José Barreto **

Versão revista e aumentada do posfácio a Fernando Pessoa, Associações Secretas e outros escritos, ed. José Barreto, Lisboa: Ática, 2011, pp. 239-288.

 

O artigo “Associações Secretas”, publicado por Fernando Pessoa no Diário de Lisboa de 4 de Fevereiro de 1935, foi, sem dúvida, o mais importante texto político que o escritor deu à estampa em toda a sua vida, tanto pelo seu conteúdo e oportunidade como pelo vasto público que alcançou. Ocupar a primeira página e as duas centrais do vespertino lisboeta lido pelas classes cultas era bem diferente do que escrever para a gaveta ou a arca, destino de muitas centenas de textos políticos escritos ao longo dos anos. Acresce que, num tempo de ditadura e mordaça à imprensa, Pessoa conseguiu misteriosamente esquivar-se ao rigor da censura e colocar na rua um texto de combate redigido num tom desafiante do poder, a recordar os idos da liberdade de imprensa, circunstância que provocou uma corrida às bancas e esgotou a tiragem aumentada do jornal. A importância do artigo advém, por outro lado, do significado pessoal e das consequências dessa rara intervenção política a céu aberto de Pessoa, que marca o início da sua ruptura definitiva com o regime de Salazar. A defesa pública da Maçonaria − que o Estado Novo tinha então por principal inimigo, preparando-se para a banir por meio de uma lei contra as “associações secretas” − foi uma atitude corajosa e, diga-se, algo inesperada, vinda de um escritor nacionalista e recém-galardoado com um prémio do governo (31 de Dezembro de 1934) pelo livro Mensagem. Essa intervenção separadora de águas culminava, todavia, um processo gradual e íntimo de evolução do posicionamento político de Pessoa, amplamente testemunhado pelos escritos do seu espólio. A publicação de “Associações Secretas” desencadeou medidas retaliatórias contra o seu autor, que até aí não tivera grandes razões de queixa da censura. No debate jornalístico que se seguiu à publicação do artigo, Pessoa não pôde retorquir aos seus críticos. Quando tentou fazê-lo, esbarrou nas instruções dadas por Salazar ao director dos Serviços de Censura no sentido de calar a polémica. Também os planos de reeditar o artigo em opúsculo ou de publicar um livro sobre todo o caso tiveram que ser abandonados por Pessoa, que foi assim reduzido ao silêncio. É esta história que aqui se pretende contar.

 

  1.  A 16 de Dezembro de 1934 realizaram-se as primeiras eleições de deputados à Assembleia Nacional, ao abrigo da nova Constituição, plebiscitada no ano anterior. Cerca de 480.000 eleitores deram o seu voto para a eleição dos 90 deputados propostos na lista única da União Nacional. Inaugurada solenemente a 11 de Janeiro de 1935, a Assembleia Nacional iniciou no dia imediato os trabalhos de elaboração do respectivo regimento. Decorria ainda a discussão deste quando, a 19 de Janeiro, o deputado e director-geral dos Serviços Prisionais José Cabral interrompeu os trabalhos para, no período antes da ordem do dia, enviar para a mesa da Assembleia um projecto de lei, o primeiro apresentado naquele órgão sob o Estado Novo.[1]

Em nome de um combate sem tréguas contra as “associações secretas”, o projecto de lei de José Cabral determinava o confisco dos seus bens e a perseguição dos seus associados, adoptando medidas especiais contra a “infiltração” dos mesmos no funcionalismo público e nas forças armadas. O diploma, para cuja discussão o deputado solicitou carácter de urgência (que seria negado), estabelecia a proibição de pertença de qualquer cidadão português a associações secretas, cuja definição era parcialmente remetida para uma velha disposição legal, o artigo 283.º do Código Penal de 1886, teoricamente em vigor, mas de facto letra morta.

 

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