Meu caro Mestre Arnaldo,
Venho de ler teu excelente trabalho Maçonaria e Cabala Judaica: Uma Associação Incomum publicado em Academia.edu, que tomei a liberdade de traduzir e publicar em meu blog https://bibliot3ca.com/ para que meus leitores pudessem se beneficiar de seu excelente conteúdo.
Primeiro, quero dizer que sou mestre maçom, M.I. há quarenta anos, e meu hobby é o estudo de todos os aspectos de Maçonaria, em suas diferentes formas. Considero-me um maçom incompleto, vez que decidi não ir além do simbolismo. Arrependo-me um pouco dessa decisão, mas, ao mesmo tempo considero que não reúno as condições para ser realmente um bom maçom: tenho dificuldades no departamento numinoso.
Gostaria, porém, de comentar sobre as ideias que me ocorreram depois da leitura do trabalho. Naturalmente, são comentários de alguém fora do ambiente acadêmico, logo faltam-lhes o rigor necessário, bem com a forma ideal.
Gostei de ver “Parece claro que este passo serviu aos propósitos políticos da Coroa, para pacificar uma situação social e política complexa,” uma visão não muito usual entre os maçons que preferem atribuir a invenção da maçonaria ao gênio iluminista de Desagullier et allia.
Mas, em minha opinião, faltou esclarecer tal situação que não se limitou apenas a “permiti(r) que homens de diferentes religiões, credos e lealdades políticas estivessem juntos e compartilhassem a mesma ética e princípios de filosofia”, mas representou um verdadeiro golpe de estado e usurpação da autoridade maçônica pela Grande Loja de Londres.
Essa visão da natureza política do nascimento da Maçonaria, tanto nos primórdios escoceses Jacobitas do século XVII quanto na sua reinvenção hanoveriana em 1723 é um conceito que não é alimentado pela versão “oficial” sustentada pela Maçonaria inglesa ou a Maçonaria conservadora em geral.
Minhas incursões amadorísticas pelos caminhos da historiografia maçônica me levaram a conclusões um pouco diferentes das suas, talvez por ter-me abeberado em fontes diferentes, mais modernas, como David Stevenson, Frances Yates e Marsha Schuchard.
Essa visão mais moderna, desenvolvida por estudiosos não-maçons tem a virtude de ser mais científica e menos ideológica.
Chamou-me particularmente a atenção a questão do judaísmo na sociedade escocesa, abordado por nossa colega de Academia.edu, Ms. Marsha Schuchard, que ajuda a entender a incorporação da Cabala na novel instituição que se desenhava no ambiente maçônico escocês caracterizado por sua natureza de manifestação da Reforma, no período extremamente rico do Renascimento Nórdico e da união dos reinos da Escócia e Inglaterra sob James VI.
Achei interessantes alguns excertos coletados aqui e ali, com atenção para as datas em que foram escritos:
“O primeiro príncipe cristão que expulsou os judeus de seus territórios foi aquele rei heroico, nosso Eduardo o Primeiro, que foi um flagelo também para os escoceses; e acredita-se que diversas famílias desses judeus banidos fugiram então [1290] para a Escócia, onde se propagaram desde então em grande número; testemunhe-se a aversão que essa nação tem acima de todas as outras à carne de porco.
James Howell, History of the Latter Times of the Jews (1653).
James Howell, The Wonderfull, and Most Deplorable History of the Latter Times of the Jews, of the City of Hierusalem (London, 1653), Epistle Dedicatory.
Ou
Da mesma forma dizem alguns que nossos Pedreiros são circuncisados
Porque a Maçonaria é um costume judaico…
The Free Masons: An Hudibrastick Poem (1723). .
Anon., The Free Masons: An Hudibrastick Poem (London: A. Moore, 1723); reprinted in Wallace McLeod, “The Hudibrastick Poem of 1723,” Ars Quatuor Coronatorum, 107 (1994), 13-20.
Ou ainda:
O Ramo da Loja do Templo de Salomão, posteriormente chamado de Loja de São João de Jerusalém, é como posso facilmente provar, o Antientista e o Mais Puro agora na Terra. A famosa e antiga Loja Escocesa de Kilwinning, da qual todos os Reis da Escócia foram Grão-Mestres Tempo-a-Tempo sem interrupção desde os dias de Fergus…[que] foi cuidadosamente instruído em todas as Artes e Ciências, especialmente em a Magia natural e a Filosofia Cabalística (depois chamada de Rosacruição)… Falando da Cabala, como a Maçonaria era chamada naqueles dias.
–Jonathan Swift, Letter from the Grand Mistress of the Female Free-Masons (1724).
E, finalmente:
A Maçonaria é uma instituição judaica cuja história, graus, obrigações, senhas e explicações são judaicas do começo ao fim, com exceção de apenas um grau lateral e algumas palavras na obrigação… A beleza e orgulho da Maçonaria é seu caráter universal, sua tendência a confraternizar a humanidade.
Rabbi Isaac Wise, Scottish Rite Mason, The Israelite (1855).
Dr. Isaac Wise, The Israelite (3 and 17 August 1855); quoted in Samuel Oppenheim, The Jews and Masonry in the United States before 1810. Reprint from Publications of the American Jewish Historical Society, 19 (1910), 1-2.
Também não há que se ignorar a sua natureza política de grupo de apoio à Casa de Stuart em um momento em que um rei escocês se preparava para entrar na cova do leão na Inglaterra protestante.
Não desprezo a vertente evolucionista que pretende vincular a novel instituição às corporações de pedreiros escocesas. Acredito que muito habilmente, os inventores da maçonaria se aproveitaram da estrutura de reunião maçônica dos operativos, para promover suas próprias reuniões que exigiam um elevado grau de cuidado, para evitar infiltrações de inimigos de James VI. Esse “gabinete de crise” supria inteligência, negociava alianças, buscava apoios, visando facilitar e garantir um reinado produtivo e tranquilo ao novo rei.
Outro ingrediente que reputo importante é o Rosacrucianismo, dentro do entendimento que “A grande maioria dos personagens relacionados com o lançamento dos “Manifestos Rosacruzes” se originaram do meio luterano alemão. É de se notar que o próprio Lutero foi um dos primeiros a utilizar uma “rosa-cruz” (o “selo de Lutero”, ou “rosa de Lutero”) como símbolo de sua teologia. Abaixo de muitas rosas de Lutero está a frase: “O coração do cristão permanece em rosas, quando ele permanece sob a cruz.” (Wikipedia) que reforça a percepção da Maçonaria enquanto elemento da Reforma Protestante.
Sou um grande defensor dos monges construtores (Mestres Comacines), a quem atribuo a origem dos maçons operativos em geral, via missões de evangelização tais como a missão de Pelágio e Santo Columba à Escócia. Inclusive traduzi o livro de Leader Scott, Os Construtores da Catedral, que venho de publicar na Amazon: https://www.amazon.com/-/pt/dp/6500738853
Mas, há que se diminuir a ênfase sobre as corporações de pedreiros escoceses, considerando-se a relativamente pouca importância deles, vez que as corporações de carpinteiros e ferreiros eram as corporações verdadeiramente importantes (métodos construtivos da época) e os pedreiros eram minoria.
Em resumo, entendo que a Maçonaria especulativa nasceu na Escócia como um grupo de apoio político a James VI, influenciada pelas ideias renascentistas que finalmente haviam chegado à Escócia, entre elas o hermeticismo, a alquimia e a cabala, reforçadas pela presença de uma importante comunidade judaica em Edimburgo. Os aspectos de secretismo foram tomados da Ordem Rosacruz e a materialização da estrutura e segredo tomados dos maçons operativos escoceses.
Atualmente estou voltado ao estudo do desenvolvimento desse embrião até seu ponto máximo, o Rito Escocês Antigo e Aceito, embora não alimente muita esperança, já que renunciei aos altos graus e permaneci no simbolismo.
Porém, o estudo dos elementos alquímicos e cabalísticos embutidos na Maçonaria tem sido muito produtivo na definição do caminho do Maçom e suas semelhanças com o Judaísmo.
Creio que já tomei mais do teu tempo do que se justifica.
Um triplo e fraternal abraço
J. Filardo M⸫M⸫


Gosto imensamente dos escritos do Mestre Filardo e devo “confiar” em seus conhecimentos historiográficos, vez que não possuo tantas leituras. Contudo, às vezes algumas dúvidas me assaltam. Por exemplo, “Abaixo de muitas rosas de Lutero está a frase: “O coração do cristão permanece em rosas, quando ele permanece sob a cruz.” (Wikipedia) que reforça a percepção da Maçonaria enquanto elemento da Reforma Protestante”, não apontaria mais para uma origem inglesa (protestante) do que escocesa (católica) da Maçonaria?
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Q I, Pucci
Não é o que a história revela. Quando a Maçonaria foi inventada na Escócia, o Calvinismo já estava implantado como religião oficial e mesmo os maçons operativos (para aqueles que acreditam na teoria evolutiva) já haviam mudado a base religiosa. A primeira base era aquela definida pelas Old Charges: crença em deus, fidelidade à igreja católica. No momento em que os Stuartistas inventaram a Maçonaria, o que informava a maçonaria operativa era o “Mason’s Word”, em que a fidelidade à igreja católica já fora removida dos “landmarks”, ou seja, o contexto do século XVI já era de protestantismo. Portanto, não há contradição.
A historiografia chapa-branca “oficial” da maçonaria esconde as verdadeiras origens políticas (suporte ao rei James VI que se preparava para assumir o trono inglês, em um contexto protestante, extremamente resistente à ideia de uma “caipira” escocês assumir o trono inglês, mesmo considerando que era seu “direito divino”.
Durante quase todo o século XVII, os reis ingleses eram escoceses da Casa de Stuart e precisaram do apoio da maçonaria “jacobita” escocesa, diante da hostilidade latente da sociedade inglesa protestante aos monarcas escoceses, considerados “católicos”, mesmo se publicamente professassem a religião protestante.
Esse apoio foi a principal causa da invenção da Grande Loja de Londres, com o objetivo de combater a maçonaria jacobita através de uma autoridade sancionada pela coroa britânica, uma vez que eventualmente o trono inglês foi usurpado aos Stuarts pelos conspiradores hanoverianos que conseguiram depor James II Stuart e colocar em seu lugar o seu genro estrangeiro William de Orange que abriu caminho para a Casa de Hanover.
Para piorar as coisas, os jacobitas que haviam concertado um apoio dos Suecos através da maçonaria, tentaram depor o monarca hanoveriano George I em 1714.
Foi a gota d’água e a coroa decidiu criar uma autoridade – a Grande Loja de Londres – que se encarregou e colocar ordem na casa, eliminar as lojas jacobitas e implantar lojas fiéis aos novos monarcas.
Esse é um resumo dos acontecimentos em torno da questão da origem da maçonaria como a conhecemos.
O que não é propagado é que aquela maçonaria politizada do século XVII trabalhava em um ritual que deu origem ao REAA (inexistente na Inglaterra) depois que James II foi exilado na França e levou consigo o Rito de Perfeição.
Também é pouco propagado que a Grande Loja de Londres renegou seus princípios estabelecidos em 1723 em favor dos princípios da Maçonaria escocesa implementada pelos Antients e, em 1813, pressionada pelo então Regente inglês – receoso de a divisão da sociedade inglesa afetar o moral do povo diante da ameaça napoleônica – capitulou e adotou os princípios dos Antigos.
Os princípios iluministas da Grande Loja de Londres serão retomados pela maçonaria francesa em 1801 e disseminados pelo continente e no Brasil em 1822.
TAF
Filardo
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Excelente explicação, querido Irmão. Obrigado.
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Nobre Ir⸫Filardo, com total respeito à sua decisão, e colocando-me com muita humildade, sinto-me seguro em afirmar que suas eventuais “dificuldades no departamento numinoso”, não seriam um obstáculo à sua incursão nos altos graus do REAA, caso assim deseje.
Pratico o York (americano) e considero que os graus simbólicos sejam o elemento mais importante da nossa instituição, mas acredito que algumas ordens superiores ou laterais contribuem para nosso entendimento geral acerca da maçonaria, mesmo que não nos identifiquemos muito com eventuais ritualísticas.
Ainda com muita humildade, sugiro que o irmão “curse”: os graus filosóficos do REAA, os superiores do York (americano), o Sagrado Arco Real (da maçonaria inglesa, mas não sei se posso associá-lo ao Rito de Emulação) e os Graus da Maçonaria da Marca (da maçonaria inglesa) – algumas lições desses sistemas parecerão repetitivas, pela influência de uns sobre os outros.
Grande abraço e sigo aprendendo contigo.
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Q⸫I⸫ Rodrigo,
Concordo contigo quando diz que eventuais “dificuldades no departamento numinoso” não seriam obstáculo para cursar os Altos (de)graus do REAA, mas isso só teria valor do ponto de vista cultural.
Descrentes (ou ateus de verdade) podem até ingressar na Ordem, mas vivenciarão apenas parcialmente a experiência maçônica. Viverão a fraternidade e o networking, mas perderão o mais importante que justifica o ingresso na Ordem: a realização integral do caminho do maçom na árvore da vida. Além disso, é preciso considerar que uma pessoa com numinosidade deficiente, jamais poderá ser um grau 18 do REAA ou Grau 7 do RM (o grau mais importante da vida maçônica) e eu sou sério demais para fazer as coisas só por fazer.
Na verdade, além de M⸫ I⸫, sou Grau 9 do REAA, Grau 4 do RM, Maçom de Marca e só.
No REAA, desisti diante da inutilidade do curso até o grau 9. Não senti que aprendia, a loja Atila de Melo Cherif só se preocupava com as finanças, sem qualquer pedagogia. Iniciações em massa, palestras vazias, nenhuma exigência, nenhuma avaliação. Senti que perdia meu tempo.
No RM, fiquei chocado com a nova cepa de maçom de extrema direita. Não consegui exercitar o conceito essencial da irmandade ─ MICTMR e não preciso me relacionar com boçais.
O grau de Marca me pareceu inútil para os maçons de formação latina, pois a obrigação de ajudar o outro é parte inerente da cultura dos ritos continentais.
O Sagrado Arco Real exige um “departamento numinoso” muito desenvolvido e só se justifica entre maçons crentes.
Quando ingressei na Ordem, eu era neoplatônico, mas especificamente panteísta (que mesmo hoje considero a numinosidade mais adequada ao maçom). Não consegui manter a pouca numinosidade de que dispunha em minha formação religiosa extremamente deficiente https://zehfilardo.wordpress.com/2012/07/08/corrigindo-uma-injustica-sem-tamanho/ ) e, progressivamente, passei aos estágios de agnosticismo https://bibliot3ca.com/por-que-sou-agnostico-robert-g-ingersoll-1896/ e ateísmo esclarecido.
Hoje sou profundamente ateu. Continuo na Ordem porque minha loja é excelente e trabalha no Rito Moderno. Mas não consigo deixar de me sentir hipócrita e, de certa forma, desonesto. Mas tento me redimir com esse blogue onde procuro aumentar a cultura dos maçons.
É complicado.
Um TAF
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