Por Ivan A. Pinheiro
Porto Alegre-RS, 10.03.24
Este texto dá início a uma série de anotações e reflexões que, se de quando em vez vierem a se estender por sobre a Maçonaria em geral, será com o objetivo de estabelecer o entorno, o pano de fundo, eis que o tema ora em foco é o RER[1] – Regime (Rito) Escocês Retificado. As iniciativas antecedentes, algumas na forma de traduções livres (Pinheiro, 2020, 2020a, 2020b), mas também textos autorais, individuais (Pinheiro, 2021, 2022) ou em parcerias (Pinheiro, Pellegrini, Varejão, 2023) serão revistas, ampliadas, organizadas e dispostas organicamente. O público-alvo dessa divulgação se constitui, fundamentalmente, dos Aprendizes Retificados e órfãos de orientação, mas também dos maçons praticantes de outros Ritos e desejosos de conhecer as nuances e as riquezas do RER.
Entre outras, por ora 2 (duas) motivações para compartilhar estas notas de estudos: (1) o entendimento, no que tange à Maçonaria Retificada, de que o estudo contemporâneo, sobretudo no Brasil, equivoca-se quando foca e salienta sobremodo os eventos, os personagens e os aspectos históricos do RER – sobre o tema não faltam textos, e por ser um Rito historicamente recente e em expansão, o mercado editorial acompanha o ritmo -; e, (2) a percepção, crescente, de que na ausência de políticas e estratégias formuladas e implementadas pelos dirigentes, as especificidades, as riquezas e as sutilezas do RER tendem a ser perdidas ou amalgamadas, seja pela miríade de influências exógenas, mas também a partir de atitudes e manifestações tendentes a fazer da Loja uma assembleia de manifestações antes e sobretudo religiosas, com o agravante do pensamento único. Tendo por certo que Maçonaria e Religião não se confundem, é preciso que os espaços e os domínios institucionais sejam claramente delimitados. Em que pese a multitude de ritos que acompanha a História da Maçonaria, ela é, por definição, mesmo no âmbito de cada Rito, essencialmente um espaço plural, polifônico, de estímulo e fomento às reflexões antes das reafirmações categóricas.
Ao contrário do que parece ser o senso comum, e que tem ganhado força, a circunstância de o RER ser declaradamente cristão, ipso facto não deveria levar os adeptos a abraçar acriticamente todo e qualquer dogma a ponto de, em termos práticos, no contexto da Maçonaria, abandonarem a consciência crítica. Ao fazê-lo, não se dão conta de que não só desmerecem a maior riqueza da obra do Criador, como também ficam à margem das considerações necessárias e indispensáveis em razão da existência de não apenas um, mas de vários cristianismos, uns reconhecidos e organizados na forma de instituições (a exemplo das Confissões e Igrejas), enquanto outros não, mas que no contexto de uma Escola Iniciática de antigas tradições, como se apresenta a Maçonaria, não podem(riam) ser desprezados. Por consequência, deixam de participar de um vivo debate no seio da Ordem e que tem por gênese, senão a crítica aberta com a demonstração dos equívocos, a leitura alternativa da sua obra fundadora, um midrash: o Tratado da Reintegração dos Seres (Pasqually, 2022). No âmbito interno, as implicações de uma ou de outra leitura não são de menor importância para a doutrina retificada, e do ponto de vista externo, e também contrário ao senso, torna-se plenamente justificada a já centenária querela entre a Igreja Católica e a Maçonaria e, neste caso, com muito mais razão a partir dos fundamentos doutrinários do RER.
De regra, como já demonstrado por Pinheiro (2023a) em levantamento baseado nos 3 (três) primeiros Editais da Confederação da Maçonaria Simbólica do Brasil, bem como por Pinheiro, Dutra e Mendes (2023) a partir dos estudos de pesquisadoras acadêmicas, o maçom produtor intelectual brasileiro predominantemente lê e consulta livros de autores maçons nacionais e, a julgar pelas manifestações críticas, que de tão polidas nem sempre deixam à evidência o problema em tela, escreve para e sugere elevado comprometimento com o status quo da Ordem; por exemplo, as críticas colhidas nos grupos informais, nas redes sociais, nas lives e podcasts, talvez porque mais etéreas, são mais objetivas e mesmo contundentes. Esse modus operandi, circunstancialmente necessário e eventualmente a única possibilidade, se traz vantagens, também traz desvantagens, pois se a base consultada é exclusiva ou predominantemente constituída por literatura maçônica, é de se esperar: primeiro, que fiquem fora do alcance do radar as mais recentes descobertas, textuais e materiais, conduzidas por estudiosos radicados em outros domínios, a exemplo da História, da Filosofia, da Psicologia, das Neurociências, da Arqueologia, entre outras fontes nutrizes da Ordem; e, em segundo, por consequência, a crítica interna então possibilitada a partir dos novos achados. No caso do RER, em razão, conforme dito, da existência de vários cristianismos, interessam sobremodo, por exemplo, autores não cobertos pela ortodoxia católica, bem como os achados conhecidos como os Manuscritos do Mar Morto e a Biblioteca de Nag Hammadi, cujo conjunto convida a novas leituras e ressignificações do cânone bíblico que, sabe-se, é um dos pilares fundamentais tanto do edifício maçônico em geral quanto do texto fundante do RER, conforme dito, um midrash. Trazer essas questões à luz para o debate no ambiente maçônico brasileiro é também um dos objetivos da série que ora inicia.
E voltando a (1) é preciso distinguir: a História da Maçonaria e do RER são sim importantes, mas constituem matérias propedêuticas, indispensáveis até, mas sem dúvida preparatórias para o estudo e a prática da Maçonaria propriamente dita, quando então são identificados os leitmotive e construídos os instrumentos indutores e facilitadores das transformações pessoais que, senão por osmose, pelo comportamento deliberado, reverbera (também pelo exemplo) no entorno; em síntese, é preciso não confundir e sobretudo não inverter a relevância dos meios vis-à-vis os fins. Quanto a (2): a liberdade conferida às Lojas, pelas Potências, se um dia foi pensada para respeitar as idiossincrasias locais, agilizar e qualificar as decisões, bem como estimular a criatividade, hoje, não tenho dúvidas, tem se prestado aos voluntarismos dos Donos de Loja (Pinheiro, 2023), o que inclui as omissões (inclusive o cumprimento às normas maçônicas)[2] e a permanência na zona de conforto que levam o Quadro da Loja ao pacto da vaidade com a mediocridade4: o silêncio que não demanda orientação e tampouco contesta, assiste o passar do tempo até que se cumpra o interstício para a progressão dos Graus, se exerça o oficialato para, finalmente, lograr a Instalação; e assim o ciclo vicioso se perpetua pois, quem não sabe, não tem conhecimento de causa, não tem condições de preparar a sucessão. De outro lado, também em nome da liberdade, as Potências, tal como Pilatos, lavam as mãos; e assim, fica “tudo como dantes no quartel-general em Abrantes”.
As reflexões que se seguem têm como lastro a literatura e a prática acumulada pelo autor, sobretudo, a partir de dois pontos de observação: (1) Iniciado em 2010, foi Elevado e Exaltado no Rito Escocês Antigo e Aceito (REAA) em uma Loja Simbólica sob a jurisdição da Grande Loja Maçônica do Estado do Rio Grande do Sul; e, (2) desde 2017 pratica o Rito Escocês Retificado sob a jurisdição do Grande Oriente do Brasil, seccional Rio Grande do Sul. A esses pontos de observação podem ser acrescentadas as perspectivas colhidas ao longo da convivência no curso dos Altos Graus nos dois Corpos (REAA e RER) e das Lojas de Estudo e Pesquisa das quais participa.
Ciente da falta de hábito de leitura que identifica o brasileiro em geral, traço do qual não escapa o maçom-tipo, o propósito é trazer à reflexão textos que não ultrapassem as 5 (cinco) páginas, o que de imediato implica que o trato das matérias não poderá ser exaustivo e tampouco profundo, mas, espera-se, suficientes para despertar a curiosidade sobre os tópicos (alguns certamente provocativos) e motivar a leitura da bibliografia sugerida.
O próximo texto, o que então dará início efetivo à série, começará pelo começo dos começos, isto é, pelas cosmogonias e teogonias, pelos mitos e lendas criadas pela humanidade no esforço para compreender a si mesma e responder, entre tantas, às chamadas questões fundamentais: de onde viemos, para aonde vamos e qual o sentido da vida; para tanto eu recorrerei à síntese formulada por Gleiser[3] (1997) e a complementação fornecida por parte da vasta obra de Eliade (s.d., 1989, 2018, 2022). Só assim, penso, é possível compreender a Maçonaria contemporânea, pois pareceme que é a falta deste conhecimento que está na raiz de determinados posicionamentos que resultam em afirmações estabelecidas e reiteradas como verdades (quando não Verdades) inquestionáveis; o que se por um lado não deixa de ser um paradoxo à luz de tanta informação hoje democratizada, de outro pode ser explicado pela postura comentada acima: a comodidade do apego aos dogmas sempre reproduzidos ao invés do esforço para desenvolver o pensamento analítico-crítico. E me parece também isento de dúvidas, para conectar ao mundo real, chamado profano em contraponto ao universo maçônico, que a origem de muitas atitudes e comportamentos genericamente identificados como fundamentalistas e frente às mais diversas questões contemporâneas, da macropolítica à economia doméstica, está na ignorância, como aliás, reiteradamente o afirma o REAA alinhado com as contribuições das mais diversas Escolas Filosóficas.
Por fim, todo texto é também um convite ao bom debate, à crítica construtiva, aquela que a todos eleva.
Sobre o Autor:
Ivan A. Pinheiro – Mestre Maçom. O autor não expressa o ponto de vista das Lojas, Obediências ou Potências das quais participa, mas tão somente exerce a sua liberdade de pensamento e expressão, daí porque muitas vezes comunica na primeira pessoa do singular. E-mail: ivan.pinheiro@ufrgs.br. Por oportuno eu agradeço a leitura da versão preliminar deste texto realizada pelo Irmão Lucas Vieira Dutra, Mestre Maçom do Quadro da ARLS Presidente Roosevelt, 75, GLESP, Oriente de São João da Boa Vista.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ELIADE, Mircea. O Mito do Eterno Retorno. Lisboa: Edições 70, s.d.[4] Coleção Perspectivas do Homem.
______ . Mitos, Sonhos e Mistérios. Lisboa: Edições 70, 1989. Coleção Perspectivas do Homem, 32.
______ . Origens – história e sentido na religião. Lisboa: Edições 70, s.d.[5] Coleção Perspectivas do Homem, 34
______ . O Sagrado e o Profano. 4ª Ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2018. Coleção Biblioteca do Pensamento Moderno.
______ . Tratado de História das Religiões. 6ª Ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2022.
GLEISER, Marcelo. A Dança do Universo: dos mitos de criação ao big-bang. São Paulo: Cia. das Letras, 1997.
PASQUALLY, Martines de. Tratado da Reintegração dos Seres – em sua primeira propriedade, virtude e potência espiritual divina. 3ª Ed. Curitiba: AMORC, 2022.
PINHEIRO, Ivan A. Conversaciones en el Claustro: Perfil de un Candidato. Disponível em: ivan.pinheiro@ufrgs.br. 2020.
______ . Conversaciones en el Claustro: La Calidad debe Prevalecer Siempre sobre la Cantidad. Disponível em: ivan.pinheiro@ufrgs.br. 2020a.
______ . Cuadernos de Trabajos: Justicia y Clemencia. Disponível em: ivan.pinheiro@ufrgs.br. 2020b.
______ . Rito Escocês … Retificado. Afinal, retifica o Quê? A Trolha, n. 420, outubro,
2021, p. 28-35. Londrina, PR. Disponível também em:https://www.yumpu.com/pt/document/read/65897497/revista-a-trolha-edicao-420outubro-2021-educacao-o-ideal-da-maconaria?password=ideal.
______ . O Regime (e o Rito) Escocês Retificado (RER): senão um novo, um olhar complementar. Revista Ciência & Maçonaria, v. 9, n. 1, 2022, ISSN 2318-0129.
Disponível em: https://www.cienciaemaconaria.com.br/index.php/cem/issue/view/13/showToc. Acesso também por: https://bibliot3ca.com/2023/01/06/o–regime–e–rito–escoces–retificado–rersenao–um–novo–um–olhar–complementar/.
______ . Os Donos da Loja & Jogos de Poder. Disponível em:
https://www.freemason.pt/os–donos–da–loja–jogos–depoder/?utm_source=mailpoet&utm_medium=email&utm_campaign=publicamos–maisum–artigo–newsletter–post–title–freemason–pt_2. Acesso em: 05.05.23.
______ . A Produção Intelectual Maçônica no Brasil – um recorte a partir dos concursos promovidos pela CMSB em 2020, 2021 e 2022 – I/II. Edições “Universum”, Ed. 45, janeiro de 2023a, p. 25-56. Porto Alegre, RS: GLMERGS, Loja de Estudos e Pesquisas Universum n0 147.
PINHEIRO, Ivan A.; DUTRA, Lucas D.; MENDES, Jorge A. A Maçonaria no Divã: as perspectivas e as contribuições dos não maçons. Revista Ciência & Maçonaria, v. 10, n. 1, p. 51-65, jul/dez, 2023.
PINHEIRO, Ivan A.; PELLEGRINI, Alejandro; VAREJÃO, Alexander. Produzindo Trabalhos & Textos no Rito Escocês Rectificado (RER). Disponível em: https://www.freemason.pt/produzindo–trabalhos–rito–escoces–rectificadorer/?utm_source=mailpoet&utm_medium=email&utm_campaign=publicamos–maisum–artigo–newsletter–post–title–freemason–pt_2. Acesso em: 13.06.23.
Notas
[1] Sigla utilizada para referir tanto ao Regime quanto ao Rito Escocês Retificado, distinção que, quando necessária, se fará no corpo do texto.
[2] Refiro aqui, minimamente, a um Planejamento Anual das Atividades, um Orçamento e as prestações de contas regimentais, um Programa de Docência, um Plano de Atividades não só para os recém Iniciados como a cada progressão de Grau, os Planos de Sucessão (com treinamento e desenvolvimento), entre outros procedimentos básicos a toda e qualquer Organização, por menor que seja – em síntese: gerenciamento. 4 Lamentavelmente, porque constatada, é expressão usual no meio acadêmico contemporâneo.
[3] Marcelo Gleiser é um físico, astrônomo e brasileiro que já há 30 anos está radicado nos Estados Unidos aonde leciona e pesquisa a partir da Faculdade de Dartmouth. Em 2019 foi o vencedor do Prêmio Templeton – o “Nobel da Espiritualidade” – e, ao lado de Miguel Nicolelis e Suzana Herculano, atualmente é um dos principais divulgadores da ciência, no Brasil e no mundo.
[4] Texto obtido por reprografia, dados da fonte comprometidos; a obra foi concluída em 1947 e a primeira edição, em francês, data de 1969.
[5] Texto obtido por reprografia, dados da fonte comprometidos.
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