a common presumption that their images were suffused with symbolic signification. Both asked the reader to study each image in light of an adjoining text that unpacked and elaborated upon its meaning” (BAUMGARTEN; CHAJES, 2022, p. 95).

[26]From a modern point of view, this statement expresses the notion that the content of interpretation is less determined by the text itself than by the previous traditional understandings of the passage by interpretive communities. These communities do not guarantee the communication of a meaning which is always already there. They do not secure the readability of texts. They are implied in acentric networks of questions and answers explicating the text beyond any auctorial intention. They cannot account for themselves, but are always exposed to a risky future which does not allow any certain prognosis of their consistency and endurance. The work […] is thus an infinitely laborious enterprise never coming to a definite result. In this enterprise, text and interpretation areinseparably intertwined” (AUGSBERG; LADEUR, 2010-2011, pp. 444-445).

[27] Em sentido contrário, é importante levar em conta a leitura de Daniel Boyarin em Socrates and the fat rabbis, para quem as múltiplas vozes da literatura hebraica – no Talmud, especificamente – podem ser reduzidas a um tipo de monólogo, tal como ocorre com os diálogos de Platão. De qualquer forma, esse estudo de Boyarin não se refere à especificidade da interpretação jurídica na cultura hebraica como um todo. Cf. BOYARIN, 2009.

[28]The antecedence of the Jewish law, its constitutive importance for the subject by making the subject dependent on the community, contradicts the Western-Christian privilege of the spirit as against being bound by the letter, the bodily. Its consequence is the primacy of legislation over interpretation of the law. […] The universality of meaning, or understanding, remains coupled to community, which itself permanently undergoes a process of self-transformation. […] In Jewish law, the risks of an unavoidable plurality of interpretations are limited only by a community of testimonies that are focused on the process of infinite perfection – and not on self-fulfilment of the individual” (AUGSBERG; LADEUR, 2010-2011, pp. 446-447).

[29] Trata-se do princípio da identidade dos indiscerníveis desenvolvido por Leibniz em várias de suas obras, desde a juvenil Disputatio metafisica de principio individui de 1663, passando pela Principia logico-metaphysica redigida provavelmente em 1686 e chegando à sua correspondência com Samuel Clarke, iniciada em 1715 e terminada em 1716 com a morte do filósofo.

[30] Cf. a carta que Leibniz endereçou à princesa Sofia de Hannover em 31 de outubro de 1705, na qual afirma: “Por toda parte há variedades atuais e jamais uma perfeita uniformidade, nem duas partes de matéria inteiramente semelhantes uma à outra, tanto no grande quanto no pequeno. V. A. E. bem o vivenciou quando sugeriu ao falecido Sr. de Alvensleben, no jardim de Herrenhausen, que ele tentasse encontrar duas folhas cuja semelhança fosse perfeita, mas ele não encontrou nenhuma” (LEIBNIZ, 1960).

[31] É interessante notar que, juntamente com outros três princípio alquímicos – transformação da matéria, correspondência entre macrocosmo e microcosmo e solve et coagula –, a ideia de ex foetido purus foi escolhida por Juliana Alvarenga para analisar as obras de quatro artistas contemporâneos – Apichatpong Weerasethakul, Joseph Beuys, Anselm Kiefer e Damien Hirst – que invocam até mesmo na materialidade de seus trabalhos a sujeira, a impureza, a decomposição e a morte. Cf. ALVARENGA, 2016.

[32] Uma impressionante genealogia do extermínio moderno pode ser lida em LINDQVIST, 1997.

[33] Como bem destacou Hobbes: “De todas as paixões, a que menos faz os homens tender a violar as leis é o medo” (HOBBES, 1965, p. 229).

[34] Venho trabalhando a ideia de an-arquia há alguns anos com base na leitura de SCHÜRMANN, 1982. Cf. MATOS, 2023.