Ivan A. Pinheiro [1]

Os avanços das Ciências e das Tecnologias, principalmente quando de natureza disruptiva (alguns preferem radical, em oposição à incremental) historicamente têm causado espanto, quando não incredulidade, mas também receio, sobretudo quanto às possibilidades de uso (se para o bem ou para o mal) descortinadas a partir do novo estado da arte. O caso mais recente, e que tem ocupado crescente espaço em todas as mídias, bem como no seio da Maçonaria, é o da Inteligência Artificial (IA). E um dos motivos que tem elevado as preocupações é fato de que ela possibilita criar efetivas realidades quando, na realidade (desculpem, mas…), não passam de virtualidades por vezes utilizadas para construir narrativas maliciosas que, então, ganham a denominação de fake news

 Agrava esse cenário, a constatação de que desde a Antiguidade, mas há claros sinais de que o quadro tem progressivamente piorado, as pessoas são motivadas e mesmo tomam decisões a partir da primeira informação recebida (a exemplo das manchetes jornalísticas), sem a preocupação de checar a matéria, questionar  a autoridade do autor (e/ou do veículo), assim como dos seus interesses (declarados ou ocultos), ou seja, de ir, como se diz, “mais a fundo”; em última instância, arrisca-se a dizer, que abrem mão da principal característica distintiva do ser humano: o pensamento, a reflexão crítica. Não à toa Sócrates, mas também Platão, viam com receio a iniciativa de registrar as ideias – porque as pessoas deixariam de estimular a memória, raciocinar, entender e promover o parto de novos conhecimentos. Por isso o primeiro não deixou escritos (e não, como afirmado por alguns, porque não soubesse escrever) e, do segundo, se diz que o essencial do seu pensamento só foi transmitido oralmente aos seus discípulos e encontra-se, para os olhos que sabem enxergar, escamoteado em meio às entrelinhas da sua vasta obra. 

 A esses usos e costumes, em parte justificados pela falta de instrução, de tempo, de recursos de toda ordem, e todos os imperativos indispensáveis à sobrevivência, que a todos submete em diferentes espécies e graus, adicione-se um novo e agravante elemento (já comprovado) que mais recentemente passou a ser conhecido por um neologismo: pós-verdade – “situação na qual, na hora de criar e modelar a opinião pública, os fatos objetivos têm menos influência que os apelos às emoções e às crenças pessoais”. Em outros termos: o apelo ao subjetivismo e às ideologias é instrumento, e não se pode excluir as intenções maliciosas, intencionalmente utilizado para sensibilizar (convencer, motivar, mobilizar) todos os corações e mentes, o que, naturalmente, inclui os maçons.  

 Ora, no que tange à Ordem, aonde tudo isso conduz? Todos, agora e com razão, se preocupam com os desdobramentos e os impactos do ilusionismo (com a aparência de real) das narrativas fake, sobretudo a partir do advento da IA, pois estas não mais se apresentam apenas como expressão escrita, mas também em formato de áudios e vídeos difundidos (viralizados) através das redes sociais (também um fenômeno antigo que logrou ampliação sem limites a partir das novas tecnologias). Todavia, não se observa, na Ordem, cuja matriz tem na genealogia incontáveis elementos vetero e neotestamentários, qualquer preocupação de análise crítica a um dos seus textos fundamentais, a Bíblia, tratado, em si mesmo, como a Verdade revelada, fora de questionamento. 

 Ora, ocorre que o maçom é um livre pensador, assim, nada lhe pode escapar à análise crítica, e com muito mais razão o texto fundamental da Ordem (em parte contemplado nos landmarks) independentemente do Rito, se, por exemplo, o Escocês Antigo e Aceito (REAA) ou Escocês Retificado (RER), se no curso dos Graus Simbólicos ou dos Altos Graus.

 Não bastasse o fato de a Bíblia não ser um livro propriamente dito (cujas partes guardam coerência e atendem a objetivos determinados e sob controle do autor), mas antes uma coletânea de mais de 60 livros e em sua maioria de autores desconhecidos, alguns destes (livros) também uma coletânea de outros tantos escritos (idem). Ademais, em razão de variados acontecimentos históricos, um dos marcos o exílio e o retorno da Babilônia, aos poucos foram surgindo várias Bíblias – também coletâneas, porém seletivas de textos. Portanto, sem entrar em grandes considerações e detalhes sobre inúmeros eventos (destruição do Segundo Templo, Concílios, cisões, Reformas, etc.) que deram causa às Escrituras tal como hoje conhecidas (o que inclui o tempo dos fundadores da Moderna Maçonaria Especulativa), isto posto, entre tantas, uma das primeiras questões que se levanta é: quando se diz que a Verdade está nas Escrituras, qual das Bíblias deve ser a baliza referencial? Sim, pois se não houver um e somente um quadro de referência, a valer a Verdade de cada texto e seus adeptos, decorre que não é possível, então, referir à Verdade (una), mas admitir a existência de múltiplas verdades (quanto à imortalidade da alma, parusia, ressurreição, livre arbítrio, vícios vs virtudes, etc.), o que equivale a dizer que não existe a Verdade; no limite essa visão conduz ao relativismo pagão. Ora, nesse caso a verdade deveria, então, ser buscada por outras vias, como o método científico que, cético e não dogmático, reconhece que a verdade está em contínuo processo de construção, revisão e aperfeiçoamento. 

 Não bastassem os grandes divisores das águas da História, as pesquisas a partir do entrelaçamento de saberes e alavancadas pelos avanços tecnológicos aplicados às Neurociências (memória, formação das percepções, das crenças, etc.), à Arqueologia (artefatos diversos) e à História Comparada, entre outros domínios (Filologia, Epigrafia, Economia, Política, Religiões, etc.) têm ora alargado mas também aprofundado o conhecimento exegético acerca das Escrituras, o que em determinados casos tem levado a um efetivo revisionismo. É fora de discussão que o início do registro das tradições orais – quando surgem os originais – não impediu que já a partir das primeiras cópias manuscritas as versões apresentassem diferenças, ora por supressões, ora por interpolações (a exemplo da Parábola da Mulher Adúltera) ou outras técnicas que hoje as levariam a ser classificadas como “edição revista e ampliada”, a tal ponto que o entendimento e as conclusões a partir de uma leitura sejam completamente diferentes, quando não contraditórias, se realizadas com base em uma das outras tantas cópias-versões em razão das diferenças encontradas.  

 Tome-se, por exemplo, o Novo Testamento, tão caro ao RER e que de regra tem início com o Evangelho de Mateus, seguido de Marcos, Lucas e, finalmente, João. Primeiramente, a denominação de autoria, só atribuída posteriormente (na Era Patrística), não corresponde aos autores oficiais, desconhecidos; assim, é forçoso reconhecer que a maioria dos textos são apócrifos, mas enquanto uns foram alçados à condição de textos canônicos, outros continuaram com a pecha de apócrifos constituintes do índex. Cronologicamente, o de Marcos deveria ser o primeiro, fato que seria irrelevante se o ordenamento não modificasse a leitura e o entendimento, senão por outros motivos, porque os autores de Mateus e Lucas se valeram do conteúdo do autor de Marcos. Todavia, há uma fonte ainda anterior, não contemplada nas principais Bíblias, o chamado Evangelho Q (quelle (alemão) = fonte), na qual também se basearam (textualmente) os autores de Mateus e Lucas. E a leitura comparada das cópias de um mesmo Evangelho permite identificar interpolações e supressões que, por sua vez, quando confrontadas com os demais Evangelhos, levam a contradições internas inconciliáveis; assim, afinal, qual deles é o efetivo portador da Verdade? Por exemplo, sobre o papel da mulher na sociedade da época, conforme a carta paulina objeto de estudo, o entendimento extraído será completamente distinto. É justo e perfeito assumir apenas as partes coerentes e descartar as demais? E sem pretender exaurir o tema, porque ora não é o propósito, a prevalecer a ordem cronológica, além do Evangelho Q, as Cartas (Epístolas) de Paulo (e de todas, 12 ou 13, sabe-se que apenas 7 são verdadeiras), assim como o Evangelho de Tomé (ao qual também não faltam críticas) deveriam ser os textos de abertura do Novo Testamento. 

 Assim, aos erros involuntários e produtos da transmissão oral em tempos espaçados, somam-se as modificações intencionais e estratégicas dado o contexto histórico de acirradas disputas internas (entre os cristianismos emergentes e rivais), mas também contra adversários externos (os romanos e o rabinato constituído pelos judeus fariseus) por poder e hegemonia.

 Nesses termos, parece claro que a leitura e a exegese bíblicas deveriam exigir maior e redobrada atenção por parte dos Iniciados na Ordem, pois se de um lado o conjunto de textos reúne fatos efetivamente ocorridos e em locais já identificados, o que para alguns é prova cabal da historicidade e da veracidade definitivas das Escrituras (e que apesar do grave erro de indevida generalização encontra larga acolhida entre os incautos), de outro lado não restam dúvidas de que em meio àqueles acontecimentos podem ser encontradas incontáveis ficções que, no conjunto da obra, tiveram por objetivo construir uma narrativa capaz de orgulhar e unir os adeptos contra todos os oposicionistas e agressores, internos ou externos conforme já mencionado anteriormente. 

 Reunindo então as partes do quebra-cabeças, aos olhares mais atentos não passam despercebidas as similaridades: o que são as supressões, as adições, os recortes descontextualizados, as edições seletivas, etc., senão ferramentas para a operacionalização do que hoje é denominado de fake news? E o que levaria os maçons a tanto se preocuparem com as fake news contemporâneas, alavancadas pelas ferramentas baseadas nos algoritmos de IA, mas a fazerem ouvidos moucos do que as novas pesquisas apontam acerca do seu texto fundamental?   

 Ainda que a Maçonaria, e também o mundo profano admitam diferentes níveis de leitura (a literal, a alegórica e a anagógica), para muitos estudiosos e eruditos (Israel Finkelstein – professor e arqueólogo israelense; Neil A.Silberman – professor e arqueólogo norte-americano; Mario Liverani – professor e historiador italiano; André L. Chevitarese – professor e historiador brasileiro; Shlomo Sand – professor e historiador israelense; Thomas Römer – professor especialista no Antigo Testamento; entre tantos outros), todos lastreados no estado das artes (estudos e pesquisas) em variados domínios (técnicas de datação, decifração idiomática e de símbolos, autenticação por cruzamentos, etc.) recomendam ser imperativo a releitura crítica da Bíblia. 

 A nós, Iniciados, cabe estar atentos aos desdobramentos que, naturalmente, sucederão em todas as áreas das relações humanas; a propósito: já estão sucedendo, mas este debate ainda não está presente na literatura maçônica brasileira, ainda predominantemente afeta à glorificação dos seus feitos, daí o convite (resposta através do e-mail) ora encaminhado à comunidade de livres pensadores. A lista acima, de autores e estudiosos, deixa claro e antecipa algumas respostas bem como a estratégia do estudo ora proposto: a análise crítica da Maçonaria dificilmente escapará “do mais do mesmo” se continuar lastreada em autores e fontes exclusivamente maçônicas que, ao invés do estudo metódico, insistem na promoção e na difusão de dogmas inquestionáveis.

 Ainda que à primeira vista desnecessária, uma palavra à guisa de esclarecimento: não se está, de modo algum, tecendo críticas a quaisquer das confissões cristãs, assim como às demais, mas se a Maçonaria e a Religião não se confundem, a primeira não pode fugir à análise crítica do que se atualiza (a partir das ciências e tecnologias) em relação à segunda, principalmente e sobretudo quando se tem em consideração o peso desta sobre aquela, pois o que se verifica em uma, cedo ou tarde reverberará sobre a outra. 

 A leitura crítica da Bíblia promovida no interior da Maçonaria pode dar início a uma nova Era, daí porque certamente resistências serão levantadas, pois se há vantagens, haverá também a contrariedade de interesses; todavia, penso que não há objetivo e legado maior da Ordem aos seus Iniciados do que o estímulo à consciência crítica, algo que, mesmo que a fraternidade não explicite a demanda, carece a olhos vistos, sendo suficiente para confirmá-lo o ambiente cacofônico das redes sociais e o autorreconhecimento de alguns trabalhos como “peças de arquitetura”.  

[1] Mestre Maçom. O autor se expressa como livre pensador, seus pontos de vista são absolutamente pessoais, não representam as Potências, Obediências e Lojas das quais participa, razão pela qual não raro se manifesta também com o recurso à primeira pessoa do discurso. E-mail: ivan.pinheiro@ufrgs.br. Porto Alegre-RS, 11.02.24.