Tradução J. Filardo
Entre as feministas maçons que marcaram a história na virada do século XX, Madeleine Pelletier e Clémence Royer são frequentemente citadas. Mas sabe-se pouco de Céline Renooz. No entanto, ela é autora de um trabalho monumental publicado entre 1921 e 1933, no qual ela não hesita em reescrever a História. Em sua versão, Jeová, o deus dos hebreus, era a divindade Ihaveh e a Maçonaria, uma sociedade secreta cujos mistérios eram reservados às mulheres.
“A idade de ouro é o longo período durante o qual a humanidade viveu sob o regime de Matriarcado”, escreve Céline Renooz, cujo fio vermelho da obra é a passagem do matriarcado, época em que as deusas reinavam nos céus e sacerdotisas oficiavam na terra, até a tomada do poder pelos homens.
É no Livro III, chamado O Mundo Judaico (1925), que encontramos uma abordagem das mais original da religião e da história dos hebreus, em geral, e do corpus maçônico, em particular. O Sepher é a primeira forma da Bíblia. Las, a Bíblia “sempre foi propagada em sua forma errada”, resultante de traduções gregas ou latinas, ou de versões rabínicas. Por isso, ela está “longe de ser a tradução exata do Sepher”. Assim, o Êxodo do Egito foi conduzido por Maria / Miriam, irmã de um pseudo-Moisés que não teria existido. Sua memória é perpetuada nas deusas Hathor e Ísis e na Virgem Maria.
As Premissas da maçonaria moderna
Todos os adjetivos que qualificam David na Bíblia estão no feminino. David significa “a favorita da deusa Hevah”. “David […] foi […] a mais alta expressão do poder moral da mulher, a mais bela personagem, a mais alta inteligência, mas também o mais dolorosa dos mártires …”. David é na verdade a rainha Daud. Também a luta entre Davi / Daud e Golias é apenas uma “parábola mostrando o homem que ataca a mulher pela força brutal, e a mulher que se defende pela força moral”. David / Daud e Jonathan tiveram, portanto, uma aventura heterossexual. Tornando-se rainha, Daoud escolhe Hebron como capital. As doze tribos lhe fizeram submissão. Então ela reconstruiu a cidade alta de Sion, graças aos trabalhadores vindos principalmente da Fenícia. Esses artistas também construíram um palácio para ela. No entanto, sob seu reinado, a contestação masculina cresceu. As lutas sustentadas pela rainha Daud a convenceram a estabelecer “uma organização nova, mas secreta, que permitiria aos defensores do Antigo Regime ginecocrático se reunir e se instruir e trabalhar juntos para a ação contra a invasão do poder masculino que se impunha pela força.” Com outras duas “Rainhas Magas” ou “Mágicas”, Balkis, apelidada Maqeda, Rainha da Etiópia ou de Sabá, e Elissar, apelidada Dido, Rainha de Tiro, Daud fundou uma irmandade feminina secreta.
Uma doutrina reservada às mulheres
A sociedade praticava três “graus” para desvendar “segredos hieráticos”, os da “ciência divina, isto é, feminina”. A recepção de um homem na Ordem Secreta era possível, mas sujeita a muitas precauções. Somente o primeiro grau era dado aos homens. Apenas alguns podiam receber os graus seguintes. O sinal de agrupamento (o D, Daleth, equivalente do tau egípcio e ao grego T) se tornou o esquadro maçônico. O ensino do 1º grau se baseava na explicação da “cosmogonia de Miriam”, uma ciência baseada na teoria da evolução segundo Renooz.
No segundo grau, aberto às mulheres, começava verdadeiramente o ensino da doutrina secreta: a compreensão do Grande Arquiteto do Universo, uma fórmula resumindo as deusas sintetizadas em um “coletivo Theos” e o aprendizado das leis permitindo realizar a harmonia espiritual do homem e da mulher. Esta realização mística era simbolizada por uma estrela flamejante com a letra G no centro, a primeira letra do nome do sexo feminino em várias línguas. A palavra de passe era Cybele, cuja alteração dará Schibboleth.
Uma lenda central foi instituída e comunicada ao terceiro grau. A “grande mestra inocente”, avatar de Myriam / Hathor / Isis / Maria, aliás Hiram foi vítima de três assassinos. Ela teria sido enterrada viva. “A acácia que simbolizava a mulher e seu trabalho científico tornou-se a árvore funerária…”. Mac-Benac, a carne deixa os ossos, significa a desunião do homem e da mulher.
Quando Daoud morreu, um de seus filhos, Salomão, derrubou a sociedade Davidiana e instaurou a realeza masculina sobre as ruínas da ginecocracia. No entanto, durante o seu reinado, os mistérios continuaram a ser celebrados, mas certos segredos foram quebrados. Para continuar a fazer viver secretamente o ensino, cinco novos graus foram criados.
Maçonaria vermelha
Mestra Secreta com o objetivo de reagir contra duas reformas de Solomão: a remoção da Deusa Mãe e a atribuição das crianças somente ao pai.
Mestra Perfeita, com foco na busca pelos homens assassinos da mestra Myriam / Hiram.
Secretária íntima que estigmatiza o sacerdote (kohen) que escutava as portas para surpreender os segredos dos “Mistérios”.
Preboste e Juiz com o objetivo de criar uma contra-justiça feminina secreta oposta aos Harodim, “espécie de policiais […] instituídos pela dominação masculina”.
Intendente dos edifícios, guardiões da legitimidade do primeiro templo feminino.
A autora afirma que esses graus não são amplamente praticados porque não são compreendidos hoje na Maçonaria Masculinizada.
O triunfo dos homens
Finalmente, seguem-se as sociedades secretas durante o cativeiro babilônico. Novos graus são instaurados, incluindo a do Grã Mestra Arquiteta. Seu presidente, vestido de mulher, representa o profeta Daniel. O ensinamento é o da Gnose, que “deve ser aquele da lei dos sexos”. Este grau confere “um caráter sacerdotal, o diaconato”. O recipiendário tem que engolir uma “pasta mágica” que “representa a doçura, a sabedoria, a força e a beleza”, isto é, “as qualidades da Mãe”. Para salvar “os escritos das grandes iniciadoras”, os adeptos decidiram escondê-los em cavernas, simbolicamente sob uma abobada sustentada por nove arcos. Esta é a origem do Real-Arco, e depois do Perfeito e Sublime Maçom.
No livro V, encontramos uma espécie de codicilo: uma israelita, Johanna (que a história chamará de João) tenta reconstruir a antiga religião de Israel. Ela publica Evangelhos e reagrupa discípulos, os primeiros cristãos, mas foi Paulo quem se impôs dentro daquela seita. As mulheres e a Razão, faculdade eminentemente feminina, foram então derrotadas. O Deus-Pai do judeu-cristianismo se impôs. Os homens triunfaram sem glória na Igreja e na cidade, levando à coorte de infortúnios das sociedades patriarcais: despotismo político e conjugal, irracionalidade, cientificismo masculino, moralidade religiosa e machismo social, violência social e familiar, prostituição, escravidão e guerras.
A obra de uma feminista
Pode-se sorrir ou até mais diante da leitura das alegações de Celine, mas parece preferível colocá-las de volta no contexto do tempo. De certo modo, eles são o espelho, o contraponto do discurso misógino, sexista e antifeminista, de uma grande parte de cientistas e intelectuais, em particular, e da sociedade global em geral. Da mesma forma, estamos em uma visão ocultista da Bíblia e nas interpretações esotéricas das religiões em geral, mesmo se Céline Renooz se declarasse ateia.
Os ritos e práticas religiosas e espirituais e textos sagrados desempenham um papel central na construção de hierarquias de gênero. É até mesmo no corpus mitológico. Os atuais trabalhos das ciências sociais mostram que o mito é, em essência, uma narrativa verdadeira-falsa. Assim é o da origem das mulheres. A maioria das histórias descreve a mulher criada depois do homem, outras simultaneamente. Uma minoria postula a anterioridade feminina à imagem de certos mitos ameríndios (Pueblos), de áreas polares (Inuit), da África do Sul (Sans ou Moklums) ou da Indonésia (Riungs).
Apesar de seus excessos, suas extravagâncias e suas “viagens”, Céline Renooz teve, de certo modo, intuições da pesquisa contemporânea em ciências sociais. Na década de 1960, nasceu um campo de estudos multidisciplinares denominados estudos femininos cujo primeiro passo foi uma crítica ao viés sexista das referidas ciências, ao androcentrismo do pensamento científico e à assimetria no tratamento metodológico estendido aos dois gêneros, a presença, o papel e as atividades das mulheres na maioria das vezes não sendo mencionadas ou sendo subvalorizadas.
Esta nova abordagem não pode ser sem consequência sobre a apreensão muito recente da Maçonaria pelos pesquisadores. Se a recepção de mulheres na maçonaria (ou em uma instituição equivalente) tivesse seguido a visão de Céline Renooz, qual seria o lugar e a natureza da presença feminina na Arte Real, ou em Ordem outra e ainda assim a mesma? Mas isso é outra história.
Céline Renooz, uma feminista diferencialista
Nascida em 7 de janeiro de 1840, em Liège, de uma mãe francesa, Marie Louise Mauge (1799-1870) e um pai belga, Emmanuel-Nicolas Renooz (1800-1856), notário e vereador, ela se casou aos dezenove anos anos com um estudante espanhol, Angel Muro Goiri (1839-1897), endividado e mulherengo que seus pais tinham enviado a Paris, junto aos Renooz para continuar seus estudos na Escola de Minas. O casal morou em Paris e depois se separa quando se encontra em Madri. Divorciada, Céline retornou a Paris em 1876, com seus quatro filhos, dos quais três morreram de tuberculose.
Em Paris, Celine se tornou uma leitora assídua da Biblioteca Nacional. Em uma revista, ela narrará a “iluminação” que a tomou um dia em 1882, depois de ler O Homem de Helvécio. Ela se tornou conhecida por sua Nova Teoria da Evolução, refutando pela anatomia a do Sr. Darwin. Ali ela desenvolveu a ideia de que humanos e animais eram “formas vegetais, que são reproduzidas fielmente nos estágios iniciais”. Ela captou a ira da tradutora de Darwin, Clemence Royer, uma nova co-fundadora da loja-obediência mista Le Droit Humain e mais tarde de Madeleine Pelletier. Apesar das críticas, acusações e piadas, ela agora fez de tudo para defender sua nova concepção da ciência.
Ginecocracia
Sem desanimar, Celine multiplicou conferências e artigos. Ali ela defendia a demolição das estruturas patriarcais e do pensamento misógino. Afirmava a superioridade natural e moral das mulheres: o princípio feminino, descrito como espiritual, seria guiado por altos sentimentos e intuições, enquanto o princípio masculino, apenas sensual, seria escravo de seus impulsos. Ela defendia um mundo “ginocrático” que daria às mulheres o monopólio da educação, da justiça e do sacerdócio e limitaria os homens somente aos trabalhos braçais.
Suas concepções feministas se afirmaram. Ela se opunha às feministas reformistas, especialmente às sufragistas, que ela descrevia como igualitárias. Céline queria ser uma feminista diferencialista: “[…] longe de reivindicar a igualdade de funções para os indivíduos de ambos os sexos, devemos reivindicar a desigualdade, colocando cada um em seu lugar: o homem com funções motoras, a mulher com funções sensíveis …” Em 1917, Céline Renooz tornou-se presidente honorário da Ação das Mulheres. Seus membros defendiam a primazia dos direitos maternos sobre as crianças, o separatismo social por sexo, a criação de uma segunda câmara de deputados, exclusivamente feminina, e um Supremo Tribunal de mães.
Maçonaria
Céline Renooz foi membro da Grande Loja Simbólica Escocesa (GLSE), então masculina e depois mantida após a formação da GLDF (1894) e mista em 1901. Em 30 de outubro de 1902, foi erigida a Loja nº 6, A Razão Triunfante, que a recebeu como maçom. Em março de 1906 ela estava adormecida. Céline Renooz parece então ter se filiado à Loja No. 1 (antiga No. 24) Diderot, que será a partir de março de 1909, a única loja da GLSE. Concomitantemente, a Grande Loja da França decidiu receber mulheres em uma nova forma de maçonaria de adoção. Celine, então sem obediência, voltou-se para a loja de adoção no. 376 bis, A Nova Jerusalem, mas ela não vai ficar ali.
Publicado na revista FM – Franc Maçonnerie