Tradução J. Filardo

 

MARIO A. DUJISIN

A expulsão dos judeus de Portugal em 1497 vista por Roque Gameiro (1864-1935)

 

O Portugal do Sefarad começa a ser gradualmente descoberto. Até o século XX, o mundo não sabia da existência nas montanhas do centro do país da última comunidade cripto-judaica da Europa.

Pouco a pouco, graças em grande parte à promoção do turismo cultural em aldeias antigas cuidadosamente preservadas, começamos a aprender sobre a história dos últimos judeus sefarditas secretos da Península Ibérica.

Encravada na Serra da Estrela, a maior cadeia de montanhas do país, a cidade de Belmonte é delineada a 2.000 metros de altitude como uma autêntica memória humana viva do riquíssimo e antigo Portugal judeu.

A origem remota de Belmonte está documentada pelo menos desde 1297 e ainda existe hoje com unidade, sinagoga, rabino, cemitério próprio e uma direção comunitária. Sua importância se deve mais à peculiaridade de uma resistência ao longo dos séculos do que ao seu peso demográfico ao longo de sua história.

Não longe dali, localizam-se antigas aldeias, hoje convertidas em localidades prósperas, tais como Covilhã, Guarda, Trancoso e Fundão. Mais ao sul, Castelo de Vide, Marvão, Alenquer e Évora são também referências inescapáveis ​​das antigas comunidades sefarditas portuguesas.

Os muros de Belmonte encerram a comunidade cripto-judaica, um nome que obedece a um conceito de clandestinidade: aparentemente católico, mas na verdade eles mantiveram seus ritos hebreus em segredo. São cerca de 200 pessoas, o que equivale a quase 10% dos habitantes da cidade.

Ester Mucznik, vice-presidente da Comunidade Judaica de Portugal, que dedicou quase toda a sua vida acadêmica como socióloga à pesquisa sobre o judaísmo lusitano, concluiu que 80% dos 10,2 milhões de habitantes do país têm origem nos “cristãos novos”, isto é, convertidos ao catolicismo devido à Inquisição.

“Isso explicaria a ausência de anti-semitismo em Portugal, porque ninguém pode dizer que não tem sangue judeu em suas veias”, disse Mucznik em entrevista à emissora de rádio britânica BBC.

No entanto, outras estimativas mais conservadoras sugerem que “apenas” entre 25 e 35 por cento dos portugueses têm origem judaica.

A cidade de Belmonte é reconhecida como um marco importante na história dos judeus que viviam na Península Ibérica.  Este reconhecimento deve-se a um engenheiro metalúrgico, o judeu polonês Samuel Schwarz (Zgierz, 1880 – Lisboa, 1953), que em 1917 foi trabalhar ali e descobriu, após incessantes e curiosas investigações, que nessa região existia uma comunidade secreta, que ainda mantinha certos costumes judaicos, tais como acender as velas no jantar da família às sextas-feiras e jejuar uma vez por ano.

Eles eram os cripto-judeus de Belmonte que ainda viviam como uma comunidade fechada.  Mesmo com o fim da Inquisição (1536-1821), eles não sabiam que o judaísmo era a religião que praticavam ou que ela era praticado em segredo, sem sacerdotes ou livros, e transmitida oralmente, de geração em geração.

Em 1925, Samuel Schwarz encontrou, em uma antiga sinagoga na região de Belmonte, uma pedra de 1297 com a inscrição de um verso bíblico.  Nesse mesmo ano, ele publicou o livro Os Cristãos Novos em Portugal no século XX, como a reedição da revista Arqueologia e História, da Associação dos Arqueólogos de Portugal, a que pertencia.

Em termos proporcionais, 200 judeus de Belmonte representam uma cifra modesta, diante de uma comunidade judaica observadora de 3.000 pessoas e dependendo das fontes, presumivelmente entre três e oito milhões de cristãos novos. No entanto, seu valor simbólico é enorme, assim como seu valor histórico, especialmente devido ao papel desempenhado durante os grandes descobrimentos.

Belmonte é dominada pelo palácio da família do mais famoso dos filhos da cidade, o almirante Pedro Álvares Cabral, que em 1500 chegou com sua frota às Terras de Santa Cruz, depois Brasil Português.

Pero da Covilhã, o explorador que preparou a rota marítima para a Índia cinco anos antes da viagem de Vasco da Gama em 1498 e o primeiro europeu que se estabeleceu na Etiópia com uma força de 3.000 soldados, bem como João Ramalho, o primeiro bandeirante(explorador de territórios virgens do Brasil), ambos de origem judaica da cidade vizinha de Covilhã, posteriormente convertidos ao catolicismo.

Nos séculos XV e XVI, os judeus desta região foram decisivos, especialmente na cartografia para os descobrimentos feitos pelos dois países ibéricos, que segundo o poeta Dom Luiz Vaz de Camões, o pai da língua portuguesa, “trouxeram novas mundos ao mundo “.

Em Portugal, a população sefardita foi sempre crescendo ao longo da Idade Média. No início do século XV, havia cerca de 30 comunidades.

Quando Cristóvão Colombo chegou ao continente mais tarde chamado América, em Portugal havia mais de 100 Judiarias (Bairros judeus) que proliferaram diante de uma quase ausência de ações contra este grupo étnico-religioso.

Ao mesmo tempo, o crescimento dos movimentos contra os judeus na Espanha, especialmente em Navarra, Castela e Aragão, desde meados do século XIV, criava um fluxo migratório para Portugal.

Outro fator determinante foi o estabelecimento da Inquisição na Espanha, que incluiu a expulsão dos judeus da Andaluzia nos primeiros anos do reinado dos reis católicos, Isabela de Castela e Fernando de Aragão.

Em 1492, ano da chegada dos espanhóis à América, e o fim da reconquista cristã com a queda de Granada, a última fortaleza árabe, os reis católicos promulgam o decreto de expulsão dos judeus. Foi o começo da Diáspora Sefardita.

Em Portugal, onde cerca de 30.000 judeus viviam na época, o rei D. João II recebeu muitos deles, cujo total foi estimado entre 50.000 e 70.000 pessoas.  Mas depois de sua morte, em 1495, seu sucessor, o rei Manuel I, casou com a princesa das Astúrias, Isabela de Aragão, filha do rei Fernando II e da rainha Isabel I. Sua aliança com os reis católicos através do casamento com a infanta, o fez também promulgar o edito de expulsão.

Portugal vivia então a sua idade de ouro: em 1498, Vasco de Gama descobriu a rota marítima atlântica para a Índia. Dois anos depois, Pedro Álvares Cabral chega à costa do que hoje é o Brasil.  Em 1505, Dom Francisco de Almeida tornou-se o primeiro vice-rei da Índia, marcando o início dos domínios coloniais europeus naquele subcontinente.  Entre 1504 e 1511, o almirante Afonso de Albuquerque garante para Portugal o monopólio das rotas marítimas do Oceano Índico e do Golfo Pérsico, que duraria dois séculos.

Apesar do fato de que a formidável expansão portuguesa foi em grande parte devido à precisão dos mapas dos cartógrafos luso-judaicos, é a partir de então, que esta comunidade começou a viver nas trevas que se prolongaram por cinco séculos. Apenas há cerca de 20, 25 anos vieram à luz, porque embora a Inquisição tenha terminado, o medo permaneceu nas comunidades de Belmonte e nas aldeias vizinhas da Serra da Estrela.

Até hoje, após 44 anos da revolução militar democrática de esquerda que derrubou a ditadura corporativista (1926-1974) do ultra-católico Antonio de Oliveira Salazar, a comunidade judaica de Belmonte continua sendo hermética e desconfiada.

Com efeito, as tentativas de diálogo com os habitantes da Judiaria de Belmonte são frustrados por gestos de transeuntes que indicavam uma recusa categórica.

Um papel importante em uma abertura tímida que começou a acontecer há uma década, foi assumido pela Direção de Turismo da Serra da Estrela, que realiza projetos destinados a convencê-los a abrir-se ao turismo, não por motivos religiosos, mas culturais e históricos porque quem quer conhecer a verdadeira história sefardita deve necessariamente visitar Belmonte.

Muito poucos aceitam apresentar o rosto ao exterior desta comunidade judaica, reconhecida como tal pelo Grande Rabino de Jerusalém apenas em abril de 2005.

Com as sinagogas banidas durante 500 anos, o culto era realizado nas casas, em segredo e em português, porque o hebraico, que eles estão recuperando agora, se foi perdendo ao longo dos anos.

Os líderes da comunidade judaica colocam ênfase especial em reconhecer o papel crucial das mulheres, que de geração em geração foram responsáveis pela transmissão oral da preservação do culto hebraico nesta comunidade forçada ao sigilo durante séculos e que não manteve qualquer contato com o judaísmo exterior.

Em um artigo publicado em 2017 pelo semanário Visão de Lisboa, Paulo Mendes Pinto, Coordenador da área de Ciências das Religiões da Universidade Lusófona não escondeu a sua indignação ao recordar que em plena Renascença, com o impulso formidável dos descobrimentos, negamos o direito à liberdade religiosa dos judeus primeiro, e depois de finalmente convertê-los ao cristianismo, nós os perseguimos, acusados ​​de serem ainda judaizantes. Deles, muitos morreram, outros se esconderam, e uma grande parte deles fugiu.

Eram portugueses que tinham a marca distintiva da mesma forma que tem outra religião. E eles foram perseguidos “apenas” porque eram os mais cultos, os mais instruídos, os mais versados ​​nos campos das diferentes ciências da época, enfatizou Mendes Pinto.

A perseguição durou séculos.  Um caso ilustrativo ocorreu em 12 de junho de 1937, quando o oficial do exército português Artur Carlos de Barros Basto, conhecido por muitos como o “Dreyfus português”, foi punido por um tribunal militar anti-semita e destituído de sua carreira militar.

O capitão Barros Basto foi condenado ao ostracismo, perdeu a sua pensão, atendimento de saúde e foi proibido de usar o seu uniforme. Seu crime não declarado era que, apesar de ser oficialmente cristão, o militar vinha de uma família de chamados “cristãos novos”, forçados a se converter ao cristianismo no século XV.

O episódio foi lembrado no final de 2015 por Pedro Vargas David, jornalista d’ O Observador de Lisboa

Após a revolução republicana de 1910, que acabou com a monarquia, cresceu o interesse do capitão Barros Basto por um retorno completo ao judaísmo. Ele começou a aprender hebraico, a estudar textos judaicos, eventualmente retornando completamente à fé judaica.  Ele fundou uma comunidade em Porto, composta em grande parte por outros cripto-judeus, erigindo uma sinagoga e uma Yeshiva (centro de estudos da Torá e do Talmud) reunindo muitas pessoas, não apenas daquela cidade, mas de todo Portugal.

Vargas David argumenta que é provável que isso, mais do que qualquer outra coisa, tenha provocado a ira das autoridades, que tentaram impedir seu trabalho e expulsá-lo do exército.  Ainda hoje, o legado do crime contra Barros Basto perdura.  Recentemente, as Forças Armadas juntaram-se ao Parlamento em uma petição ao governo por sua simbólica reintegração póstuma no Exército.

A questão do capitão Barros Basto é um emblema negativo da longa e complexa história dos judeus de Portugal, especialmente os episódios negros em torno da Inquisição, com a sua expulsão em massa e a sua conversão forçada ao catolicismo.

No entanto, Vargas David também recorda os momentos positivos, tais como o fato de que mais de um milhão de judeus refugiados europeus, fugindo dos nazistas durante o Holocausto, encontraram refúgio e passagem livre por Portugal, especialmente para as Américas.

Em 1944, na Hungria fascista aliada da Alemanha, Carlos Sampaio Garrido e Carlos de Liz-Teixeira Branquinho, dois diplomatas estacionados em Budapeste, ajudaram muitos judeus a fugir dos nazistas.

Em junho de 1940, quando a Alemanha invadiu a França, sem pedir autorização de Lisboa, o cônsul português em Bordeaux, Aristides de Sousa Mendes concedeu vistos indiscriminadamente a uma população judaica em pânico, com o que se estima salvou a vida de mais de 10 mil judeus. Em 1966, 12 anos após sua morte, ele foi reconhecido como Justo entre as nações pelo Estado de Israel.

Outro evento que assinalou um marco nessas relações traumáticas ocorreu no início de 2015, quando o governo de Lisboa aprovou novas regras para a concessão da cidadania portuguesa por naturalização aos descendentes de judeus sefarditas expulsos do país por mais de 500 anos.

Nessa altura, a então ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz, afirmou que a nova lei era a “concessão de um direito”, reconhecendo que os judeus viviam na região muito antes de o reino de Portugal ter sido fundado no século XII.

Cerca de 1.800 descendentes de judeus sefarditas adquiriram a nacionalidade portuguesa em 2017 ao abrigo da lei promulgada dois anos antes, e outros 12.000 ainda estão em processo de solicitação. A contagem do ano passado é seis vezes superior ao total de 2016, durante o qual a aplicação da lei encalhou em obstáculos burocráticos em meio a mudanças políticas.

Antes deste reconhecimento de recuperação de direitos suspenso por cinco séculos, entre 1988 e 2000 foram oficialmente oferecidas desculpas públicas aos judeus pela Inquisição, a perseguição e as mortes, pelo ex-presidente Mário Soares (1924-2017) e pelo Patriarca. de Lisboa, o cardeal José da Cruz Policarpo (1936-2014), respectivamente.

Em 2008, um monumento em forma de estrela de David foi inaugurado em abril de 2008 em frente à igreja de Santo Domingo, uma construção do século XIII, em uma praça central de Lisboa, para recordar uma das páginas mais trágicas da história dos judeus lusitanos: o genocídio de mais de 2.000 “cristãos novos”, por decreto de D. Manuel I, que começou no domingo de Páscoa e que se tornou conhecido como o massacre (pogrom) de Lisboa.

Durante três dias, frades dominicanos incitaram os habitantes da cidade a matar e queimar os convertidos (alguns historiadores afirmam que 4.000 foram mortos), considerados “eternamente judeus” pela Igreja Católica.

A inscrição na escultura recorda a matança:

“Em memória dos milhares de judeus, vítimas de intolerância e fanatismo religioso, assassinados no massacre que começou em 19 de abril de 1506, nesta praça.”

A placa é assinada por Lisboa, uma cidade de tolerância, frase escrita em 34 idiomas.

A inexorável passagem do tempo faz com que hoje se escreva uma nova história dos cripto-judeus sefarditas. Em toda a região de Belmonte, rica em vinhos e azeite de oliva, os costumes ancestrais sefarditas tornaram-se uma importante fonte de renda através da venda de produtos. kosher, uma denominação religiosa que indica que, em sua elaboração, os produtos só foram tocados por judeus liderados pelo rabino.

Na conclusão do ciclo de produção desses alimentos, um rabino sela e assina os recipientes como garantia de pureza e envia vinhos e óleos a ricos mercados de judeus de outras latitudes, especialmente dos Estados Unidos e do resto da Europa.

São os novos tempos da globalização.

 

Mario A. Dujisin

San Bernardo, Chile, 1944 . Estudou História na Universidade de Belgrado. Editor de «Outras Notícias».  Foi correspondente de mídia, como IPS, «Il Messaggero» (Roma) e «Correo Catalán» (Barcelona). Entre 1997 e 2005, foi diretor editorial da publicação mensal “Terra Viva” do Conselho da Europa.

 

 

 

Publicado originalmente na Revista Wall Street Internacional